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História Ella - Ella será sempre o centro de tudo


Escrita por: Believe8

Capítulo 2 - Ella será sempre o centro de tudo


Como a chuva ainda era muito forte a estrada estava perigosa, permaneceram no sítio por aquela noite. Miguel havia levado sua maleta para caso fosse necessário, e prestou todo o atendimento que Margarida e Ella necessitavam.

Os jovens se organizaram para dormir na sala, deixando que seus pais ocupassem os poucos quartos disponíveis na casa. Apenas o Jorge e Margarida permaneceram no quarto que ocupavam antes, agora com a filhinha.

“Eu fui muito molenga hoje.” Reclamou Daniel, enquanto Carmen acariciava o seu cabelo.

“Você nos ajudou muito, Dan, fica tranquilo. As dicas que você nos deu antes ajudaram muito na hora H.” Elogiou Alicia. “Acho que esse foi o momento mais emocionante da minha vida inteira.”

“Vou ter que gastar os tubos no nosso casamento então, to até vendo.” Brincou Paulo, recebendo uma careta da namorada.

“Será que eles estão bem com a Ella?” Perguntou Majo, curiosa. “Quando minha priminha nasceu, minha tia disse que era tão difícil cuidar dela durante a noite.”

“Tem uma dezena de pais e mães experientes aqui na casa para ajudar. E se eles quiserem, sabem que podem nos chamar também.” Lembrou Marcelina enquanto bocejava. “Mas está silêncio, então acho que a Ella está dormindo.”

“Ou não.” Riu Adriano ao ouvir um chorinho no andar de cima.

No quarto do casal, Ella havia acabado de acordar chorando. Margarida estava dormindo, exausta, mas se remexeu com a barulho. Quando abriu os olhos, Jorge já estava com a garotinha nos braços.

“Pronto, pequena, fica calma. O papai está aqui, não precisa chorar.” Ele ainda ficava tenso ao segurá-la nos braços. Ella era tão pequena e delicada, menor e mil vezes mais frágil do que uma boneca. “Fala para mim por que você está chorando.”

“Se ela conseguisse, tenho certeza que diria.” Margarida deu uma risada rouca, ainda deitada na cama. “Que horas são?”

“Quase 23h.” Ele conferiu no pulso. “Tem duas horas que você e ela estão dormindo.”

“E mais de duas horas que ela mamou. Deve ser fome.” A garota sentou na cama, coçando os olhos. “Eu estou exausta.”

“Desculpa, linda. Se eu pudesse, juro que eu mesmo alimentava ela, mas o arsenal de leite está nos seus peitos.” Ele tentou brincar para descontrair, passando a filha para a mãe. “Espera, que roupa é essa?”

“Foi você quem deu para ela. Ou não consegue mais reconhecer o primeiro presente depois de tantos outros?” Perguntou Margarida enquanto abria o moletom que usava. “Eu coloquei na mala para ser a primeira roupinha que ela ia usar no hospital. Mas como está fresco, o Miguel pediu para deixar ela bem enroladinha na coberta.”

“E nós estávamos vendo a maternidade mais top de linha de São Paulo, com suíte especial, cama para o pai, jantar comemorativo, enfermeiras a disposição integralmente e climatização no ambiente.” Ele relembrou o local que visitaram na semana anterior. “E olha onde nossa pequena foi nascer... No sítio, pelas mãos dos nossos amigos, no meio de uma tempestade.”

“Mas cercada de amor, Jorge, e isso é o mais importante. Não é, Ella?” Margarida sussurrou, acariciando o cabelo da filha. “Mais importante do que um quarto impecável e um monte de aparelhos de última geração é estar cercada de amor, assim como você estava quando nasceu.”

“Você vai precisar ensinar muita coisa para o papai, meu amor. Principalmente como ser uma pessoa melhor.” Jorge se inclinou para beijar a filha, que mamava. “Você precisa de alguma coisa, amor?”

“Só da sua companhia, loirinho. Sinto que teremos uma noite bem agitada.” Os dois riram, se acomodando melhor na cama e focando toda a sua atenção na criança que tinha apenas algumas horas de vida.

~*~

Não só aquela noite, mas todas as que se seguiram foram agitadas. Ella era o famoso bebê Telesena, acordava de hora em hora para mamar durante a noite. Durante o dia, ao contrário, mamava em intervalos maiores, mas tinha muita cólica e passava muito tempo chorando.

Mesmo com a ajuda de Andréia e Rosana, depois de três semanas era possível confundir que Jorge e Margarida eram parte do elenco de uma série de zumbis graças a sua aparência. Olheiras profundas, pele pálida, cabelo desgrenhado e um cheiro de vômito azedo constante.

“Nossa, amiga, sua aparência está péssima.” Comentou Alicia, horrorizada.

“Nossa, obrigada por avisar, Alicia, o espelho nem me mostrou isso hoje de manhã.” Rosnou a garota, ninando a filha. “Ella não dorme por nada nesse mundo, só quer saber de chorar. E com isso eu não tenho tempo nem de usar o banheiro, quem dirá tomar banho ou dormir.”

“E não tem nada que o Jorge possa fazer? Ou sua mãe, ou a mãe dele?” Questionou a amiga, segurando a bebezinha adormecida.

“Eles até tentam, mas não adianta. Eu amamento ela à tarde e tento dormir enquanto eles ficam com ela em outro canto da casa. Mas ela chora tão alto, mas tão alto... Outro dia o Jorge estava com ela no jardim da frente e eu aqui em cima, e eu podia ouvir ela chorando. Ella só para de chorar quando está deitada na cama com nós dois juntos, mas não dorme, fica se revirando e resmungando.”

“Eu sei que você está exausta, amiga, mas é até fofo. Ella só quer ficar juntinho com vocês dois.” Alicia sorriu para a bebê. “Eu perguntei para uma pediatra amiga da minha mãe, e ela me disse que é só nesse começo, Marga. Logo a Ella vai pegar um ritmo de sono. E as cólicas vão diminuir.”

“Como está a escola?” Margarida tentou mudar de assunto, não aguento mais nada que se relacionasse a bebês.

“Bem, bem. A nova professora de matemática é legal, sabe? Mas passa muita lição para casa, todos eles passam.”

“Eu sei, eu e o Jorge temos que fazer vários trabalhos e enviar para a escola.” A morena revirou os olhos. “Como se já não estivéssemos ferrados com o tempo.”

“Bom, então que tal aproveitar que a baixinha gostou do colo da tia Alicia e está capotada aqui, e tirar você um cochilo? Eu fico de olho nela e te chamo se precisar.” Propôs a amiga, recebendo um aceno instantâneo. “Vou ficar ali no quarto dela, ok?”

Mas Margarida já havia adormecido assim que colocou a cabeça no travesseiro.

~*~

“Ela está abaixo do peso.” Observou a pediatra, preocupada. “Ela não ganhou nem um quilo desde que nasceu.”

“Impossível, doutora Amanda, ela mama a cada uma ou duas horas. E mama bastante.” Comentou Margarida, ela e Jorge também ficando preocupados. “Eu ia inclusive perguntar se era normal ela mamar tanto.”

“É, ela vive com fome.” Concordou o rapaz, segurando a filha no colo.

“Algum outro comportamento estranho?”

“Bom, ela dorme muito pouco, está sempre irritada e só se acalma com nós dois perto. Não pode ser um, tem que ser os dois.” Relatou Margarida. “Durante a noite é a mesma coisa.”

“E isso está desde o começo?” Os dois concordaram. “Vocês não relaram nada na primeira consulta.”

“Achamos que era normal, sabe, porque ela só tinha uma semana de vida.” Desculpou-se o rapaz, sem jeito.

“Bom, a Ella é muito pequena para fazermos a bateria de exames que seriam necessários. Então vamos fazer um teste e cortar da sua alimentação, Margarida, tudo o que for fritura, glúten, lactose ou açucares ruins. O mais provável é que ela esteja com alguma irritação no intestino que esteja impedindo que ela absorva todos os nutrientes e vitaminas que precisa. Se o quadro não melhorar, teremos que investigar mais a fundo, mas eu queria que ela estivesse um pouco maior quando isso acontecesse.”

~*~

“Vai, lindinha, mama só mais um pouquinho.” Pediu Marga, bastante chorosa.

“Ela já está mamando tem quase meia hora, amor, acho que ela já está mais do que cheia.” Jorge se angustiava de ver aquela situação.

“Não é, Jorge, se fosse ela não estaria abaixo do peso.” Rosnou a garota, começando a chorar. “Eu sou uma inútil.”

“Margarida, para de se culpar.” O loiro pegou a filha e colocou no ombro para arrotar, observando a namorada arrumar a roupa.

“Mas é minha culpa, Jorge. Eu tive que tomar cuidado com a alimentação enquanto estava grávida, por causa da minha idade. Devia imaginar que a amamentação ia ser a mesma coisa, não sair comendo o que queria e como queria.” Ela afundou o rosto nos joelhos. “Eu abri mão da minha vida toda para cuidar dela, e nem isso eu tenho conseguido fazer direito.”

“Nós já sabíamos que não seria fácil, Margarida.” Ele sentou na cama, em frente à ela. “Mas não tem mais nada que possamos fazer, além de respirar profundamente e seguir em frente. Eu sei que não é muito, mas eu estou aqui com você, está bem?”

“Você não imagina o quanto isso é importante.” Ela segurou a mão dele, um sorriso triste no rosto. “A mamãe vai se cuidar direitinho, tá bom, pinguinho? E você vai crescer bastante.”

“Fala para a mamãe que ela é o máximo, princesa.” Jorge sussurrou contra a cabecinha em seu ombro, Ella se remexendo inquieta. “Acho que a barriguinha está doendo.”

“É melhor deixar ela arrotar antes de deitar para fazer a massagem.” Os dois concordaram, enquanto ele levantava e começava a niná-la pelo quarto.

~*~

“Saudades da escola?” Perguntou Bibi no último dia da semana de provas, da qual Jorge e Margarida tiveram que participar.

“Vocês nem imaginam quanto.” Suspirou a garota. “É tão bom ficar um pouco fora de casa e daquela realidade meio viciante.”

“Foi bom ter a companhia de vocês também.” Sorriu Majo. “Mas vocês podiam ter trazido a Ella, né?”

“E ouvir mais o choro dela? Não, a gente merece uma folga.” Brincou Jorge, vendo os amigos rirem. “Vocês riem, mas é verdade. Nós amamos a Ella, mas que pulmão potente que ela tem.”

“E a questão do peso?” Perguntou Alicia.

“Na mesma. A médica está querendo começar a dar fórmula, além do meu leite, para ver se ajuda.” Lamentou a jovem mãe. “Nem pra isso eu to bastando.”

“Para de se criticar, amiga, você está sendo ótima.” Elogiou Carmen. “O leite de cada mãe é feito sob medida para o seu bebê, com tudo o que ele precisa. Só que algo não está deixando a Ella absorver isso, por isso ela está magra.”

“É isso que nos preocupa, Carmen... Por que a Ella não está conseguindo engordar apesar do tanto que mama.” Admitiu Jorge, cansado.

“Que tal nós irmos todos visitar nossa coisinha?” Propôs Paulo. “Assim vocês continuam se distraindo com a gente, e nós matamos a saudade daquele pacotinho fofo.”

“Acho uma ótima ideia.” O loiro sorriu animado.

O grupo se levantou e apanhou os materiais, todos caminhando para fora da escola. Assim que atravessaram os portões, o carro do pai de Jorge estacionou. Alberto saltou de dentro, desesperado.

“Temos que ir para o hospital.” Avisou o homem, arfando.

“O que aconteceu? Tem algo errado com a Ella?” A filha foi a primeira coisa que passou pela mente de Margarida.

“Ela estava dormindo e nós percebemos que estava muito quieta. Ela estava com os lábios azulados e muita dificuldade para respirar. Sua mãe e o Rosana foram com ela para o hospital e eu vim buscar vocês dois.” Conforme ele falava, lágrimas iam caindo dos olhos do casal.

“Vamos logo.” Paulo e Alicia puxaram os dois para dentro do carro, vendo que eles estavam em choque.

“Nós encontramos vocês lá.” Avisou Valéria enquanto os meninos pediam o Uber.

Já no hospital, encontraram Rosana e Andréia juntas na recepção, aflitas.

“Cadê ela? Cadê a minha filha?” Gritou Margarida, desesperada.

“Os médicos estão examinando, querida. Fique calma, por favor.” Andréia a abraçou com força.

“Ela parou de respirar? O que aconteceu?”

“Nós não sabemos, Jorge. Ela tomou a mamadeira e dormiu, deitadinha de lado, como sempre. Ela estava respirando normalmente quando nós descemos e colocamos ela no cesto, e até resmungou um pouco. Você sabe que ela sempre resmunga enquanto dorme, e quando nós paramos de ouvir os resmungos, estranhamos. Hora que chegamos até ela, os lábios estavam azulados e ela respirava com bastante dificuldade. Seu pai fez os procedimentos de primeiros socorros e ela melhorou um pouco, e então nós viemos correndo para cá.” Relatou Rosana, em choque. “E então eles a levaram.”

Logo os amigos chegaram e Maria Joaquina foi em busca de seu pai. Miguel não tardou a aparecer, sério.

“Miguel, cadê a minha filha? Eu preciso ver ela.” Pediu Margarida, encolhida nos braços do namorado.

“Calma, Margarida, ela está melhor. Estão terminando os exames nela.” Pediu o homem, mas não parecia tranquilo.

“E tem alguma pista do que aconteceu, papai?” Pediu Maria Joaquina.

“A Maria Joaquina comentou que a Ella não estava ganhando peso, não é?” O casal confirmou. “Ela teve algum outro sintoma estranho?”

“Sintoma?” Questionou a mãe da criança.

“Ela não dorme muito e está sempre resmungando, mas nada demais.” Contou Jorge, curioso.

“E a médica disse algo durante as consultas de rotina? Vocês já foram em duas, certo?”

“Sim, mas a única coisa que ela falou foi sobre o peso da Ella. Estamos investigando o motivo de ela não ganhar peso, apesar de mamar tanto.”

“Ela mama bem?”

“No peito, sim. Mas quando nós damos a mamadeira, ela toma bem pouquinho.” Contou Rosana e Miguel assentiu.

“Vocês comentaram isso com a médica?”

“Não, começamos a dar a mamadeira nos últimos dias, enquanto eles estavam fazendo prova.” Explicou Andréia.

“Bom, a Ella está usando seu peito como uma chupeta, Margarida. Ela mama sim, mas bem pouco, aparentemente. E isso pode estar acontecendo por que ela tem dificuldade de mamar e respirar ao mesmo tempo.” Explicou Miguel, delicadamente. “O que nos leva ao motivo do que aconteceu hoje.”

“E que motivo é esse, doutor Miguel?” Jaime perguntou, impaciente.

“A Ella tem um sopro no coração.” E foi como se todos os corações ali falhassem uma batida. “50% das crianças no mundo nascem com sopros, que é o período em que o sistema circulatório começa a usar os pulmões para respirar, não mais a placenta. Isso geralmente desaparece em algumas semanas, e pode ter sido por isso que a médica não deu importância aos pequenos barulhos durante as consultas.”

“Um sopro?” Sussurrou o pai, aflito. “E o que isso quer dizer, Miguel?”

“Ela vai morrer?” Margarida já não se aguentava de pé, sendo logo amparada por Jorge e pelas amigas.

“Calma, Margarida, por favor. Os exames que estão fazendo são para determinar que tipo de sopro está acometendo ela e qual a melhor forma de tratar. Mas eu garanto, querida, que todos aqui farão tudo o que estiver ao alcance para que sua menininha fique bem.” Prometeu o médico. “Eu vou voltar lá para dentro, trago notícias assim que tiver.”

“Obrigado, Miguel.” Alberto agradeceu o amigo, mas seu semblante era triste. “Você sabe que faremos e pagaremos o que for preciso, não é?”

“Eu sei, meu amigo. Sorte a de vocês e da Ella por terem condições. Quantos bebês não morrem de casos mais simples por falta de estrutura e atendimento que deveria vir dos órgãos públicos.” Suspirou o médico, encarando os presentes. “Com licença.”

“Calma, meu amor, vai ficar tudo bem.” Prometeu Jorge, beijando a testa da namorada.

“Jorge, eu não vou aguentar se algo acontecer com a nossa filha. Eu acho que morro junto.” Sussurrou a garota, agarrada a ele. “Meu coração tá doendo.”

“O meu também, linda. Mas nós vamos precisar ser fortes pela nossa filha, tá bom? Vamos precisar manter a cabeça no lugar.” Ele dizia baixinho, tentando segurar as lágrimas que teimavam em querer cair de seus olhos.

~*~

“Meninos? A Ella acabou de ir para o quarto. Normalmente só os pais poderiam entrar, mas eu consegui abrir uma exceção e vocês podem ir juntos, desde que não façam bagunça.” Miguel apareceu quase duas horas depois. “O pediatra nos encontrará lá.”

Margarida e Jorge quase correram pelo caminho indicado, irrompendo no quarto e caminhando até o berço depressa. Ella estava um pouco grogue dos remédios que havia tomado, mas começou a choramingar assim que percebeu a presença dos pais.

“Podem pegá-la, mas cuidado com os fios.” Pediu a enfermeira, os auxiliando.

“Pronto, meu amor, calma. A mamãe está aqui, não precisa mais chorar.” Lágrimas grossas escorriam dos olhos escuros ao dizer aquilo, segurando a filha com todo o cuidado. “Tá tudo bem.”

“Eu te amo, eu te amo, eu te amo.” Jorge começou a sussurrar repetidas vezes, o rosto afundado nas costas da criança, chorando tanto quanto a namorada.

“Eu não achei que ficaria tão feliz de ouvir o choro dela.” Comentou Andréia, secando os olhos.

“Com licença?” O pediatra, doutor Henrique, entrou no quarto. “Tudo bem? Querem que a enfermeira ajude a acalmá-la?”

“Eu to tão aliviado de ouvir o choro dela que não quero que ela se cale por um bom tempo.” Garantiu Jorge, as duas seguras em seus braços.

“Qual o resultado do exame, Henrique?” Questionou Miguel.

“Como eu antecipei, Miguel, a Ella tem um sopro no coração. Auscultando não é possível identificar a gravidade, foi preciso o raio-X e o ecocardiograma. Vocês sabiam que ela está abaixo do peso, correto?”

“Sim, a pediatra estava investigando as causas da síndrome da má absorção.” Explicou Jorge, já que Margarida não conseguia falar uma palavra.

“Ela apresentava algum problema nas mamadas?”

“Ela parava para respirar algumas vezes, mas disseram que isso era normal.”

“Mas também é um dos sintomas do sopro. Mas não se culpem, nenhum de vocês. Como eu disse, se não fossem os exames e a falta de ar que ela teve hoje, nós provavelmente só conseguiríamos o diagnóstico em alguns meses.”

“E qual o prognóstico? Qual será o tratamento?” Perguntou Daniel.

“O caso da Ella é cirúrgico.” Todos se arrepiaram ao ouvir aquela palavra. “Nós podemos esperar ela ficar maior, se vocês quiserem, mas nada garante que o quadro vá se manter ou alterar. A probabilidade de ela continuar sem ganhar peso é bastante grande, assim como as chances de ocorrer outra crise de falta de ar. Mas é uma decisão grande e difícil, e vocês devem tomá-la com calma.”

“Uma cirurgia cardíaca é algo tão assustador e nada romântico.” Comentou Laura.

“Ainda mais em um bebê tão pequeno.” Concordou Alberto, assustado. “Miguel, não existe outra forma?”

“Se houvesse, tenho certeza que o Henrique apresentaria.” Suspirou o médico amigo. “Mas vamos ter calma. Alberto, vamos ali fora com o Henrique um minuto, por favor.”

Os três homens deixaram o quarto, e claro que Andréia e Rosana correram atrás. Os jovens ficaram sozinhos no quarto, encarando o casal de amigos com a filha.

“Eu não consigo, Jorge, não consigo passar por isso.” Soluçou Margarida, agarrada com a filha. “Eu não vou suportar perder a nossa filha.”

“Nós não vamos perder nossa filha, meu amor, se acalma.” Pediu o loiro, tentando a custo se controlar. “A Ella é forte, Margarida, vai conseguir passar por isso.”

Ella é tão pequena, Jorge, e o coração dela é menor ainda. Deve ser preciso uma lupa para enxergar as veias dela.” A mãe encarou a filha, que havia adormecido em seus braços. “Como vão conseguir operar algo tão pequeno?”

“Eles não operam coração de bebê dentro do útero da mãe?” Alicia se intrometeu. “Eu tenho certeza que vão chamar a melhor das equipes para essa cirurgia, amiga.”

“Mas e se algo der errado, Alicia?”

“E se der certo?” Se intrometeu Davi. “Nós não podemos tomar essa decisão por vocês, e muito menos influenciar sua escolha. Vocês são os pais dela e vão saber o que é melhor. Mas, de coração, eu diria que as duas opções são arriscadas.”

“Mas uma pode ter um final feliz, a outra não.” Valéria completou o namorado, pesarosa.

“Você sabe que eu vou concordar com o que você quiser, Marga. Mas entre esperar para ver se o pior vai acontecer, e tentar agir para evitar, eu voto pela ação.” Jorge disse baixinho, beijando a testa dela.

“Nós nem tivemos tempo de batizar a Ella, Jorge.” Sussurrou a mãe, encarando o rostinho da filha.

“Achei que isso não importasse para você.” Ele comentou.

“Eu não sou religiosa e nem você, mas eu não teria paz se algo acontecesse com ela antes de a batizarmos.” Margarida o encarou, pesarosa.

“Não vai acontecer nada com a Ella, mas nós podemos chamar o capelão e batizá-la, se isso te trouxer mais paz.” Ela assentiu e ele beijou sua testa de novo. “Majo, chama o seu pai e o doutor Henrique. E peça para eles conseguirem um capelão antes da cirurgia.”

~*~

Mesmo contra à vontade de seus pais, Jorge e Margarida se mantiveram firmes com a ideia da cirurgia. Doutor Henrique avisou que a equipe estaria pronta no outro dia perto da hora do almoço, e chamou o capelão para que batizassem a criança pela manhã.

Os amigos voltaram para o hospital, onde ficariam até que a cirurgia acabasse para fazer companhia para o casal. Foram todos para a capelinha do hospital, com Ella no colo dos pais. O capelão os aguardava com um sorriso bondoso.

“Há padrinhos?” Ele perguntou, pegando os dois de surpresa. “Não tem problemas se não tiverem, geralmente nesses casos não temos padrinhos presentes.”

“Nós uma vez pensamos em duas pessoas, mas nunca chegamos a convidar.” Contou Jorge, encarando a namorada.

“Paulo, Alicia, vocês aceitam ser padrinhos da Ella?” Pediu Margarida, pegando os dois de surpresa.

“Nós dois? Sério?” Perguntou a garota, emocionada.

“Vocês dois cuidaram da Marga quando eu fiz merda, e sempre estiveram por perto quando nós precisamos, incluindo agora.” Jorge sorriu para os amigos. “Mas se não quiserem, nós entendemos.”

“Cala a boca, engomadinho.” Paulo o abraçou enquanto Alicia fazia o mesmo com Margarida. “Vamos fazer esse batizado logo.”

“Jorge, Margarida, é importante que vocês saibam que o batismo não é um milagre, e portanto não será cura da Ella.” Lembrou o capelão. “O batismo nada mais é do que a entrada da criança na comunidade de Cristo.”

“Nós sabemos. Não vai salvá-la, mas a ajudará a estar mais protegida.” Suspirou a mãe, passando a menina para os braços de Alicia. “E é só o que me resta pedir agora.”

~*~

Não foi fácil deixá-la ir para a cirurgia. Miguel disse que Jorge e Margarida poderiam ficar com ela até que estivesse anestesiada, e que os pais poderiam acompanhá-los nesse interim. Porém Rosana e Andréia começaram a passar mal antes que os amigos saíssem, então os dois padrinhos resolveram ficar.

“Vocês não precisam ver isso.” Garantiu Margarida, acalentando Ella.

“Padrinho é para estar do lado para tudo, Marga, nos momentos bons ou ruins.” Lembrou Alicia, sorrindo.

“Estão prontos?” Perguntou o anestesista, recebendo um aceno afirmativo.

Ella chorou muito durante todo o processo de aplicação da anestesia, o que não surpreendeu, considerando que era um bebê bastante chorão. Os pais e padrinhos fizeram todo o possível para acalentá-la e lhe passar segurança.

O choro foi diminuindo com o efeito dos remédios, e os beijos e abraços aumentaram proporcionalmente a isso. Quando ela adormeceu, parecia uma boneca, mole e sem vida. A enfermeira ajudou Margarida e colocá-la na maca, e restou para Paulo e Alicia a difícil missão de conseguir levar os pais da menina para fora.

“Eu não quero deixar ela, Ali, eu não quero deixar minha bebezinha ali dentro, sozinha.” Chorou Margarida, abraçada na amiga.

“Calma, Marga... Eles são os melhores no que fazem, vão cuidar bem da nossa pequena.” Prometeu a morena, observando que o namorado fazia força para segurar Jorge e impedir que ele invadisse a sala do pré-operatório novamente. “Vem, vamos ficar com a nossa família.”

As seis horas seguintes foram regadas a café, refrigerantes, lágrimas e preces silenciosas. Nenhum dos jovens arredou o pé de dentro do hospital ou deixou que os amigos ficassem sem alguém segurando sua mão, em momento algum. Como Rosana e Andréia tiveram uma crise nervosa, acabaram ficando no pronto-socorro, medicadas e acompanhadas dos maridos. O que foi até melhor, porque de nervosos e angustiados já bastavam Jorge e Margarida.

Miguel acompanhou toda a cirurgia como espectador, e saiu para a sala de espera antes do doutor Henrique, um sorriso enorme no rosto para tranquilizar todos aqueles corações ansiosos.

“A cirurgia acabou de terminar e, aparentemente, foi um grande sucesso.” Ele anunciou, ouvindo suspiros aliviados e vendo lágrimas de alegria. “Eles estão a levando para a UTI Neonatal, que é onde ela passara os próximos dias em observação, mas a cirurgia correu muito bem.”

“Eu diria que correu ótima.” Henrique apareceu nessa hora, já trajado em vestes limpas. “Parabéns, Jorge, Margarida... Para um coraçãozinho tão pequena, o da filha de vocês é bastante forte.”

Mas os dois não conseguiam falar naquele momento. Estavam apenas abraçados, chorando de alívio, como se um elefante tivesse sido tirado de seus ombros naquele exato momento.

“E nós podemos vê-la?” Pediu Jaime.

“Infelizmente não, meninos. Ela está na parte mais intensiva da UTI, e vai ficar assim pelas próximas 48 horas, pelo menos. O Jorge e a Margarida podem vê-la rapidamente se quiserem, mas ela ainda está sedada e no respirador.” Explicou o cirurgião, e os dois concordaram prontamente.

Tiveram que se esterilizar, colocar vestes adequadas e máscaras, já que era preciso todo o cuidado com contaminação. Era quase impossível ver Ella em meio aos fios, cateteres e tubos que saiam dela, mas só de sentir seu peito subir e descer já era um alívio imenso.

“Oi, amorzinho.” Os dois sentaram ao lado do bercinho, os dedos indicadores brincando com as mãozinhas minúsculas da criança. “Não precisa ter medo, tá bom? Eu sei que esse lugar é estranho, tem um cheiro ruim e um monte de coisas que parecem assustadora, mas você completamente protegida.”

“É, é só por um tempinho. Daqui uns dias você já volta para casa com o papai e a mamãe, para o seu quartinho, suas coisinhas. E você vai voltar bem, sem mais nenhum problema.” Jorge sorriu para ela. “Nós não podemos ficar aqui dentro com você o tempo todo, mas nós vamos estar o mais pertinho que pudermos, está bem? Nós não vamos deixar você.”

“Nunca, nunca, nunca.” Margarida deitou o rosto o mais próximo dela que conseguiu, tentando segurar as lágrimas. “Você é tudo para a gente, Ella... Nós não vamos a lugar nenhum sem você, filha.”

~*~

E realmente, os dois não arredaram o pé do hospital nos dias que se seguiram. Os amigos tentaram persuadir, os pais fizeram o mesmo, mas eles não queriam saber. Por fim, arranjaram dois cabeças duras para ajudá-los, provando que tinha tido uma escolha acertada. Até o dia que Ella saiu da UTI, uma semana depois, Paulo e Alicia não deixaram o hospital, mesmo sob ameaças dos pais. Com as aulas já encerradas após as provas, não viam motivo para não ficar ali, dando o apoio que os amigos precisavam.

Miguel conseguiu um quarto para os quatro, onde se revezavam para cochilar e tomar banho. Normalmente faziam turnos entre Alicia e Marga, e Paulo e Jorge, mas na maior parte do tempo ficavam os quatro juntos na entrada da UTI.

Depois de dois dias, foi liberada quatro visitas por dia a Ella. Geralmente Alicia e Margarida faziam a primeira, Jorge e Paulo a segunda, os padrinhos a terceira, e a quarta, que era a mais longa, era dos pais.

Depois que ela deixou a UTI, precisou ficar internada ainda duas semanas, mas agora Jorge e Margarida podiam ficar com ela direto no quarto. Ainda na UTI ela havia voltado a ser alimentada pelo leite materno, que segundo o pediatra era a melhor coisa que poderiam dar para ela, mas ali, a princípio, pela mamadeira. Já no quarto ela voltou para o peito, e logo de cara a mãe pode perceber a diferença da cirurgia.

“Ela está mamando muito mais.” Observou a jovem, admirada. “Eu consigo sentir.  Ela realmente não estava se alimentando antes.”

Quando deixou o hospital, três semanas após ter dado entrada no mesmo com os lábios azulados e quase sem ar, Ella tinha uma cicatriz no peito, mas um corpo bem mais gordinho, corado e saudável. Gargalhava a cada vez que via os pais, tentava pegar e morder os próprios pezinhos, adorava quando o padrinho Paulo mordia sua bochecha ou a madrinha Alicia brincava com os dedos de seu pezinho, e dormia sorrindo quando era ninada pelas avós Andréia e Rosana.

Foi recebida com festa e alegria, mas não chorou. Se deliciou em ficar deitada com todas as amigas da mãe por cima, brincando de tentar morder seus dedos e soltando gritinhos agudos, como se tentasse falar. Não foi passada de colo em colo, mas não ligou de ter tantas pessoas disputando sua atenção só resmungou quando ficou com fome, e dormiu nos braços do pai logo após mamar.

Aquela não parecia, nem de longe, a criança que habitava aquela casa algumas semanas antes. Mesmo tão pequena, Ella já havia renascido e feito todos ao seu redor renascerem uma vez mais.

~*~

“Eu ainda não acredito que vocês adiaram a formatura por nossa causa.” Comentou Margarida, enquanto a classe toda esperava para entrar no auditório onde seria a colação de grau.

“Os outros terceiros anos não quiseram, então a diretora Olívia deixou que fizessem no dia antigo. Mas ela deu permissão para esperarmos a Ella estar melhor.” Explicou Carmen, ajeitando seu capelo.

“Além do que, nenhum de nós tinha cabeça para pensar nisso enquanto a baixinha estivesse no hospital.” Garantiu Kokimoto.

“A Ella é nossa mascotinha, tinha que estar aqui hoje.” Decretou Valéria, observando a bebê vestida com uma miniatura de beca e capelo no colo do pai. “Não é, princesa? Você tem que se formar com a gente.”

“Gente, parece outro bebê.” Comentou Mário, surpreso. “Ela não parece em nada a bebê que nós vimos no celular de vocês um mês atrás.”

“Nem nós reconhecemos ela, cara. A Ella só chorava, chorava e chorava, tava toda pequena e sem peso. E agora tá essa bolinha fofinha aqui, toda risonha e brincalhona.” Concordou Jorge, mordiscando a bochecha da criança, que gargalhou. “E começou a dormir à noite.”

“Assim, do nada?” Se espantou Cirilo.

“Ela é um bebê, Cirilo, e não sabe falar. O comportamento irritadiço dela, a necessidade de ter sempre o Jorge e a Margarida por perto, de chamar a atenção deles, era a forma dela de tentar falar que havia algo errado com ela; mais especificamente, com o coração dela.” Explicou Carmen. “Agora que ela está bem, consegue se alimentar e se nutrir apropriadamente, ela não sente mais essa necessidade, e portanto, pode dormir.”

“Vendo ela assim, toda fofa, quase dá vontade de ter um. Eu disse quase.” Brincou Marcelina, recebendo um olhar feio do irmão.

“A única sobrinha e afilhada que eu quero por hora é a Ella, ok? Que isso fique bem claro.” Avisou o Guerra mais velho, vendo a professora Helena se aproximando. “Está na hora?”

“Sim, e eu nem consigo acreditar nisso. Minhas crianças que não são mais crianças.” A professorinha os abraçou, todos bastante emocionados. “Eu estou muito orgulhosa de tudo o que vocês conquistaram até aqui.”

“Até mesmo nós dois?” Perguntou Margarida.

“Principalmente vocês dois. Cada um de vocês teve que vencer algum desafio ao longo de todo esse tempo que estivemos juntos para se tornar uma pessoa melhor, e eu fico muito orgulhosa de ver que todos saíram vitoriosos.” Helena sorriu. “Prontos para se formarem?”

~*~

Com o tempo, Jorge e Margarida foram aprendendo a se adaptar a sua nova vida e as “limitações” que vinham com ela. Pouco após a formatura, se “despediram” de boa parte dos amigos por algum tempo, já que a vida deles iria continuar longe dali, e as deles continuaria em São Paulo mesmo.

Paulo e Alicia foram estudar no Rio de Janeiro, os dois na mesma faculdade de direito. Maria Joaquina e Cirilo resolveram passar dois anos na França, onde ela estudaria moda e ele curtiria tudo o que pudesse, sendo estudo ou lazer. Valéria e Davi também resolveram viajar, e passariam um tempo indeterminado em Israel, onde o rapaz se ligaria às suas origens e a aspirante a jornalismo documentaria tudo.

Bibi e Kokimoto foram para o Japão visitar a família dele, e lá decidiriam se voltavam para o Brasil ou seguiam para os Estados Unidos, e o que estudariam. Jaime foi para Minas Gerais estudar música, e Mário e Marcelina se mudaram para o interior, onde ele faria veterinária e ela estudaria administração. Carmen e Daniel foram aprovados em Cambridge, após um longo processo, e foram rumo a Inglaterra para estudar.

Adriano acabou escolhendo ir estudar no sul, foi fazer oceanografia. Laura quis ir aprimorar o inglês nos Estados Unidos, trabalhando como au pair. E assim, logo, apenas o jovem casal e a filha restaram na cidade natal.

Ele esperou para entrar na faculdade no segundo semestre, quando Ella já estivesse maior.  Agora que trabalhava em período integral, não queria ficar longe dela também a noite, pelo menos no comecinho.

Enquanto isso, Margarida se dedicava integralmente a cuidar da filha. Seu mundo passou a girar em torno de tudo o que dizia respeito a criança, e a vida dos três em família. E com isso, os anos passaram.

~*~

“Mamãe, você viu o Carinho?” Ella entrou na cozinha correndo, encontrando a mãe fazendo o almoço.

“Você estava com ele na sala, Ella.” Suspirou a mulher, atarefada. “Como você consegue não ver um coelho cor de rosa de quase meio metro?”

“É que ele é um coelho mágico, que soma na cartola.” Riu a criança, no auge dos seus quatro anos. “Você tem uma cartola aí, mamãe?”

“Não, não tenho.” Rebateu Margarida, sem lhe dar atenção. “Ella, a mamãe está um pouco atarefada, você pode brincar sozinha?”

“Cadê o papai?”

“Está trabalhando, filha. Você sabe, ele sai cedinho e só volta a tarde, e depois vai para a faculdade.” O tom de voz da mulher era amargurado. “E eu fico aqui com você, o dia todo.”

“Vamos visitar o papai? O vovô vai gostar de me ver.” A pequena saltitou. “Por favorzinho.”

“Tá bom, nós vamos logo depois do almoço.” Cedeu Margarida. “Agora, por favor, fique na sala, quieta.”

“Tudo bem, mamãe.” E correu de volta para a televisão.

O apartamento de três quartos havia sido presente dos sogros no terceiro aniversário de Ella. Estava no nome dela e Jorge, mas havia sido dado todo mobiliado e pronto no aniversário da criança, para que a pequena família afinal começasse sua própria vida.

E parece que dali em diante as coisas começaram a decair. Durante o início da faculdade, Jorge organizou seus horários de modo que tivesse duas ou três aulas por semana só, para que pudesse sempre passar alguns dias com a namorada e a filha. Agora, porém, ele estudava todos os dias da semana e mal parava em casa.

O tempo, já curto que tinham um com o outro, se tornou praticamente inexistente. Quando ele conseguia estar em casa, era sempre totalmente dedicado a Ella, e a namorada ficava mergulhada nas tarefas de casa.

Não conseguiam mais conversar direito, não saiam sozinhos, e mal lembrava a última vez que tinham transado. Depois que Ella fez quatro meses, Margarida foi para a ginecologista e começou a tomar injeções anticoncepcionais, e eles começaram a ter uma vida sexual sem riscos de outra gravidez indesejada. Era complicado fazer isso na casa dos pais dele, então quando se mudaram, ainda um casal jovem e cheio de hormônios, acharam que trepariam como coelhos. Honestamente, os velhos do asilo deviam transar mais do que eles.

E agora, com vinte e um anos, Margarida se sentia frustrada e cansada como uma idosa de oitenta e tantos.

~*~

“Ora, se não é a minha netinha mais linda.” Alberto apanhou Ella no chão, sorrindo.

“Eu sou sua única netinha, vovô.” Riu a pequena, enchendo seu rosto de beijos. “Nós viemos ver você e o papai.”

“Que visita mais deliciosa.” Sorriu o homem, encarando a nora. “Olá, querida.”

“Tudo bem, Alberto?” A moça sorriu cansada.

“Ótimo, ótimo... O Jorge estava na cozinha tomando um café. Se quiser ir encontrar ele enquanto eu paparico essa mocinha.”

“Claro, seria ótimo.” Ela caminhou até a cozinha, cumprimentando as pessoas no caminho.

Sempre se sentia mal vestida quando ia à empresa do sogro. Todos usavam terninhos, conjuntos sociais e roupas de marca, estavam impecavelmente penteados e arrumados, enquanto ela usava calça jeans, moletom e um coque feito de qualquer jeito. Coisas de mãe em período integral.

Assim que chegou na cozinha, encontrou Jorge rindo. Uma mulher um pouco mais velha que os dois, trajada com uma calça social justa e uma camisa branca com os botões ameaçadoramente abertos, tinha as garras pintadas de carmim nos braços dele, rindo com os dentes absurdamente brancos contornados em um batom tão vermelho quanto o esmalte das unhas.

“Ai, Jorginho, você me mata.” Ela ouviu a voz da mulher e já sentiu o sangue ferver.

“Jorge?” Chamou o namorado, que virou para ela depressa, um sorriso enorme no rosto.

“Amor? Que surpresa boa.” Ele se afastou da oferecida, caminhando e abraçando Margarida pela cintura. “Que surpresa boa. O que faz aqui?”

“A Ella não parava de chamar por você. Pediu tanto que eu trouxe ela aqui para te ver.” Ela se soltou dos braços dele, arredia. “Ela está com o seu pai.”

“Ah, que grosseria a minha. Margarida, essa é Rebeca, minha colega de trabalho. Rebeca, essa é a minha namorada, a Margarida.” Jorge apresentou as duas mulheres, alheio ao clima pesado.

“Prazer, querida, ouvi falar tanto de você.” A tal Rebeca sorriu falsamente. “Ele sempre disse que você é maravilhosa, mas não conseguiu fazer jus a como você é pessoalmente.”

“Já eu nunca ouvi falar de você e podia ter ficado assim.” Jorge arregalou os olhos ao ouvir aquilo. “Você está muito ocupado para ver sua filha? Se estiver, eu levo ela embora.”

“Claro que não, Marga, eu nunca estou ocupado demais para a Ella. Ou para você.” Ele segurou a mão dela, preocupado ao não senti-la apertar de volta. “Com licença, Rebeca.”

“Claro, Jorginho. Mais tarde me procure na minha sala e conversamos mais, a sós.” Ela saiu rebolando a bunda de academia e por pouco isso não lhe rendeu um belo puxão no cabelo.

“Nem te dei um beijo.” Ele observou.

“Por que não dá na Rebeca? Acho que o batom dela é bem insinuante.” Rebateu a morena, largando a mão dele e saindo marchando. “Fala logo com a minha filha. Eu quero ir embora.”

Ele estranhou e não entendeu muito o que aconteceu, mas a seguiu de perto. Encontraram Alberto com Ella no escritório, a garotinha rindo deliciada na cadeira enorme do avô.

“Olha, mamãe! Eu sou a chefona!” A menininha comentou aos risos, até perceber a presença do pai. “Papai, você chegou!”

“Como está a minha princesinha?” Perguntou o loiro, se aproximando e pegando a menina loirinha no colo, vendo seus olhos azuis se refletindo no rosto dela. “Muita saudade do papai, é?”

“Muita, muita, muita. Não deu nem para esperar você chegar em casa.” Contou Ella, sorrindo. “A mamãe tinha tanta coisa para fazer, e eu queria brincar. Aí eu pedi para vir aqui.”

“Mas aqui não é lugar para criança, meu amor.” Se desculpou o pai, encarando a namorada.

“É, Ella, seu pai está muito ocupado com as amigas dele aqui para poder dar atenção para você. Vamos para casa e eu tento brincar um pouco com você. Quem sabe no final de semana ele arranja um tempo para te dar atenção.” Margarida apanhou a bolsa, irritada.

“A mamãe está triste?” Perguntou Ella, preocupada.

“Não, filha, a mamãe só está cheia de coisa para fazer. E como você sabe, eu preciso fazer sozinha.” Margarida pegou a menina do colo do pai, séria. “Diz tchau para o seu avô, meu amor.”

“Tchau, vovô.” Disse a pequena, tristonha.

“Tchau, meu amor. Hã, Jorge, porque você não vai com elas? Sabe, tira o resto do dia de folga.” Alberto propôs depressa para o filho. “Aí você brinca com essa pequenina e ajuda a Margarida com o que quer que ela precise fazer.”

“Claro, pai, ótima ideia. Marga, você espera eu pegar minhas coisas?” Ela apenas assentiu, sem encará-lo. “Quer vir comigo, pinguinho?”

“Sim.” Ella se atirou nos braços dele, animada.

~*~

“Margarida? Podemos conversar?” Pediu Jorge. Ela estava na cama dos dois, dobrando as roupas que havia acabado de tirar do varal.

“Sobre o quê? Sobre a sua amiguinha ou sobre ela ser o motivo de você ficar cada vez menos tempo em casa?” Perguntou ela, sem encará-lo.

“Do que você está falando?” Ele estava verdadeiramente surpreso. “Eu não tenho passado menos tempo em casa.”

“Ah, não? Então quanto tempo você tem passado em casa?” Ela levantou irritada. “Você sai todo dia às 7h, antes mesmo da Ella acordar. Parou de almoçar em casa, como sempre fez desde que ela nasceu. Chega perto das 18h e meia hora depois já está saindo para a faculdade, sem jantar. E quando volta, às 23h, a menina já está dormindo e eu exausta por ter que manter a casa funcionando sozinha.”

“Já falei que podemos contratar uma diarista.”

“Com que dinheiro, Jorge?” Gritou Margarida, explodindo. “Você quer pedir mais dinheiro para os seus pais? Ou para os meus? Já não basta eles pagarem a escola da Ella, o plano de saúde dela? Quer pedir para eles bancarem a faxina da casa também?”

“E o meu salário?”

“Caralho, você trabalha com contabilidade, mas não consegue nem fazer a da sua própria casa. Nós ganhamos o apartamento, mas temos que pagar condomínio, taxas, conta de luz, de água, manutenção das coisas que quebram e colocar comida na mesa, tudo com o seu salário. Eu faço malabarismo com o dinheiro.”

“E o que você quer que eu faça, peça um aumento?” Ele começou a se irritar também.

“Não, Jorge, eu queria poder colocar dinheiro em casa. Mas eu não consigo uma merda de um emprego, porque eu não fiz bosta nenhuma de faculdade, porque enquanto você seguia vivendo sua vida, eu fiquei presa dentro de casa cuidando da nossa filha.” Nessa altura lágrimas já se formavam nos olhos da morena. “Eu tive que dedicar 24 horas do meu dia, todos os dias da minha semana, dos últimos quatro anos e meio, a cuidar, amar e educar a Ella. Eu não pude fazer faculdade, trabalhar, conhecer novas pessoas ou sair da bolha a que se resume o mundo dela.”

“Eu sei disso, Marga, e te agradeço por ter se dedicado a nossa filha.” Ele tentou amenizar o tom, mas isso só a irritou.

“E você acha que eu quero sua gratidão, Jorge? Eu quero minha vida de volta. Eu quero me olhar no espelho e me ver arrumada, bonita, feliz. Eu quero poder me ver pelada e não querer chorar de ver o estado que os meus peitos estão aos 21 anos, por ter amamentado ela por quase três anos. Eu quero conhecer pessoas, quero poder ter uma profissão, ser alguma coisa além da mãe de alguém.” Margarida chorou, irritada. “E principalmente eu não quero depender de você, Cavalieri, para não ficar na pior quando você me trocar por uma piranha gostosona.”

“O quê? Você realmente acha que eu estou cogitando de trocar por outra pessoa?”

“Qual é, Jorge, sejamos francos. Você perdeu o tesão em mim faz muito tempo. Tem meses da última vez que nós transamos, e nem me beijar direito você beija. A única coisa que te mantém aqui é a rédea do seu pai e a Ella.” Margarida voltou a sentar na cama, focando nas roupas. “Tem horas que eu realmente queria ter dito não, Jorge. Não ter aceitado transar com você só de camisinha. Minha vida seria tão diferente, eu teria realizado tantos sonhos. E não ficado presa a uma realidade pesadelo, em que eu não me tornei nada, além de um nada.”

As palavras sumiram da boca de Jorge diante daquele desabafo. Ele suspirou, deixando o quarto e logo depois o apartamento. Margarida chorou ao ouvir a porta da frente batendo, deitando na cama e abraçando o travesseiro do namorado, começando a chorar com força, até afinal adormecer.

~*~

Quando Jorge retornou, já havia caído a noite. Encontrou o apartamento silencioso e foi direto em busca de Margarida. A encontrou adormecida na cama, o rosto ainda marcado pelo choro. A ajeitou melhor e terminou de dobrar as roupas da melhor forma que conseguiu, colocando no lugar o que sabia.

Apanhou as de Ella e rumou para o quarto da filha, chamando pelo nome da menina.

Ella? Ella, filha, vamos tomar banho?” Abriu a porta e encontrou o aposento vazio. “Ella?”

Rodou todo o apartamento, chamando por ela e a procurando. Depois de alguns minutos, já estava preocupado.

“Margarida? Marga, acorda, por favor.” Ele despertou a morena, que abriu os olhos assustada. “Cadê a Ella?”

“Como assim, Jorge? Ela está no quarto, brincando.”

“Não, não está. Ela não está em parte algum do apartamento, eu já procurei e chamei para todos os lados.” Ele avisou, vendo-a arregalar os olhos. “Será que ela desceu na Alicia?”

“Não sei, vamos ver.” A moça se levantou e os dois saíram do apartamento correndo.

O casal de amigos havia retornado do Rio de Janeiro no final do ano anterior, após terminar a faculdade. Alugaram o apartamento alguns andares abaixo dos amigos, na intenção de ficar perto da afilhada.

E realmente, sabendo disso, a pequena vivia fugindo dos pais para ficar com os padrinhos brincalhões e divertidos. E isso geralmente lhe rendia broncas e castigos, mas Ella não ligava muito.

“Hey, pessoal, beleza?” Paulo abriu a porta, sorrindo. “Ué, cadê a baixinha?”

“A Ella não está aqui?” Perguntou Margarida, desesperada.

“Não, nós não a vimos hoje.” Alicia apareceu da cozinha de pijama. “Por quê?”

“Ela não está no apartamento. A Margarida passou mal e dormiu, e eu tive que sair um pouco. Quando voltei, a Ella não estava em lugar nenhum.” Jorge mentiu rapidamente, nervoso. “Será que ela foi na casa de algum dos amigos?”

“Eu vou até a portaria perguntar se o seu Ricardo viu ela.” Paulo já correu para o elevador.

“E eu vou ligar para as mães das amiguinhas dela. Ali, me ajuda?” Margarida já entrou no apartamento com a amiga.

“Vou dar outra olhada no apartamento, ver se ela não voltou para lá.” Jorge correu para as escadas.

~*~

O porteiro não a tinha visto durante todo o dia. Ela não estava na casa de nenhuma das amiguinhas do prédio, e tampouco elas tinham a visto. No apartamento, já revirado dez vezes, nem sinal da pequena.

Jorge e Margarida acabaram ligando para os pais, que agora estavam ali. Já tinham batido de porta em porta do prédio todo, e estavam quase chamando a polícia.

Ella não deixou o condomínio, o porteiro teria visto.” Garantiu Paulo, sério.

“E se ela saiu pelo estacionamento?” Questionou Sérgio, preocupado.

“Alguém a teria visto, pai.” Margarida tinha o rosto entre as mãos. “Eu não devia ter dormido.”

“Calma, filha, não é sua culpa.” Andréia a abraçava pelos ombros.

“Eu vou descer no parque, ver se ela realmente não está por lá.” Jorge se levantou, angustiado.

“Eu vou junto, dar uma volta pelo parque aquático.” Paulo o seguiu.

Se dividiram assim que chegaram a área de convivência do prédio. Jorge chegou ao parquinho escuro, gritando o nome da filha diversas vezes. Remexeu os arbustos, viu os bancos e embaixo deles. Quando se preparava para voltar, um pequeno barulho chamou sua atenção na casinha de plástico.

Ella?” Chamou, se aproximando. Abriu a portinha, encontrando a menininha adormecida ali dentro, parecendo um anjinho. “Ah, Ella.”

Ele se ajoelhou e a pegou no colo. Assim que foi abraçada pelo pai, a menina acordou, assustada.

“Papai? O que aconteceu? Por que está escuro?” Perguntou baixinho, agarrada no pescoço dele.

“Por que você está aqui, minha princesa? E por que não avisou eu e a mamãe que iria descer?” Jorge conferiu se ela estava bem, sem nenhum machucado. “Nós estávamos preocupados, sem saber onde você estava.”

“Desculpa, papai.” Pediu Ella, baixinho.

“Não tem problema, pinguinho. Só não faça isso de novo.”

“Não é por isso, papai.”

“É por que então, princesa?”

“Por fazer a mamãe ficar triste.” Ella soluçou. “É por minha causa que ela está assim, brava. Porque eu fico chamando ela, deixando ela cansada. Eu ouvi ela dizendo que não queria que eu tivesse nascido.”

Ella, escuta o papai: tem horas que os adultos falam coisas que não querem, porque estão realmente cansados. A mamãe está cansada e está falando coisas que não são verdades, e que ela não sente para valer. Eu e ela não falamos, sempre, que você é tudo para a gente?” A pequena assentiu. “Então, você acha que nós estamos mentindo? Você e a coisa mais importante da nossa vida, Ella, e nós não te trocaríamos por nada nesse mundo.”

“E por que a mamãe está tão cansada, papai?”

“Coisas de adulto, meu amor. Mas você não deve se preocupar, ou se magoar, por nada que nós dissermos. Eu e sua mãe te amamos e fazemos tudo, tudo, tudo por você, filha. Está bem?” Perguntou o pai e ela concordou. “Agora vamos voltar. A mamãe está morta de preocupação com você.”

“Eu só ia dar uma voltinha, mas acabei dormindo.” Explicou Ella, deitando no ombro do pai.

“Tudo bem, filha, mas não faça mais isso.” Jorge avistou a família reunida no hall de entrada e gritou. “Encontrei ela.”

Todos se viraram em sua direção depressa. Margarida disparou a correr assim que avistou a filha nos braços dele, logo a puxando para o próprio colo.

“Ah, meu amor, meu amorzinho. Não faça mais isso, pinguinho, nunca mais. Quase matou a mamãe de preocupação.” A moça beijou o rosto da filha inteirinho. “Você está bem, Ella?”

“Estou sim, mamãe. Eu só acabei dormindo na casinha de bonecas, só isso.” Se desculpou a pequena, deitando a cabeça no ombro da mãe e sorrindo minusculamente. “Eu não quis te acordar para avisar que estava vindo brincar, me desculpa.”

“Quase nos matou de susto, baixinha.” Paulo repreendeu a afilhada.

“Desculpa, padrinho. Desculpa dinda, vovó, vovô. Foi sem querer.” Ella disse baixinho, sem jeito.

“Tudo bem, anjinho. O importante é que você está bem.” Alberto sorriu, beijando o rosto da neta. “Podemos ir embora.”

“O quê? Não, vamos subir, fazer o jantar e...” Começou Rosana, mas foi cortada por Andréia.

“Acho que eles precisam descansar, Rosana. Acabaram de passar por um grande estresse, todos nós passamos. Nada melhor do que um bom banho e cama.” Sugeriu a mãe de Margarida, piscando para a mãe de Jorge.

Os dois casais mais velhos se despediram rapidamente e foram embora. A pequena família e o casal Guerra-Gusman foram para o elevador, e o casal desceu no terceiro andar, se despedindo dos amigos e dizendo que os ligassem se precisassem de algo.

Já no apartamento do sexto andar, os três foram direto para o banheiro. Jorge colocou a banheira da suíte para encher, enquanto Margarida despia Ella e conferia se não havia nenhum machucado no corpinho da menina.

“Eu to bem, mamãe.” A pequena riu da preocupação.

“Mas é meu trabalho conferir, pinguinho. A mamãe se preocupa com você.” Margarida sorriu, beijando o rosto dela.

A mulher se levantou e tirou a própria roupa, a apanhando no colo. Caminhou com ela para a banheira, vendo que Jorge já estava lá dentro, de cueca. Quando tomava banho com a filha ele tinha esse cuidado, mesmo que a namorada achasse desnecessário.

“Quer contar para a mamãe porque você saiu hoje, filha?” Perguntou Jorge depois de um tempo.

“O que aconteceu, Ella?” Questionou Margarida, massageando os delicados fios loiros da filha.

A pequena então recitou novamente tudo o que havia dito para o pai no parquinho. Quando terminou, estava novamente envergonhada, enquanto sua mãe em lágrimas.

“Desculpa a mamãe por ter dito essas coisas, pinguinho.” Foi só o que a mãe disse, a abraçando. “Isso não é verdade, nem por um minuto.”

“Eu sei, o papai me disse. Ele disse que você só está cansada, porque tem problemas de adulto para resolver, e por isso às vezes fala besteiras.” A pequena secou as lágrimas da mãe.

“Mesmo assim, eu não deveria falar essas besteiras. Ella, você é a coisa mais linda e mais importante que aconteceu na minha vida, você é minha bebezinha. Por mais que às vezes eu fique cansada, eu nunca, em momento nenhum, mesmo que eu diga, desejo que você não tivesse nascido, filha. Minha vida não teria o menor sentido sem ter você.” A mãe a abraçou com força. “Quando você era só um bebê, nós quase te perdemos, e foi a pior sensação da minha vida. E por isso eu te garanto, te juro de pé junto, Ella: eu não te trocaria por nada no mundo, nunca acredite nisso, mesmo que me ouça dizendo.”

“Foi quando eu ganhei essa cicatriz? Sabe, que vocês quase me perderam?” A menina indicou a linha longa e comprida em seu peito e os pais assentiram.

“Você sabe, Ella, eu e sua mãe tivemos você quando erámos muito novinhos, estávamos na escola ainda. E ter um filho, tão novo assim principalmente, não é algo fácil. Então tem horas que eu e sua mãe agimos de forma errada, por impulso, e acabamos te magoando. Mas não é por querer, porque isso é o que nós menos queremos. Nós estamos aprendendo a ser pais, e nos esforçando para ser, sempre, os melhores pais possíveis para você.” Jorge acariciou o rostinho da pequena, que sorriu.

“Vocês são os melhores pais do mundo, não tenham dúvidas. Eu não queria nenhum outro papai ou mamãe que não fossem vocês dois.” Ela os puxou para um abraço, fazendo os dois sorrirem.

“E nós não iríamos querer nenhuma outra filha, em nenhuma outra época. Você foi e sempre vai ser a melhor coisa que nós ganhamos, pinguinho. Nós te amamos, está bem?” Margarida sussurrou, beijando o rosto da filha.

~*~

Jorge colocou Ella na cama e a cobriu. A menina havia adormecido entre ele e Margarida, já que ele não tinha ido para a faculdade naquele dia. Realmente, era bastante raro que colocasse a filha na cama, já que nos finais de semana ela sempre chegava em casa dormindo, e durante semana já estava no décimo sono quando ele voltava da aula.

“Margarida? Podemos conversar.” Pediu ele novamente, mas dessa vez a morena estava mais calma.

“Podemos.” Ela estava encolhida em seu lado da cama, silenciosa.

“Eu preciso te contar uma coisa, que é o motivo de eu estar passando mais tempo fora de casa.” Jorge sentou em frente a ela.

“Não sei se quero ouvir.” Suspirou a moça.

“Não é o que você está pensando, Marga, eu juro.” Ele segurou a mão dela. “Como você sabe, eu sou contador na empresa do meu pai. Mas eu não quero isso. Digo, eu quero trabalhar com contabilidade, mas não dentro de uma empresa.”

“Como assim, Jorge?”

“Eu estou abrindo um escritório de contabilidade, Margarida.” Confessou o rapaz, a surpreendendo. Por isso tenho ficado tanto tempo fora de casa, meu pai está me ajudando a ir atrás de tudo. Ele é meu primeiro cliente oficial e já me recomendou para vários amigos empresários, que também estão contratando os meus serviços. Eu estou operando da empresa do meu pai por enquanto, até conseguir um escritório e abrir a empresa toda certinha, mas logo eu vou ser meu próprio chefe.”

“E por que você não me contou, Jorge? Por que escondeu isso de mim?” Perguntou Margarida, dividida entre a animação com a novidade e a chateação por ele não ter contado para ela antes.

“Eu sei que nós estamos nos virando nos 30 para pagar as contas, Marga, e eu não queria te preocupar com antecedência. Até porque, tem outro motivo para eu estar indo trabalhar por conta própria. Se eu abrir meu próprio escritório, eu posso ficar com a Ella durante parte do dia, e assim você pode voltar a estudar.”

“Espera, você está falando sério?”

“Muito. Eu sei que você queria fazer odontologia, Margarida, e que seus pais prometeram que pagariam a faculdade quando você quisesse fazer. E também sei que você não quer a Ella sendo criada pelos avós, mimada o tempo todo e essas coisas. E eu não podia levar ela para a empresa do meu pai, então você precisava ficar cuidando dela. Mas, assim que eu abrir a minha própria, isso vai mudar.” Jorge explicou seu plano. “Eu estou fazendo aulas todos os dias, direto, para poder me formar esse semestre ainda. E então você pode começar a faculdade no meio do ano, sabe? Você estuda de manhã, enquanto eu fico com a Ella. A tarde, enquanto ela está na escola, eu visito meus clientes e você faz o seu estágio. E a noite nós dois nos dedicamos integralmente a ela e a nossa família. Porque, por mais que você não acredite, Marga, eu ainda te amo demais e eu estou aqui porque eu quero, porque eu amo a nossa família.”

“Se você nos ama mesmo, nunca mais faça isso, Jorge. Por melhor que sejam as suas intenções, seus segredos podiam ter nos destruído.” Margarida estava chorando àquela altura. “Famílias não tem segredos, casais muito menos. Nós não somos casados, mas é como se fossemos, e temos que decidir as coisas juntos, Jorge. Entendeu?”

“Entendi. Desculpa por isso, meu amor.” Ele a puxou para seu colo, passando suas pernas pelos lados de seu quadril. “Principalmente por, na minha ânsia de fazer tudo, ter te deixado de lado e te feito acreditar que eu não te queria mais. Porque eu te quero, Margarida, tanto quanto eu queria naquela primeira vez, há cinco anos atrás.”

“No nosso aniversário de um ano de namoro, quando nós transamos pela primeira vez e fizemos a Ella.” Ela riu baixinho, sentindo ele beijar seu pescoço.

“Nosso maior presente de aniversário, hã?” O loiro riu. “Eu não consigo acreditar que já fazem mais de seis anos que nós estamos juntos, sabia? E nem que eu consigo te amar ainda mais do que amava quando começamos a namorar.”

“Você ama, é?”

“Amo, muito mais. Eu sempre achei que o amor se desgastava com o tempo, e no entanto, o meu só se torna mais e mais forte a cada dia que passa.” Ele prometeu, as mãos passando pelas pernas dela. “E sobre o que você disse hoje, sobre os seus seios e o seu corpo... Eu ainda acho eles muito atraentes.”

“Cala a boca, Jorge.” Ela escondeu o rosto no ombro dele, corada. “Eu vi a Alicia pelada sem querer esses dias... Eu to um bagaço perto dela. Meus seios estão tão caídos por causa de ter amamentado por tanto tempo.”

“Se isso é um complexo tão grande para você, nós providenciamos uma plástica. Mas, se minha opinião vale de algo, eu continuo tão tarado por eles quanto era desde o começo.” Ele disse descendo a camisola dela e revelando os assuntos da conversa.

“Mesmo depois de ter pegado várias meninas enquanto estávamos separados?” Evitavam tocar naquele assunto, mas ele surgia às vezes, inevitavelmente.

“Eu vi peitos realmente caídos, Marga, sem nunca ter amamentado. Acredita em mim, amor... Você continua linda e gostosa, só não consegue colocar isso na cama porque está complexada.” Ele prometeu, se inclinando e beijando cada um dos seios dela, fazendo-a suspirar. “E eu estou tomando como minha missão pessoal te fazer mudar de ideia sobre isso.”

“Acho que vou gostar disso.” Ela sorriu para ele enquanto se livrava completamente da camisola.

~*~

No começo de junho, chegou o aniversário de 22 anos de Margarida. Como nos anos interiores, ela não estava com a mínima vontade de comemorar, em parte porque grande parte dos amigos que tinha estavam morando fora da cidade. Mas agora, com todos de volta, Jorge não queria deixar passar em branco.

Então organizou um pequeno jantar na casa dos pais, de surpresa. Convidou todos os amigos deles, mais seus pais e alguns outros conhecidos, como Helena e Renê com os filhos, Graça, Firmino, e os pais de alguns amigos.

Até mesmo Ella conseguiu manter segredo, e foi feita uma festa surpresa afinal. A jovem ficou muito feliz de rever tantas pessoas queridas e receber o carinho delas em um dia tão importante.

Pôde colocar as fofocas em dia com as amigas, dançaram todos juntos, fizeram uma pequena bagunça, da qual Ella participou animadamente, agora perto de completar cinco anos. A menina, é claro, foi o grande xodó de todos ao longo da noite.

Na hora dos parabéns, a aniversariante foi acompanhada pelo namorado e a filha. Assoprou as velinhas de 22 com a ajuda da menininha e cortaram o bolo, os três juntos.

“Acho que devia rolar um discurso.” Aporrinhou Alicia.

“Acho que você devia ficar quieta, comadre.” Rebateu Margarida.

“Não, é uma boa ideia. Vocês me permitiriam falar algumas palavras sobre a Marga?” Pediu Jorge e os amigos concordaram. “Posso, amor?”

“Claro, lindo.” Ela sorriu para ele, Ella agarradinha em seu colo.

“Bom, outro dia eu estava pensando em quando nós começamos a namorar, você lembra?” Ela sorriu enquanto assentia. “E inevitavelmente, eu lembrei do Mário e da Marcelina, e da situação cabulosa que vivemos por quase um ano, enquanto eu e ela fingíamos namorar para fazer ciúmes em vocês, e vocês dois tentaram fazer o mesmo, e acabou com todo mundo gritando e brigando antes do baile de final de ano.”

“Cara, essas coisas nós deletamos, por favor.” Pediu Mário, escondendo o rosto no cabelo da namorada, que gargalhava.

“E então, no baile, você finalmente aceitou namorar comigo e fez de mim o maldito mais feliz do mundo, Margarida. E, mesmo que de forma entroncada e inesperada, você continuou me fazendo, a cada dia e segundo, mais e mais feliz. Você me deu amor incondicional, mesmo quando eu não merecia. Você me perdoou, mesmo com todos os meus erros. Você me deu essa coisinha linda, a nossa Ella, e teve paciência e carinho para me ajudar a amadurecer e me tornar pai, mesmo que eu ainda esteja longe da mãe incrível que você é. Você me deu uma família, Margarida, a nossa família, e eu não consigo ser grato o bastante por tudo isso.”

Podia se ouvir alguns fungos e lencinhos sendo sacados ao longo do local. Margarida tentava encobrir seu choro com Ella, mas a pequena não queria ficar grudada na mãe, e sim observando sua reação às palavras do pai.

“Você é uma filha incrível, uma grande amiga, uma amante sem precedentes, o amor da minha vida, e aprendeu a ser a melhor mãe de todo o mundo. Eu não vou esquecer nunca a sua cara quando ouviu a primeira palavra da nossa filha, que merecidamente foi mamãe. Nós dois temos muita sorte de ter você na nossa vida, meu amor, e de poder estarmos aqui hoje, comemorando seu aniversário. Então, nós temos um presente para você.” Avisou Jorge, surpreendendo a todos.

Ele ajudou Ella a descer do colo da mãe, e a pequena correu até sua mochilinha. Tirou com cuidado algo de um dos bolsinhos, escondendo entre as mãos e correndo de volta para os pais. Jorge a pegou no colo, sorrindo.

“Eu amo nossa família do jeitinho que é, porque ela é perfeita. Mas tem algo que está faltando, e que me incomoda um pouco. É um detalhe bem pequeno, mas que tem um significado enorme. Então nós temos uma pergunta para você, amor, e espero que pense nela com carinho.” Declarou Jorge, vendo a namorada prender a respiração.

“Você aceita casar com o papai, mamãe?” Perguntou Ella, estendendo a mãozinha e revelando um lindo anel, com um solitário brilhando intensamente.

Pequenos gritos de surpresa e euforia preencheram o ambiente, enquanto Margarida permanecia sem fala. Ela encarou o par de loiros de olhos claros à sua frente, sorrindo intensamente para ela.

A resposta era bem óbvia, porque não sabia mais viver sem eles dois.

“Sim.”

~*~

Marcaram o casamento para alguns meses depois. Se casaram no final de fevereiro, em um sítio próximo à São Paulo, algo bem diferente do que esperariam de Jorge, mas que combinava perfeitamente com Margarida.

Ela usou um vestido simples, todo em renda, bastante delicado. Para combinar com o estilo dela, Jorge abriu mão do smoking e usou calça e colete acinzentados, além de camisa e gravata brancos. Ella era a própria definição da meiguice e fofura enquanto caminhava em frente à mãe e o avô, carregando as alianças que os pais trocariam.

Todos os presentes usavam roupas em cores claras a pedido dos noivos. A cerimônia não foi extensa, e Ella ficou todo o tempo junto dos pais, segurando suas mãos. Quando chegou a hora de trocarem alianças, o pai a surpreendeu.

“Vem aqui, princesa.” Pediu ele, se ajoelhando em frente à ela. “Não é só com a mamãe que eu estou assumindo um compromisso hoje, filha, é com você também. Eu prometo sempre, em cada dia da minha vida, honrar meu papel de seu pai, te ensinar os valores de uma mulher forte, determinada e dona do próprio destinado, que não abaixe a cabeça e nem seja submissa de ninguém, que seja livre e independente. E te dar o exemplo de como um homem deve te tratar, pela forma que eu trato a sua mãe, para que quando chegar a hora, e se chegar, e você quiser escolher alguém para passar o resto da sua vida, você tenha uma boa referência do que procurar. Você aceita isso, pinguinho?”

“Aceito, papai.” Ela deu um sorrisinho faltando o dente da frente para ele. Margarida entregou um colar para ele, que Jorge colocou no pescoço da filha. “Uma fadinha? Que linda.”

“Está selada a nossa aliança, filha.” Sorriu o pai, beijando a mão e a testa dela, antes de se levantar de novo, ficando frente a frente com a futura esposa. “E a nossa também.”

“Eu te amo.” Sussurrou a mulher, lhe dando um selinho.

“E eu amo você.” Ele devolveu a declaração.

“Bom, então só cabe a mim desejar que sejam felizes. Pelos poderes investidos a mim, eu agora vos declaro marido e mulher. Sr. Cavalieri, pode beijar sua esposa.” Pediu o padre, provocando sorrisos.

“Nem precisa pedir duas vezes.” Avisou o loiro, puxando a esposa pela cintura e selando seus lábios embaixo de uma chuva de aplausos.

Logo foram envolvidos por dois bracinhos magrelos e sorriram entre o beijo, se afastando e pegando Ella do chão, enchendo o rosto da garota de beijos.

Afinal, como já tinham percebido anos antes, não importava mais o que fizessem de suas vidas, Ella estaria sempre no centro de tudo.


Notas Finais


Mais um capítulo, afinal!
Gente, como eu amei escrever esse capítulo. Deu um trabalho monstruoso de pesquisa, mas foi tão prazeroso de fazer e escrever, vocês não estão entendendo!
Bom, alguns links das roupas do casamento:
Vestido Marga: http://enfimnoivei.com/wp-content/uploads/2016/03/a-tarde-4.jpg
Roupa Jorge: http://cdn1.mundodastribos.com/390401-3.jpg
Roupa Ella <3: https://comeramaredecorar.files.wordpress.com/2012/08/daminha-02.jpg
Essa foi a parte dois, a próxima é a final!
Espero que estejam gostando!
Um beeeijo e podem ir lá no ask encher o saco!
Está divertido, na verdade! HAHAHAHAH
http://ask.fm/WPKiria


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