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História Ellaire - Nascimento


Escrita por: alguemtimido

Capítulo 1 - Nascimento


Ellaire acordou em meio às cinzas. A primeira memória de sua nova vida era a de um pôr do sol da cor de fogo. Vermelho e laranja e azul, intenso, consumindo o céu e exigindo atenção. Pássaros pretos, como as cinzas em que deitava, pontilhavam o céu, e o vento mexia as árvores, convidando-as para dançar. O pôr do sol era tão forte e vibrante que tudo ao seu redor perdia cor. Tudo era preto. As árvores eram preto, a grama era preto, os pássaros eram preto, os animais eram preto, Ellaire era preto. Mas ela sabia que preto não era as cores de verdade. As árvores eram verde e marrom, a grama era verde, os pássaros eram coloridos de azul e amarelo, os animais eram coloridos também, marrom, e Ellaire era

Ellaire era… o que era Ellaire?

Ela não sabia dizer.

Olhou para si. Era uma mulher, sem dúvidas. A intimidade recolhida lhe dava a certeza disso. O que mais ela era? Olhou para sua mão. Nua. Sem cicatrizes, sem marcas, limpa, como uma luva. Olhou para suas pernas. Lizas, cheias e magras. Olhou para seus pés. Pequeno, bem cuidado, delicado, os dedos enfileirados em ordem de tamanho crescente. Olhou para seus braços. Finos, sem músculos, como varetas rodeadas com pouca carne. Olhou para sua barriga. Pequena, chula, cintura fina, muito fina, com uma curva na mudança da cintura para o quadril, largo, nem tão largo. Mas ali, bem no finzinho, na protuberância que o osso de sua bacia fazia na pele, bem perto da perna, mas acima, estava uma marca. Destoante do resto do corpo, liso, puro como o de um recém nascido. A marca tinha um ponto central, avantajado como a sombra da cabeça angular de um pássaro, longo, acabando em uma divisão como a da língua de uma cobra peçonhenta, com duas asas saindo de cada lado. Como… como… como uma Fênix. Como Ellaire?

Uma marca de nascença? Sua cor amarronzada dizia que sim, mas algo em sua mente dizia que não, mas algo dentro de si dizia que sim. Ellaire achou que mais ou menos.

Nascença? Ellaire nascera? Pensou. Ficou de pé, limpando as cinzas grudados em seu corpo nú, encarou o horizonte. Ellaire era alta? Baixa? Comparado com o que? A que idade? Olhou para cima, para o lado. Aproximou-se de uma árvore, baixa, comparada a suas vizinhas, mas a única próxima a Ellaire, confinada no meio de um campo, grande, vasto, em cima de um barranco, na beirada, de frente ao pôr do sol acima da floresta de árvores escuras e densas. A árvore era fina, franzina. Seu tronco era tão magro como o tronco de Ellaire, seus galhos tão finos como os braços de Ellaire, suas raízes tão leves quanto os pés de Ellaire, suas folhas tão abundantes quanto o cabelo de Ellaire. Mas a árvore era maior que Ellaire. Sem contar seus galhos, ela era cinco mãos de Ellaire maior. Com os galhos, ela não conseguia medir. Mas ainda era mais baixa que sua irmãs. Ellaire gostou da árvore. A árvore era sua igual. Mas Ellaire não era uma árvore. De novo, a mesma pergunta: o que era Ellaire?

Olhou ao redor, estudando o campo em que se encontrava. Redondo, cinza e preto e branco, sem vida, grande, cercado por árvores altas e fortes e brutas. O ar cheirava a fogo, fumaça, como pinho queimado, como mato queimado, como pele queimada, como morte. Ellaire assustou-se. Morte? Houvera um incêndio? Alguém morrera queimado naquele lugar? Onde era aquele lugar?

Impossível saber. O fogo queimara e levara tudo. Para longe, bem longe. Longe de Ellaire, de forma que ela nunca fosse saber. Suspirou.

Ouviu. O vento batia nos galhos, movendo-os em vai e vem e volta. Os pássaros gritavam no céu, apenas alguns cantavam, esquilos corriam nas florestas ao redor e abaixo de Ellaire, a respiração de Ellaire era constante, ritmada, como o coração de Ellaire. E, se prestasse bem atenção, se concentrasse, Ellaire conseguia ouvir o sangue correndo dentro de si, coisas abrindo e fechando, chegando e indo, absorvendo e excretando. O som da vida. Ellaire estava viva. E isso deixou-a muito feliz.

Aquela foi a primeira vez que Ellaire sentiu a sensação de felicidade. Tudo era novo para ela, o toque do vento, da grama, do som, da luz. E tudo era familiar, como se já tivesse vivido tudo e sentido tudo em uma outra vida. Mas aquela era a vida de Ellaire, não de outro alguém, e aquelas eram as sensações e primeiras vezes de Ellaire. Apenas dela. E ela gostava disso.

Ellaire correu, para longe da árvore, do por do sol preste a tornar-se noite, da floresta abaixo, do campo, das cinzas, dos pássaros, dos esquilos, de tudo que conhecia. E tudo que conhecia se resumia aos minutos que passara ali naquele campo e aquele campo em que passara seus minutos.

Ellaire entrou na floresta.

 

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A floresta era densa, úmida e verde escura, e os animais se escondiam nas folhagens verdes. O sol havia se despedido a pouco e a Lua tomava lugar como rainha. Ellaire viu. Folhas e galhos, frutos e ramos, cipós e moitas. Ellaire ouviu. Passos, cochichos, asas, tremores. Os animais brincavam de esconde-esconde com Ellaire. Mas Ellaire queria ver, queria ouvir, queria sentir e provar tudo ao máximo. Só que era noite, e os animais de bom senso se escondem a noite, porque os reis, os caçadores, reinam e caçam quando o Sol termina sua vigia e a Lua estende seu manto de ignorância, fazendo vista grossa para os pecados que se desenrolam abaixo. Mas Ellaire não sabia disso. E Ellaire continuou, embrenhando-se mais e mais e mais e mais floresta a dentro.

Os pés despidos de Ellaire arranhavam e esfregavam, tão nus, tão limpos e desprotegidos, agora eram punidos por troncos e folhas e espinhos, o suficiente para sangrar. Mas eles não sangraram. Os troncos pontudos e folhas espinhentas tocavam e exploravam a pele de Ellaire, seus braços, seus ombros, seu busto, sua face, suas pernas, sua cintura, seu quadril, suas costas e os lados de suas nádegas. Mas Ellaire não se machucava, não se arranhava, não se furava e não sangrava. Ellaire permanecia limpa e pura como uma recém nascida, como ela era. Porque fogo arde e queima, transforma tudo em menos e menos em nada, e não se luta contra fogo, não se toca e não se sente fogo, fogo vai e vem, mas fica e cresce e diminui e cospe. E Ellaire não sabia, mas Ellaire era fogo.

Ellaire tocou o tronco, forte, redondo, quebradiço e riscado de uma árvore, alta e escura. O toque era bruto, áspero e firme. Ellaire gostou da sensação. Tocou um galho de uma árvore franzina, chocho, tão pequeno e fino, prestes a se quebrar, e o toque era bom, sem firmeza, vacilante, mas o galho era duro e liso. Ellaire tocou as folhas do galho, verdes e abundantes, lisas e completas e furadas, diferentes do galho e do tronco. Ellaire tocou outras folhas de outro galho de outra árvore, tão fino quanto o último, mas quase vazio, e espetoso, morrendo, suas folhas marrons e se desfazendo, quebrando em pedaços menores ao toque, que caíam no chão e Ellaire pisava em cima, fazendo um som engraçado.

Ellaire alheia, não ouviu o silêncio. A falta dos sussurros, dos cochichos, das pisadas e dos insetos. Apenas Ellaire se ouvia e apenas Ellaire não ouvia. Um caçador caçava. Cercava, calculava, analisava, silencioso, silenciou a todos os atentos, em busca dos desatentos, comida. Ele deixara a árvore, de noitinha, onde passara horas, observando, descansando, se preparando, esperto, porque a noite é hora de caça, de comer, das forças para sobreviver mais um dia, mais um dia e outro dia. E o caçador agora caçava Ellaire.

Atrás da árvore grande, de frente ao arbusto de frutas venenosas, longe da lagoa seca, do lado da árvore morta, encarando a menina estranha, estava a onça. Abaixada, com suas juntas curvadas, a cauda baixa em movimentos lentos e felinos, o corpo quase tocando o chão, os músculos tensionados, a cabeça encarando, os olhos grandes e redondos, dilatados, pronta para o golpe, o pulo, o bote, o fim.

Mas então, nada.

A onça parara. Não mexera um músculo. Não piscara. Algo estava errado e onça é sábia, esperta, sabe que há momentos para se atacar, momentos para se esperar e momentos para se retirar. Olhou, encarou, saiu da posição. Rodeou, farejou, observava, atenta, cada detalhe, procurando a singularidade, o que estava errado, o que a fizera parar, qual instinto animal aguçado soara. A garota era estranha. Diferente. Humanos passavam naquela floresta, de vez em vez e quando e quando - numa mesma época sempre, e os animais sabiam que tinham que fugir quando eles chegavam, em bando, com armas empunhadas e peitos estufados, montados em montarias bravas e barulhentas, prontos para matar à luz do dia, sem se importar em pegar mais do que devia, mais que o suficiente, abastados e gananciosos eram os humanos. Mas aquela garota era diferente. Nunca vira uma tão pequeno, tão chula, tão vibrante e tão quente. Como fogo. Fogo que vibra e que queima e que esquenta, fogo que humanos usam e ameaçam e matam e destroem. Fogo da cor dos cabelos da menina. A onça também nunca vira um humano despido, nu, à deriva, eles sempre tão cheios e estofados com couro e lã e seda e penas. Tudo naquela garota era diferente. E diferente, ainda mais com humanos, é perigoso. Onça é esperta, mas onça velha é sábia, e aquela onça sabia o que devia e não devia. E ela não devia aquela garota.

Então, a onça foi embora. Para longe da garota fogo, perigo, e estranha, em busca de um novo alvo, outro animal desavisado.

E Ellaire nunca soube.


Notas Finais


Muito obrigada por ler a história, espero que nos deem uma chance e continue acompanhando, prometo tentar não decepcionar.

Com amor, Alguém.


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