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História Ellaire - Vida


Escrita por: alguemtimido

Capítulo 2 - Vida


Ellaire dormira no campo. Achou seu caminho de volta, uma trilha criada em suas memórias, através de árvores e troncos e pedras e paus, até a clareira sobre o precipício em cima da floresta.

Ela deitara sob a sombra de sua árvore igual, aquecida pelo esconderijo dos olhos da Lua, fria, nula, alheia e mortal. Encolhida, castigada pelos ventos frios do norte, Ellaire não sentira frio, seu fogo interno era quente e tenro, o suficiente para mantê-la e aquecê-la, como uma mãe que abraça sua cria e protege do frio com sua pelagem e corpo, mas algo em sua mente dizia para tomar cuidado com fogo, porque ele cresce e curva e volta quando cutucado, e fogo queima sem olhar a quem, vivo, morto,parado, em movimento, alto, baixo, forte, fraco, todos são iguais perante fogo e todos são cinzas sob seus pés.

E Ellaire acordara sob o sol fraco da manhã, despertando com os olhos grudados, o cabelo despenteado, o canto da boca babado e a pele cheia de cinzas, em seus cabelos e corpo, braços, pernas, barriga, costas, pés, mãos, na camada externa de suas partes íntimas e em sua face, em sua boca e bochechas, em seu nariz e seus cílios, suas orelhas e sua testa.

Ellaire era cinzas.

Bufou, expelindo cinzas. Levantou-se, tapeando levemente seu corpo, chacoalhando-se, expulsando as cinzas de si.

Mas elas não eram o problema. Pelo menos, não o maior.

O grande problema era uma dor desconhecida, vinda de dentro de si. Ellaire sentira isso horas atrás, mas não considerara como algo importante, perigoso, porém, agora, ela era forte, lancinante, exigindo atenção, impossível negar, um ponto de dor, sugando suas forças, seu raciocínio, forçando uma vontade, um instinto que Ellaire ainda não conhecia. Uma necessidade que vem da barriga, de dentro, com força, necessária, indispensável, o que mantém aqueles como Ellaire. Fome.

Mas como poderia Ellaire saber? Ellaire nunca sentira fome, necessidade, dor. Agora, ela era uma chama prestes a se apagar, pálida, fraca e encolhida, se continuasse assim, logo se apagaria. Tão fácil e leve como o sopro da boca volumosa do vento, tremulante e tênue, um passo entre estar e não estar, entre existir e não existir. Viver ou não viver.

E Ellaire não sabia.

Mas uma voz dentro de si gritava, esperneava, lutava como um instinto, primeiro, fraca, reprimida pela dor nauseante, depoi, foi crescendo, maior, Maior, MAior, MAIor, MAIOr, MAIOR.

Um grito clamando por vida.

Viva.

Corra.

Cor

Co

Com

Coma.

Então Ellaire correu, sob fortes protestos e negações de seu corpo, sua mente, sua barriga, seu cérebro, todos, correu, olhando, analisando,procurando. Procurando o que? O que a manteria viva? O que a salvaria? O que tiraria a dor?  A terra, marrom e dura e mole e poeira? Perto. A grama, verde, pisada, amassada, leve? Perto. As folhas baixas e escuras e verdes dos arbustos? Perto. O tronco, marrom e bruto e duro e doloroso? Perto.

O que, o que, o que, o que, o que, o que, o que?

Então Ellaire viu.

O pássaro marrom e amarelo e pequeno e barulhento, voou. Acima da terra e da grama, por entre os troncos e as folhas, ignorando os arbustos escuros, direto para a circunferência, gorda, cheia, pequena, vermelha, sem chance, levada em um rasante rápido e paranóico, entre o bico, tão rápido e certeiro, Ellaire nunca soube seu destino. Mas ela percebera algo dalí. Andou até aquela árvore. Olhou o fruto suculento, liso, seco, recheado e pequeno. Vermelho como seus lábios. Feitos para estarem dentro deles. Tão longe deles.

A árvore onde o fruto se encontrava era alta, muito alta, enorme. Alta demais para Ellaire, tão pequena e reduzida, tão leve e fácil, tão diminuta e limitada, como alcançar algo tão alto e tão longe?

Simples, mas não tão simples. Fácil, mas não tão fácil.

Escalar era a resposta. Ellaire não sabia escalar. Ellaire mal sabia andar. Ellaire estava faminta. Ellaire estava fraca. Ellaire era fraca. Ellaire tinha todas as chances contra si. Mas Ellaire não pensou nisso. Tudo em que Ellaire podia pensar era sobreviver, comer, continuar, ver, tocar, cheirar, mais, mais, mais, Ellaire queria mais, ela tivera tão pouco. Não queria que acabasse, não ainda, não tão cedo, não tão logo.

Então ela tocou o tronco, o toque familiar com o da noite passada, bruto e robusto e duro, apoiou seus pés na casca rachada e quebradiça daquela velha e grande árvore, e colocou suas mãos na parte mais firme que pôde encontrar, descolando uma parte da madeira do tronco. E então, ela subiu um pé, uma perna, outra perna, um braço, outro braço, mais uma perna, o braço para apoio, a perna, o braço. Era difícil, pesado e cansativo, seu estômago doía, como uma faca afiada enfiada em sua barriga, sem piedade, sem sangrar, apenas dor. Mas Ellaire continuou. O tronco escapou da mão, esquerda, raspou nele, um pedaço afiado, doído, o suficiente para cortar, mas isso não aconteceu. Nem farpas enfiaram-se em seus pés conforme pisava mais e mais acima, nem seus joelhos sangraram ou rasgaram quando caiu no chão, em cima de gravetos pontudos e espetados, nem arranhou quando escorregou e se raspou na árvore em batidas doloridas. Sua pele, seu corpo, desnudo, pequeno, delicado, macio, fraco. Nada sangrou, nada deixou marcas, não na pele do fogo. Ellaire era fogo. E Ellaire escalou aquela árvore, após várias tentativas, e quedas e subidas e descidas e batidas, ela subiu, apoiou em troncos e folhas e gravetos e espinhos, até o mais alto, mesmo após alcançar a região dos frutos, tão vermelhos e suculentos, que podiam extinguir a dor em si, Ellaire continuou, subindo, acima, mais, até o topo. Até seu alvo.

O fruto mais roliço, gordo, cheio, maduro, suculento, cheiroso, de uma árvore, o mais difícil de pegar, o que fica escondido, longe da vista, dos olhos, do olfato, do nariz, do toque, da pele. O melhor fruto era um prêmio, nem todos podiam pegar, nem todos mereciam. Ellaire achava que merecia, sabia que merecia. Então, continuou, até chegar em galhos fracos e finos e franzinos, quase vamos, mais alto, mais difícil, mais perigoso, mais valioso. Lá estava ele. Vermelho, pesado, inteiro, perfeito, seu. Continuou a subir, a vários metros do chão, se caísse, morreria. Se perdesse o equilíbrio, caia. Se tremesse, perdia o equilíbrio. Se temesse, tremeria. Se tremesse, seria o fim.

E aquele não era o fim.

Ellaire equilibrou-se no galho mais forte e mais próximo de seu prêmio, ficou em pé, como um bambu, crescido, chacoalhando para lá e para cá a cada baforada do vento, a cada toque errado, prestes a se quebrar, cair, mas se mantendo, curvo e reto, mole e firme. Respirou fundo, encarando, a sua frente, em cima, o que esperava, o que desejava, o que necessitava. Andou, um pé, direito, esquerdo, direito esquerdo, estica as mãos, equilíbrio, direito, esquerdo, direito, vento, balanço, tremor, respiro, esquerdo, direito, esquerdo, direito. Lá estava, tão próximo, tão belo. Do tamanhos dos seus olhos, tão grandes, da cor do seu cabelo, tão vermelho, tão gordo quanto suas bochechas, fofas. Esticou o braço, esquerdo. Tocou o fruto. Arrancou. Sentiu sua textura. Liso, duro, mas não tão duro, mole, mas não tão mole, perfeito. Sorriu. Aproximou o fruto da boca, mordendo-o, inteiro dentro de sua boca, enchendo-a, mastigou, um líquido delicioso e doce, levemente azedo, preencheu sua boca, enquanto seus dentes destruíam a forma, a estrutura, daquilo que tanto desejou, cada mordida uma deformação. O doce sabor era uma novidade,  único, precioso. Azedo e doce, pequeno, aguado e consistente. Tão bom. Seu estômago rugiu. Mais.

Olhou ao redor, tão em cima, não havia muitos. Teria que descer alguns galhos para chegar à parte mais lotada. Começou sua descida, mais fácil, não menos perigosa, tomando cuidado com cada passo, cada movimento, cada tremido, cada vento. E, mais rápido do que imaginava, estava no lugar desejado, a parte mais lotada e vermelha e cheirosa da árvore. Sua boca salivava, baba escorrendo do canto das bocas, suas mãos pegando o maior número do assassino de sua dor possível. Sua boca logo estava cheia, com mais do que podia aguentar, seus dedos e boca gosmentos, com o líquido levemente avermelhado do fruto escorrendo. Ellaire sentia-se extasiada, a sensação de encher o vazio era extenuante, prazerosa. Ela ficou lá, comendo o que podia, até não aguentar mais. Até perceber que não tinha mais necessidade, teria que descer.

Ellaire estava satisfeita, cheia, pesada, acostumada. O primeiro movimento que tomou causou um passo em falso, desequilíbrio, queda. Ellaire caiu de uma altura três vezes mais alta que si. De cara no chão duro. Com galhos e espinhos e folhas ariscas e insetos. De cara com a dor pura e excruciante. O suficiente para quebrar seus ossos e abrir buracos em seu corpo, para sangrar e para morrer.

Ou, pelo menos, teria caído. 


Notas Finais


Essa capítulo está um pouco maior, espero que gostem ^^


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