Faz alguns meses que aconteceu, mas aquela adolescente, agora órfã, lembrava-se de tudo o que viveu com exatidão de detalhes: era um sábado, tempo chuvoso, acordou inspirada a cozinhar e aproveitou que sua mãe tinha ido trabalhar e só voltaria no fim da tarde, planejou fazer-lhe uma surpresa, faria espaguete, sua receita preferida com direito a pudim de sobremesa. Depois de tudo pronto arrumou a casa e a esperou, mas sem que percebesse o tempo passou e minutos de atraso se transformaram em horas e cada vez mais tarde; depois tem memórias que prefere esquecer, pois em um noticiário uma batida entre um ônibus e um caminhão era reportada e na lista de mais de cinco vitimas fatais o nome de Virginia de Souza Carvalho, sua mãe, foi anunciado, o que aconteceu posteriormente não sabe ao certo, já fugiu de orfanatos onde a tratavam como animal – talvez pior que isso –, e agora a única coisa que lhe resta é a ultima foto juntas que leva no bolso onde tem lembranças de um tempo feliz que certamente não retornará.
Victoria Carvalho, 14 anos, sempre morou com a mãe, filha única, alta, pele morena com cabelos cacheados e negros assim como a cor dos olhos, sempre muito tímida, nunca foi de fazer amizades, prefere ficar na dela. De uma família humilde do interior da Bahia, quando tinha nove anos mãe e filha mudaram-se para São Paulo em busca da tão sonhada virada de vida que, infelizmente, não aconteceu, ou pelo menos não como o esperado, reclamar estava fora do seu repertório, claro que em casa passava alguns apertos, todavia sobreviviam bem aos meses. A matriarca do lar por questão de baixa escolaridade fazia somente alguns bicos, porém sabia fazer de tudo um pouco e sempre muito bem feito, quase impecável; um dos melhores dons dela era na cozinha e ensinou o que pôde a sua filha, afirmava com convicção que a comida é a mesma só muda de nome e preço e o importante, seja para fazer de um prato simples a um mais sofisticado, era dar o melhor de si, gostavam de inventar na cozinha, reproduzir receitas de livros e revistas, esse amor pela culinária foi o que elas compartilharam e o que as unia ainda mais.
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As ruas de São Paulo estão sendo a nova moradia de Victoria, cada dia é uma nova aventura, mas não como aquelas da literatura, pois na vida real é tudo muito mais cruel e geralmente, não existe “FELIZ PARA SEMPRE!”. Apesar do que vive, considera as suas aflições um tanto leves, esta nesta situação fazia alguns meses, porém havia pessoas que estava há anos e nada mudou, e afinal ainda consegue tomar banho, às vezes.
– Victoria! Victoria! – Quem chamava era Caio, um dos garotos que fugiu do orfanato. Não eram amigos, mas se conheciam mais que os outros.
– Oi Caio, o que foi?!
– Toma. – Falou lhe entregando uma tangerina enquanto descascava outra em sua mão.
– Uma tangerina! – Começou a descascar, sem conseguir conter a alegria de receber um alimento depois de dois dias sem nada. – Onde conseguiu? – Ele hesitou em responder.
– Consegui em um mercadinho na outra rua. – Proferiu com uma voz duvidosa.
– Não minta pra mim! – Disse o encarando.
–E-Eu... Olha o Lucas... – Foi interrompido.
– VOCÊ ROUBOU? – Indagou gritando em tom de incredulidade e reprovação.
Caio puxou o ar com força quase como se estivesse buscando coragem. – Quer saber?! Sim, eu roubei! E quer saber de outra coisa, eu não me arrependo disso, porque caso não tenha percebido, se não fizermos isso morremos de fome e, além disso, o Lucas me falou que se ficar com ele terá o que comer e... – Foi cortado novamente.
– Se você tem a mente tão fraca a ponto de acreditar no que o Lucas diz é um particular seu, mas eu não sou e prefiro morrer de fome a ter que roubar – Afirmou lhe jogando a tangerina de volta.
– Mas Victoria... – Ele respirou fundo em arrependimento, percebeu que havia ido longe demais, contudo o que poderia fazer? Ali estava claro que não pensavam do mesmo modo. – Então, esquece! – Se levantou e saiu pelo caminho que tinha vindo, provavelmente foi ao encontro do seu mais novo amiguinho.
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