"A vida é muito importante para ser levada à sério." - Oscar Wilde
Desde que chegou ao Campo dos Degredados, Edward vira o céu somente avermelhado e feio, com uma aparência velha e desgastada. Porém, enquanto prosseguia, com Cardeal e Dion na garupa, o príncipe começou a imaginar que estava anoitecendo, pois o vermelho estava sendo substituído rapidamente por um púrpura intenso e misterioso, que ia se apagando cada vez mais.
Começou também a pensar que estava ficando tarde, e imaginou por um momento se voltaria para casa. Então olhava ao redor, aquele povo triste e miserável, sofrendo, isolado do resto do mundo, e espantou isso da cabeça. Continuou a prosseguir, até que Dion bateu em seu ombro.
- É ali, senhor. – disse ele, apontando para um estabelecimento à frente.
Algumas árvores secas e mortas ladeavam um caminho curto até um imenso edifício velho de madeira que se erguia, de costas para uma densa floresta. Das janelas, podia-se ver a luz acesa, e a música e a conversa ecoavam em altas vozes. Dion e Edward desceram do cavalo, e o príncipe ordenou um sério “Fique aqui” para ele. Cardeal sentou-se no chão obedientemente, enquanto os dois se aproximaram da entrada.
Ao passar pelas portas duplas, Edward deixou cair o queixo. A taverna estava cheia, lotada de personagens perdidos. Todos eles bebiam e riam, conversavam entre si, enquanto, num palco, do extremo lado direito de onde eles entraram, uma bela mulher loura cantava a plenos pulmões, enquanto um sujeito mal encarado tocava um piano e um careca magrelo tocava um saxofone.
- Por aqui, senhor. – chamou Dion.
Do outro lado do lugar, um imenso balcão de madeira maciça jazia, iluminado por diversas bebidas ameaçadoras nas prateleiras. Diversos homens com expressões cansadas e irritadas tomavam um gole, sentados em bancos altos de madeira, apoiados no balcão. Detrás dele, um imenso polvo vermelho os servia com seus diversos tentáculos.
- Vamos, vamos, rapaz! – disse uma voz esbravejante. – Casa cheia, hoje!
Assim que Dion e Edward sentaram, um homem passou pela entrada do balcão e correu pelo outro lado. Quando o viu, Edward teve que se segurar na borda do banco para não cair. O corpo do homem estava lá, com as esplendorosas vestes de pirata, carregando a cabeça debaixo do braço.
- Boa noite, Capitão. – desejou Dion.
- Já disse pra você não entrar na minha taverna, garoto! – bradou ele, irritado, pousando a cabeça no balcão. Seus cabelos negros estavam cobertos por um belo chapéu negro de pirata, com uma pena branca e comprida. Seu rosto era pálido e macilento, e ele tinha uma barba rala e escura que dava a impressão de não crescer mais. Um de seus olhos era castanho e escuro, mas o ouro era branco e leitoso – um olho de vidro. Enquanto a cabeça voltou-se para Dion, seu corpo começou a ajudar o imenso polvo, servindo os outros homens. – Boa noite de qualquer forma... Mas você não vai beber nada hoje, ouviu?! Você é menor de idade, e eu não quero ser preso pelos homens do Enforcado!
- Enforcado? – questionou Edward. O Capitão olhou para ele, desconfiado, e Dion lhe deu uma cotovelada por detrás do balcão.
- Ah, o Enforcado! – exclamou Dion, revirando os olhos e sorrindo. – Eu e ele somos muito chegados, você sabe... Só estamos procurando uma ajudinha, Capitão.
- Quem é o seu amigo? – questionou o pirata, sem dar ouvidos a Dion. Seus olhos percorreram Edward como se pudesse adivinhar de onde ele vinha só observando-o. – Nunca o vi por essas bandas antes...
- Ninguém conhecido. – menosprezou Dion, tentando desconversar, e se metendo entre a cabeça do Capitão e Edward. – Pode nos ajudar ou não?
O Capitão tirou os olhos lentamente de Edward e passou para Dion, fechando a cara. Seu corpo se aproximou, do outro lado do balcão, limpando dois copos e pondo-os diante deles. Atrás deles, a mulher no palco parou de cantar, dando lugar a um homem, ao som de um violão e uma rabeca.
- O que vocês querem? – murmurou ele, mastigando as palavras, ainda desconfiado. – Eu já disse que não quero problemas!
- Calma, homem... – tranquilizou Dion. – Só queremos uma ajuda... precisamos encontrar alguém... e você conhece todo mundo da aldeia...
O Capitão não deu ouvidos ao elogio; pelo contrário, apertou o olho bom, encarando Dion.
- Prossiga, seu malandro. – murmurou ele. – Quem vocês querem encontrar?
- Precisamos da ajuda de alguém que tenha certas habilidades... – disse o garoto, baixando o tom de voz e sorrindo. – Alguém que saiba ler umas bobagens antigas do meu mestre...
- Para o diabo com aquele gato fanfarrão! – exclamou o Capitão. – Você quer alguém que leia as runas antigas! Para quê, com mil demônios, ia precisar ler algo em runas antigas?!
- Fale baixo, seu perna de pau! – Dion moeu as palavras entre os dentes. Olhou em volta para ver se alguém havia os ouvido, e então se inclinou para mais perto da cabeça do Capitão. Edward o imitou. – Tenho uma tarefa para fazer, num lugar muito longe. Mas o problema é que o mapa que o Mestre Gato tem está escrito em runas antigas.
- Se estão procurando um tesouro, - disse o pirata maliciosamente. – estou muito interessado em uma parcela...
- Não estamos procurando algo. – disse Edward, atraindo a atenção dos dois. – Estamos procurando alguém.
- Ah... – sussurrou o Capitão, interessado. – Você fala, então.
Dion bufou, olhando ao redor mais uma vez.
- Pode nos ajudar ou não? – questionou ele. – Estamos com o horário meio apertado.
- Você veio do Outro Lado, não veio? – perguntou o Capitão, ignorando Dion e continuando atento ao príncipe. – Lá, do País das Fadas. Você veio em nome delas...
- Não é nada disso! – Dion apressou-se em dizer, irritado.
- Eu vim para ajudar vocês. – esclareceu Edward, calmamente, sem desviar o olhar do pirata. – Eu juro. Só quero ajudar. Mas para isso, preciso da sua ajuda primeiro.
O Capitão continuou encarando-o nos olhos por alguns minutos, com um sorriso assassino no rosto.
- Tem alguém que pode ajudar vocês... – começou ele.
No instante seguinte, a porta da frente irrompeu e vários homens, altos como armários, entraram na taverna. Eram todos pálidos e de olhos penetrantes e vítreos, como se fossem cristalizados. Tinham cabelos sedosos e louros, e armados de lanças, espadas e arcos.
- Adelfo. – murmurou Edward, virando-se de costas para os elfos.
- Quem é esse? – questionou Dion.
- Líder dos elfos. – informou o príncipe. – Se já souberem que eu deixei aquele lado, provavelmente estão atrás de mim.
- Mercenários malditos. – rosnou o Capitão. – Na minha taverna não...
- Capitão...
Mas antes que qualquer um deles pudesse dizer alguma coisa, o corpo do Capitão pegou a sua cabeça e, carregando-o debaixo do braço, levou-o até Adelfo e seus asseclas.
- Senhores! – saudou o pirata, com saudosismo. – Posso lhes oferecer uma mesa?
- Não pretendemos ficar. – disse Adelfo. – Estamos aqui a trabalho.
- Uma mesa não seria nada mau... – murmurou um dos elfos.
- Cale a boca! – exclamou Adelfo, parecendo estar irritadiço. Bufou, impaciente, e voltou-se para o pirata. – Estamos procurando um foragido. Um jovem rapaz deixou o Outro Lado, e a Rainha das Fadas quer ele de volta no seu lugar.
- Um foragido, é? Interessante... – o Capitão olhou para Dion e Edward pelo canto dos olhos. – Eu sou conhecido aqui por saber de todos que vivem nos Campos dos Degredados...
- E é exatamente por isso que viemos até você, pescoço curto... – rosnou Adelfo.
- ...E a única pessoa de diferente que eu vi foi um rapaz... – murmurou o Capitão, torcendo a boca e coçando a barba, fingindo estar pensativo. – Era um rapaz bonito, louro, boa pinta...
- Esse mesmo! – exclamou Adelfo, interessado. – Onde o desgraçado está?!
Edward engoliu em seco, no seu banco, enquanto Dion segurou seu braço despercebidamente.
- Eu vi o cara hoje de manhã. – mentiu o pirata. – Atravessou a fronteira de volta, fugindo dos homens do Enforcado...
Os elfos miraram o pirata com desconfiança.
- O príncipe voltou... – murmurou um dos elfos.
- Príncipe, é? – interessou-se o Capitão. – É, ele deve ter se metido em alguma encrenca com o Enforcado, e voltou correndo pra casa! Aqui é uma terra só para homens corajosos!
Os homens da taverna gritaram e levantaram as mãos, saudando as palavras do Capitão. Alguns elfos de Adelfo não conseguiram esconder um sorriso lateral de satisfação. Adelfo, porém, não se deixou convencer.
- Você não se importaria se eu passasse algum tempo na sua taverna, não é? – sugeriu ele. - Meus homens precisam descansar...
- Claro que não, oficial! – exclamou ele, tirando o chapéu. – Ninguém passa pela taverna do Capitão Sem Cabeça sem se divertir um pouco! Venham, vou lhes mostrar uma mesa...!
- Enquanto você serve meus homens, vou aproveitar para conversar com alguns moradores. – argumentou Adelfo.
Edward e Dion trocaram olhares espantados e temerosos, alterando sua respiração. Quase podiam ouvir os passos de Adelfo, se aproximando do balcão.
- Mas é claro... – o Capitão não conseguiu esconder seu desagrado em sua voz. Voltou-se para os demais elfos, conduzindo-os a uma mesa vaga. Em seguida, exclamou: - Zarim! Venha atender essa mesa! Velkan! Por que não nos entretém com um truque hoje?
Uma figura surgiu aos saltos, pulando entre as mesas, e alcançou Adelfo.
- Boas noites, oficial! – exclamou o rapaz. – Meu patrão mencionou que o senhor e seus homens precisam se distrair um pouco, essa noite!
- E você, quem é? – perguntou Adelfo, com descaso.
O rapaz riu sem se importar com o modo rude do elfo. Enquanto isso, Edward começou a ficar mais nervoso no balcão.
- Precisamos sair daqui. – murmurou ele para Dion.
Dion assentiu, enquanto espiava por cima do ombro. O rapaz, Velkan, conduziu Adelfo até as mesas onde estavam os elfos. Rindo, ele saltou sobre a mesa e, fazendo algumas acrobacias, fez chover pétalas de rosas brancas sobre todos, no meio de uma nuvem púrpura e cintilante. Todos do bar riram e aplaudiram, enquanto o rapaz saltou de mesa em mesa até o palco.
- Veja isso, alteza. – riu Dion.
- Não tem graça, Dion. – disse Edward, ansioso para ir embora. – Estamos quase recebendo nossa sentença de morte...!
Mas Dion riu, assistindo o show. Edward arriscou olhar também. O Capitão havia sentado os elfos de costas para o balcão, e de frente para o palco, onde o rapaz, Velkan, distraía-os. Ele devia ter uns vinte e poucos anos, pouco mais alto que Edward, robusto, cabelos escuros e espalhados, olhos escuros também, muito bem delineados, rosto marcado pela barba crescente, e um sorriso gatuno e inquietante. Edward não pode deixar de franzir o cenho enquanto assistiu-o. Sabia porque o Capitão chamou-o para fazer o show para os elfos; ele era bonito, esperto, intrigante, o tipo que prende a atenção de todos. Estava tentando distrair os elfos para que fugissem.
- Poderiam pedir para Velkan ler suas mãos, senhores! – exclamou o Capitão, sorrindo. Quando Dion e Edward olharam para o pirata, ele piscou o olho bom para eles. – Ele pode ler qualquer coisa!
- Hahaha! – riu Velkan, saltando no palco enquanto fazia malabarismo com as garrafas de rum.
Edward e Dion se entreolharam. Haviam captado a mensagem.
- Uma amiga minha ficaria muito satisfeita em conhecê-los hoje, senhores! – exclamou Velkan, dando piruetas no ar. Ele fez alguns movimentos com as mãos e luzes e fumaças coloridas o cercaram. Então houve uma pequena explosão de brilho, e uma bela mulher surgiu no lugar onde ele estava, no palco. Era morena, de cabelos escuros e olhos penetrantes. Assim como Velkan, ela saltou pelas mesas, dançando e rodando os vários tecidos da saia multicolorida, prendendo a atenção dos elfos.
No segundo mais tarde, o Capitão entrou novamente atrás dos balcões, vasculhando as gavetas. Dion e Edward observaram-no, assustado. Um copo caiu e quebrou, atraindo a atenção de Adelfo. Ele olhou para trás, no mesmo momento em que Edward olhou por cima do ombro para verificá-los. O elfo franziu o cenho, começando a reconhecê-lo, enquanto o príncipe voltou-se, assustado, para o dono da taverna.
- Preciso fugir...! – exclamou.
- Capitão?- disse Velkan, surgindo detrás do balcão.
- Vocês dois, - o Capitão apontou para Velkan e Edward. – precisam sair daqui.
- Como...? – o príncipe o interrompeu, mas o rapaz pareceu entender tudo, porque assentiu imediatamente, pegando uma trouxa debaixo do balcão.
O Capitão encontrou o que procurava; um molho enferrujado de chaves. Ergueu-o, ao mesmo tempo em que Adelfo contorceu o rosto de fúria, levantando-se com os olhos postos em Edward. O Capitão entregou as chaves para Velkan e ele voltou-se para Edward, estendendo a mão.
- Vamos!
Edward saltou por cima do balcão, aterrissando do outro lado, enquanto Adelfo gritou “É ELE!”, sacando sua espada. Os outros elfos pareciam estar entorpecidos pela dança da jovem e não despertaram com seu grito. Espumando, Adelfo avançou para o balcão. Velkan pôs dois dedos na boca e assoviou, e no mesmo instante a mulher dançou até o elfo e o envolveu com tecidos coloridos, saltando ao seu redor.
- Vá, senhor! – exclamou Dion, e Edward lançou um olhar agradecido ao jovem e ao Capitão, assentindo.
Velkan puxou-o pelo braço e os dois correram para os fundos da taverna. Chegaram ao fim da linha, e Edward já ouvia Adelfo rugindo de raiva e correndo à sua procura. Colocou a mão na bainha da espada.
- Não é a hora pra lutar. – disse Velkan, escolhendo as chaves.
- Você não quer morrer, quer?! – exclamou Edward, irritado.
O rapaz não lhe deu atenção. Pegando a chave escolhida, mergulhou no chão e enfiou-a em uma fechadura que o príncipe não havia percebido. Abrindo a porta de um alçapão, o rapaz puxou o príncipe e ambos mergulharam na escuridão, fechando a porta com um estrondo, antes de ouvir o grito enfurecido de Adelfo.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.