"No desespero e no perigo, as pessoas aprendem a acreditar no milagre. De outra forma não sobreviveriam." - Erich Remarque
Algumas horas mais cedo...
O coração de Edward batia como louco. Sentia que mais um pouco, poderia ser capaz de soltá-lo pela boca. Assim que seguiu Velkan para dentro do túnel, debaixo da taverna do Capitão Sem Cabeça, ele desabou no chão de terra, sentindo o ar faltar-lhe. Parecia estar perdendo os sentidos lentamente, enquanto estava ali deitado na terra, cada vez mais ofegante.
De repente, vislumbrou uma luz acender em algum ponto próximo a ele. Uma chama vívida serpenteava na mão aberta de Velkan; o rapaz se aproximou dele e lhe ofereceu a mão livre. Edward pegou-a e levantou-se depois de certo custo. Sentiu-se fraco, mas encher seus pulmões de ar, uma vez em pé, o revigorou um pouco mais.
- Venha, não podemos demorar muito. – chamou Velkan, avançando pelo túnel escuro.
- Onde isso vai dar? – questionou Edward, sentindo o mal estar passando lentamente.
- É um túnel curto, vai parar no meio da floresta. – contou ele. – O Capitão Sem Cabeça o fez para fugas rápidas.
- Muito útil. – comentou o príncipe. – Então...
Mas Velkan parou de repente, imobilizado. Edward se assustou. Ele fez sinal para o príncipe fazer silêncio, e o único ruído que ouviram foi o crepitar do fogo nas mãos de Velkan. Então, ouviram vozes. Passos imensos faziam um eco surdo dentro do túnel. Gritos. Velkan arregalou os olhos.
- Precisamos sair daqui... – murmurou ele. – Vamos!
Os dois dispararam a toda velocidade que puderam. Edward sentiu seu coração disparar mais uma vez, e voltou a ofegar. A chama que Velkan levava se apagou conforme ele corria, e os baques surdos que ecoavam lá de cima aumentaram cada vez mais. Eles correram, sem poder ver para onde iam. Por duas vezes, diante de uma bifurcação, ele sentiu Velkan puxá-lo pelo braço pela direção certa. Os gritos e brados estavam cada vez mais altos e presentes. Edward tinha certeza de que não estavam sozinhos no túnel.
Depois de muito correr, Edward e Velkan vislumbraram uma luz noturna, brilhando ao longe. A lua mostrava a saída do túnel, meio escondida entre galhos e folhas secas. Conforme o túnel ia terminando, seu espaço ia se estreitando, de modo que aos poucos, ambos tiveram que engatinhar para fora. Velkan saiu primeiro, olhando entre as folhas para verificar se era seguro, e em seguida, saltando para fora do buraco escuro, e Edward saiu logo atrás dele. O ar puro da noite preencheu seu pulmão e mais uma vez, ele voltou a recobrar suas forças.
Olhando em volta, Edward constatou que Velkan realmente falara sério: o túnel terminava no meio da floresta, literalmente. A única coisa que conseguia ver ao seu redor eram árvores altas e macabras, muitas delas já mortas e secas, enchendo o chão com folhas.
- Vamos, não temos tempo... – apressou Velkan, colocando a trouxa que pegara na taverna nas costas e prosseguindo. – O Capitão não nos denunciará, mas se aqueles imbecis dos elfos contatarem os homens do Enforcado, eles nos encontrarão logo.
- Pra onde iremos? – questionou o príncipe.
- Pra minha casa. – respondeu ele, prosseguindo pela floresta.
- Não vai ser lá o primeiro lugar aonde vão nos procurar? – duvidou Edward, ainda olhando em volta, segurando firme na bainha da espada.
- Ninguém sabe onde eu moro. – disse Velkan, com um quê de quem encerra o assunto. Concordando, Edward o seguiu.
Andaram muito pela floresta, caminhando sorrateiramente e sempre de olhos e ouvidos bem alertas para qualquer coisa. Não conversaram mais e, naquele silêncio, Edward sentiu falta de sua família. Sua esposa, seus irmãos e seus pais deveriam estar preocupados... mas não podia voltar... estava só no começo da sua tarefa. Alguém precisava fazer o que ele estava fazendo agora, e se não fosse ele, talvez ninguém fizesse. Começaram a andar por uma parte mais jovem da floresta, onde as árvores eram mais fortes e vivas, ainda cheias de folhas.
Depois de muito andarem, Velkan parou-o num determinado ponto. Ouviram vozes e passos rápidos. Edward se assustou, mas Velkan fez sinal para que se acalmasse. Eles pararam, rentes à uma árvore grande, de tronco grosso e seco, onde espiaram pelos lados, para tentar enxergar alguém. Então Velkan ergueu a mão no ar, e de repente, uma escada de corda desceu do nada. Ele fez sinal para o príncipe e começou a subir. Olhando várias vezes ao redor para garantir que não estavam sendo vistos, Edward hesitou um pouco, mas começou a subir, pouco atrás de Velkan. Subiram até mergulhar no meio dos galhos e folhas da árvore, e quando Edward não sabia mais onde aquilo terminaria, deparou-se com surpresa com uma grande casa na árvore, escondida entre as folhas. Velkan esperava-o numa pequena varanda, e ajudou-o a içar-se para dentro, em segurança.
Apesar do tamanho, a casa circular, construída rusticamente ao redor do tronco da árvore, não parecia muito luxuosa. Edward seguiu Velkan até a porta da frente, que ele abriu com uma chave velha que tirou da trouxa que carregava.
O interior da cabana era ainda mais simples. Velkan apressou-se em acender uma vela, para iluminar o ambiente. Estava tudo muito bagunçado, cheio de papéis, livros, vasos com plantas e frascos vazios, espalhados por todo canto. Havia uma mesa, um caldeirão, uma cama, uma escrivaninha e um fogão à lenha com panelas velhas. A casa circular não parecia ter divisórias entre um cômodo e outro, de modo que Edward não sabia se haviam entrado numa sala de estar ou na cozinha.
Velkan puxou uma cadeira junto à mesa grande e a ofereceu silenciosamente para Edward sentar. O príncipe sentou, e o rapaz colocou a vela na mesa diante dele.
- Então... – disse Edward, temeroso por quebrar o silêncio. – Você é um bruxo.
- De certa forma. – concordou Velkan, voltando-se para uma imensa prateleira cheia de livros surrados. Tirou dois ou três e soprou o pó deles, antes de levá-los até a mesa. – Já me chamaram de muita coisa. “Bruxo” é a primeira vez.
- E do que mais te chamaram?
- Você não precisava da minha ajuda pra alguma coisa? – interrompeu ele, erguendo uma sobrancelha.
Edward sustentou o olhar de Velkan por um segundo. Engoliu em seco e apalpou as vestes, tirando de um dos bolsos internos o mapa que Félix havia lhe dado. Desenrolou-o sobre a mesa, estendendo-o aos olhos de Velkan à luz da vela.
- Conhece o Félix? – perguntou Edward. – Ganhei isso dele.
- Ah, eu sempre soube que aquele gato rabugento escondia uma coisa ou outra... – murmurou Velkan, sorrindo, inclinando-se para dar uma olhada no mapa. – Você quer ir até lá, então? Até esse... Marley?
- Marley?
- É o que está escrito aqui. – disse Velkan, apontando para as runas que Edward não conseguia ler. – Que “aqui” você irá encontrar o Marley.
- Deve ser o irmão do Félix. – murmurou Edward, admirando o mapa.
Velkan observou-o por um momento, enquanto o príncipe encarava o mapa.
- Por que um personagem rico da classe alta se preocuparia com alguns degredados? – questionou Velkan.
- Achei que você não quisesse falar de assuntos pessoais. – retrucou Edward.
Velkan sorriu de lado, erguendo uma sobrancelha e colocando as mãos para cima, em sinal de rendição.
- Sabe alguma coisa sobre o Livro dos Contos? – questionou Edward.
O rapaz assentiu calmamente, e incentivou o príncipe a continuar.
- Ele foi destruído, há pouco tempo. – contou ele. Velkan franziu o cenho. – Isso quer dizer que os personagens de contos de fada estão livres das suas histórias. É o que me fez acordar, e ver todas as injustiças que as fadas tem feito em nosso país.
- E agora você quer impedir que elas aprisionem vocês de novo. – adivinhou Velkan. – Suponho que esse tal de Marley vá ajudar.
- Eu espero que sim. – admitiu o príncipe. – Por isso preciso ir até ele, o mais rápido possível. Já tenho fadas e elfos atrás de mim, tentando me impedir, e se você estiver certo, esse tal de Enforcado também logo começará a me caçar.
- Não sei se quero comprar um serviço desses... – murmurou Velkan. – Você está sendo procurado por todo lugar, e se eu te ajudar, minha cabeça vai à prêmio também...
- Sinceramente, acho que você não tem muitas escolhas. Você me ajudou a fugir da taverna do Capitão Sem Cabeça, lembra?
Velkan encarou-o, contrariado, cruzando os braços e bufando.
- Vamos fazer um acordo. – propôs ele. – Eu levo você até o fim do mapa. Leio as runas que precisam ser lidas e te levo até o Marley em segurança. E em troca...
- O que? – Edward apertou os olhos, encarando-o. – O que você quer?
Velkan suspirou.
- Quero ir pro outro lado. – respondeu ele. – Quero uma chance de recomeçar minha vida, na capital.
- Tudo bem... – Edward hesitou um pouco, mas estendeu a mão para Velkan. – Você me leva até o Marley e eu dou um jeito de te levar até a capital.
- Feito. – Velkan apertou a mão do príncipe, sorrindo satisfeito.
Os dois se encararam por um minuto, até que algo chamou a atenção de ambos. Um barulho estranho, batendo na porta. Os dois se levantaram, Edward com a mão na bainha da espada, Velkan sacando um canivete da cintura. Os dois caminharam até a porta da frente, dando passos temerosos e cheios de cautela. Quando Velkan alcançou a porta, ele e Edward trocaram olhares. Assentiram um pro outro, com as armas em punho. Velkan girou a maçaneta e abriu a porta.
Do lado de fora, uma grande coruja castanha dava bicadas na madeira da porta, apressada.
- É só uma coruja. – disse Edward.
- Desgraçada! – exclamou Velkan. – Me deu um baita susto...!
Edward agachou-se para ela, acariciando sua cabeça, e ela lhe deu bicadinhas carinhosas no dedo. Então, ele percebeu que havia uma carta amarrada à ela. Reconheceu o laço que a prendia à ave.
- É da minha esposa! – exclamou Edward, trazendo a coruja e a carta para dentro.
- Você é casado? – surpreendeu-se Velkan. – Não acha que é muito novo pra isso?
- Eu tenho quase a sua idade! – defendeu-se o príncipe.
- Exatamente! – exclamou o rapaz.
Edward olhou feio para ele e ele se calou. Desamarrou a carta da coruja e a abriu. Leu-a em silêncio, debaixo da luz da vela, sob o olhar curioso de Velkan. Ao ler o conteúdo da carta, não conseguiu evitar expressar sua emoção.
- Está tudo bem...? – perguntou Velkan.
- Meu pai está morto. – disse Edward, amassando a carta com amargura. Ele fechou os olhos e suspirou, sentindo uma dor crescente no peito. – Sabe o que isso significa, não é? Ëventyr está sem um rei.
- As fadas vão tomar o controle... – murmurou Velkan.
- Precisamos agir. – disse Edward, se levantando. – Rápido.
Ao entardecer, depois das notícias nada animadoras de Aurora, Branca de Neve conduziu as princesas ao Grande Salão, onde o Conselho Real se reuniria para debater sobre o estado do reino, agora que o rei George estava morto.
A maioria dos príncipes já estava presente, distribuídos ao redor da imensa mesa retangular e comprida que tomava boa parte do imenso aposento. A rainha Helen sentava-se na cabeceira da mesa, no lugar anteriormente ocupado pelo falecido rei. Detrás da cadeira dela, a lareira de mármore estava apagada. Logo acima, um quadro imponente havia sido recentemente limpo. Nele, um jovem rei George observava a mesa com austeridade e responsabilidade. Ao adentrar o ambiente, Branca de Neve e as princesas cumprimentaram os demais e tomaram seus assentos ao lado de seus respectivos maridos. Esperaram por mais uns instantes até os assentos seguintes serem preenchidos por generais, feiticeiros e pelo líder da guarda real, que sentou-se ao lado direito de Helen, de frente para Adam.
- Naturalmente, - disse a rainha, depois de uma breve introdução à reunião. – todos sabem por que estamos aqui. Membros da família real e o Conselho se reúnem hoje para discutirmos acerca da política do nosso reino. Perdemos nosso amado rei... Alguém deve tomar o lugar dele.
- É por direito natural de primogenitura que o príncipe mais velho receba a coroa. – disse um dos magos, vestido com uma farfalhante túnica de veludo negro e uma barba imensa e branca, apontando para Adam.
- No leito de sua morte, meu pai disse o que desejava para Ëventyr. – interviu Adam, erguendo a mão para silenciar a todos. – Ele desejava que eu e meus irmãos reinássemos em conjunto.
- É verdade. – esclareceu a rainha Helen, fazendo generais e conselheiros se entreolharem, por toda a extensão da mesa. – O rei estabeleceu que os sete príncipes devem reinar juntos.
- Isso é impossível. – argumentou um dos generais. – Tem que haver um só rei. O poder dividido em muitas mãos nunca é bem administrado.
- Ëventyr não será governada por muitas mãos, mas por um só sangue. – argumentou a rainha.
- Majestade, - disse um dos feiticeiros do Conselho. – A representatividade estatal do nosso reino deve ser personificada em uma pessoa só. Ëventyr precisa de um rosto, de um semblante.
A rainha e seus filhos, os príncipes presentes, trocaram olhares nervosos, como se compartilhassem seus pensamentos por telepatia. Como ninguém mais ousou falar, o príncipe Adam tomou a palavra.
- Que seja nossa mãe então. – ele disse, e seus olhos percorreram a mesa, buscando a aprovação de todos. Alguns generais e conselheiros pareceram não muito amistosos à ideia, mas ninguém protestou. – Que seja ela a nossa rainha coroada.
- De acordo. – disse o príncipe William, o segundo na linhagem. Ele trocou olhares com os outros irmãos.
- De acordo! – repetiram os outros príncipes, assentindo com a cabeça.
O conselheiro mais velho, o feiticeiro com vestes negras e barba branca, se levantou da sua cadeira e se dirigiu ao príncipe Adam.
- Então, príncipe Adam, o primogênito do falecido Rei George, abdica o seu direito ao trono e o devolve à sua mãe? – perguntou ele, pausadamente.
- Sim. – concordou Adam. – Eu...
Mas antes de completar o que dizia, Adam surpreendeu a todos com um forte tremor involuntário, sentado em seu lugar. Atraindo o olhar de todos, ele baixou a cabeça e massageou os dois lados da têmpora.
- Querido. – murmurou Bela, sentada ao lado do marido, voltando-se para ele, preocupada. – Está... tudo bem...?
Todos os presentes na mesa encararam Adam com expressão de nervosos e preocupados. Então ele simplesmente soltou um grande grito de dor e caiu de costas com a cadeira. Imediatamente, todos da mesa se levantaram e se agruparam ao redor do príncipe para socorrê-lo. Sua mãe, Helen, se agachou desesperada, junto de Bela, para tentar ajudar Adam, mas William, James, Eric, Philip e Harry correram para contê-las, e separarem todos do irmão, que se debatia violentamente no chão.
- Para trás! – gritou William, tentando controlar a situação. – Todos vocês, para trás!
No chão, Adam começou a suar e a espumar pela boca. Seus olhos brilharam, tornando-se amarelados como os de um felino, enquanto seus braços e pernas se esticaram... sua roupa se rasgou conforme seu corpo inchou e cresceu, e pêlo castanho escuro brotou de toda a extensão de sua pele. Seu nariz se converteu em um focinho preto e úmido, enquanto sua mandíbula se alongou, deixando à mostra poderosos caninos afiados e ameaçadores. Sua coluna se vergou enquanto ele crescia, suas orelhas se alongaram, e atrás delas, um par de chifres de búfalo brotaram, fazendo-o urrar de dor. Suas mãos e pés tornaram-se patas enormes, com garras afiadas e perigosas, e uma juba leonina cresceu absurdamente rápido ao redor do seu pescoço.
Em fúria, o que quer que fosse aquilo em que Adam havia se transformado, levantou-se, pondo-se de pé, quatro vezes maior e duas vezes mais alto que qualquer um dos homens daquela sala. Rugindo em fúria e espalhando baba pelo chão, ele rasgou o que restava de suas roupas e correu para a janela mais próxima, saltando por ela. Quando a vidraça quebrou e o corpo imenso e peludo de Adam caiu, todos os presentes na sala correram para a beira da janela. Ao longe, puderam ver a figura grotesca e monstruosa do príncipe correndo para fora do castelo, em direção à floresta.
- Acho que perdemos o nosso primogênito. – murmurou um dos generais.
William abraçou a mãe, que começou a chorar desesperadamente, enquanto Bela ainda olhava pela janela, em estado de choque.
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