História Erupção - O amor está no ar (e a discórdia também)

 Ainda caía uma chuva forte do lado de fora e estávamos um pouco molhados. Me venerei mentalmente por ter saído de carro. Aliás, não se comete o mesmo erro duas vezes. Donovan e Sonny, com dois ursos de pelúcia que eu havia comprado em algum lugar, correram até o quarto chamando por Jack. Mas, o filho de Depp não os seguiu. Parecia um pouco desanimado, estado de ânimo não demonstrado durante o passeio, e preferiu ficar assistindo televisão. Minha filha foi se banhar. E, bem, Lennon e Rose não deram satisfações nem demonstraram o que iriam fazer, todavia era perceptível que se trancaram no quarto para conversar.

—Sarinha? Sarinha? —Chamei entre um suspiro e outro, caminhando até meu quarto. Mas, nenhum sinal dela. A casa estava estranhamente silenciosa. — Se há alguma MacDonald aqui, pronuncie-se agora! —Brinquei.

 Contudo, não havia. Franzi o cenho refletindo se aquilo era uma espécie de vingança por eu ter demorado a chegar no dia anterior, entretanto isso parecia tão infantil que nem mesmo um Gallagher seria capaz de fazer — ou seria? De qualquer forma, minha modelo não era sanguineamente Gallagher, logo, não faria.

 Olhei-me no espelho grande grudado no guarda roupa do quarto e simulei um sorriso, seguindo de um pequeno bufar. Atirei minha camiseta na cama e comecei a trocar de roupa. Não estava tão molhado que precisasse de uma ducha. E queria acreditar não estar tão preocupado que precisasse ligar para minha esposa. Em breve ela chega, repeti comigo uma ou duas vezes, ouvindo uma risada feminina muito alta do quarto de Lennon.

***

 o Gallagher e Rose tinham todas as oportunidades do mundo para terem uma conversa imensamente melancólica sobre separação dos pais, brigas, traumas e agressões. Mas apenas não estavam no clima. Os dois olhares se cruzaram o tempo todo durante o passeio, sussurrando mesuras juvenis sem mexer a boca. Agora, finalmente sozinhos, podiam realmente cortejar com palavras.

—Como foi no Brasil? Aposto que você causou inveja nas tais “mulheres mais bonitas do mundo”.

—Quem me dera! —Sorriram— Mas nem foi tão divertido. Só ficamos no Rio e em São Paulo. Quer dizer, eu achava que é quase tudo que há para se ver por lá. Mas descobri que não! Tem outros lugares muito bonitos, mesmo sem praias.

—Tem muita floresta. Praias. Animais silvestres que moram na floresta. E mais floresta. —A moça revirou os olhos com as expressões que o rapaz fazia ao falar— E dizem que também tem praias, mas nunca fui comprovar.

—Não seja besta, Non! —Corou por alguns instantes com o apelido recém recebido— Não estou falando só do mato. A propósito, sabia que eles chamam um Estado de Amazonas? Não se trata só das árvores. Tem bastante coisa legal por lá, cultura, danças, músicas, comidas! E são cinco regiões ao todo. Acho que Sul, Nordeste, Norte... Centro Oeste... E Sudeste. Rio de Janeiro e São Paulo são só dois estados de uma região!

—Hey, hey, não precisava dar aulas de geografia também! —A menina deu de ombros— Só estou usando o senso comum.

—Isso é péssimo.

—É bizarro não ser comum. —Rose franziu o cenho por alguns segundos, não entendendo o trocadilho até que fosse explicado. —Era para ser uma piada.

 Naquele momento, ouviram o barulho de dois pequenos Gallaghers passando celeremente pelo corredor gritando, em coro, algo como “rodada em volta do jardim, fui um ursinho de pelúcia. Um passo, dois passos, vamos agradá-lo lá embaixo”. Talvez, pensou a moçoila por algum momento, eles fossem um pouco velhos para essas músicas infantis. De qualquer maneira, tornou a se concentrar em Lennon.

—Não foi nada engraçado.

—Então por que você está rindo?

 Antes que pudesse negar, sentiu várias cócegas por parte do jovem, pelo que pareceram incontáveis segundos. Pensou até, talvez com exagero, que acabaria urinando nas calças já que não conseguia se desvencilhar. Porém, sua risada ecoou tão alto que o filho de Liam provavelmente teve algum receio de ser interrompido, ou algo relacionado, e cessou. No entanto, concluiu que foi um ótimo momento para cessar. Lily estava literalmente deitada abaixo dele, com aqueles belos olhos quase lacrimejando e um sorriso desfazendo-se vagarosamente. Queriam ficar daquela forma a se olhar o resto da vida. Contudo, só o fizeram por poucos segundos que simularam a eternidade. O Gallagher resolveu, hesitantemente, erguer-se. E foi da Depp que partiu a inciativa para o primeiro beijo.

***

 Acho que todos nascem com um dom, pelo menos todos que são Gallaghers e, mais precisamente, meus filhos. Não é difícil distribuir dons com meu DNA. Gene herdou a habilidade de estragar grandes momentos, o que para muitos pode parecer um defeito, porém com a maestria que é executado só pode ser um talento.

—Gene! —Sorri me recompondo— Oi. Você estava... Dormindo?

—O Gene estava aqui e você não avisou, William? —Indagou Sara em meu ouvido, num tom mais que sério— Por quê?

—Eu esqu-

—Que palhaçada é essa? —Fui interrompido bruscamente pelo pequeno que se mostrava furioso— Você tem um caso com minha tia?!

—Okay, isso é uma situação realmente constrangedora e esquisita. —Ergui-me do sofá, mentalizando o que dizer e pegando a responsabilidade de impedir que a família inteira acabasse ali, por causa de boatos e fatos bem misturados— Deixe-me te explicar. Posso fazer isso? —Ele assentiu— Conte-me, de onde você ouviu?

 Dito isso, Gene soltou uma risada escandalosa e sarcástica. A cara e a semelhança de seu pai. Admito que bateu um orgulho, fazendo-me deixar escapar um sorriso. Depois balancei a cabeça, ele deveria estar demasiadamente arisco e voraz para estar agindo daquele jeito e nos confrontando.

—Sério? Essa coisa toda é de antes ou depois de ter se separado da minha mãe? E a Debbie sabe? —Todos, definitivamente, arregalamos os olhos— Ah, claro que não sabe! Faz nem ideia. E o Noel também não, né? Tranquilizem-se, porque no que depender de mim, eles logo vão ter conhecimento de tudo!

—Espera, Gen! —Sara parecia preocupada— Não tenho um caso com Liam e sugiro que você fale direito conosco.

—Falar direito? Que moral você tem? E William? Você, até vai, mas não me peça para respeitar o William depois disso! —Meu coração acelerou. Ele nunca tinha me chamado pelo nome. Percebi como estava magoado e se sentindo traído. O que era péssimo, porque eu realmente não tinha um caso com a MacDonald. Tinha a beijado uma única vez e, tecnicamente, não contava por causa do jogo. Respirei fundo. —Ainda mais agora que tenho ambos nas minhas mãos!

—Eu sei que você está chateado, mas me chatear não vai te fazer sentir melhor, garoto. —Exortei com a voz tão calma que nem pude acreditar. —Deixe a gente te explicar e veja que não tem absolutamente nada que se pareça com... Sei lá o que se passa na sua cabeça!

 Eu podia sentir o desespero de Sara só por estar perto dela e sabia que Gene também, o que era um indicativo de que havia algo errado. Dizem que trair não é só em atitudes, porém também em pensamentos e se isso valesse, eu já tinha feito meu irmão de corno muitas vezes, e parecia que a morena sentia o mesmo. Não sei por que, não obstante aquilo soou como um pequeno e momentâneo alívio na tempestade.

—Você ama estragar as famílias, não é? —Uma facada. Foi exatamente o que senti. — Não se preocupe, vou ajudar a estragar mais essa.

 Observei pelo canto dos olhos o pequeno saindo furioso pela porta da frente e batendo-a. A mulher quis segui-lo, chegou a chama-lo, todavia eu a segurei pelo braço, negando.

—Ele vai inventar coisas! —Protestou indignada.

—Não vai. —Suspirei, perplexo e aparentemente confiante— Deixe-o ir.

—Como você sabe? —Estava agora de frente para mim, transparecendo toda a inquietação.

—Ele é meu filho.

—Ele é um Gallagher furioso! —Soltei um meio sorriso compassivo —Sabe o que significa?

—Eu sei. Não digo que não vai fazer nada por se preocupar comigo. —Demonstrei, com facilidade, como dizer aquilo me apertava o coração e esfriava a barriga. Estava falando que meu filho não se importava comigo. —Digo porque, como meu filho, eu o conheço e sei do que é capaz. Além do quê, não passa de uma criança. Não teria coragem de chegar para o tio e dizer qualquer baboseira.

 Alguns segundos silenciosos domaram o clima tenso por pequenos minutos, enquanto nos observávamos. Eu queria saber o que se passava na cabeça de Sara, mas quando descobri acabei por me arrepender de ter desejado isso.

—É tudo culpa sua! —Vociferou de repente, assustando-me— Se não fossem essas cantadas idiotas, que estou sempre tentando fazer você parar de usar, não aconteceriam essas coisas! Sabia que é assédio?! —Fiquei sem expressão. Se já estava mal com aquela história de Amber, Johnny, Noel, Tommy, Lennon e Gene, agora me sentia completamente destruído. E não havia ninguém que pudesse me apoiar. — Eu te odeio!

 Então, para terminar de descontar sua decepção e raiva, me socou algumas vezes. Não tive a menor pretensão de impedir, porque achava que merecia aqueles golpes. Depois levei um tapa no rosto, que deixou uma marca vermelha. Ardente. A pior ferida, porém, não era visível a olho nu.

 Não nos fitamos mais, nem buscamos o silêncio ou trocamos palavras. MacDonald se retirou repetindo os gestos de Gene, ou seja, pisando ruidosamente e batendo a porta. Senti um enorme peso cair sobre mim. Quer dizer que tudo era minha culpa, novamente. Fiquei alguns segundos assimilando a situação e corri para a porta. Pude ver Sara digitando algo no celular, do outro lado da rua enquanto se molhava por causa da chuva.

—E não, eu não te amo! —Ralhei respondendo à pergunta quase esquecida no meio da bagunça, sabendo que ela tinha ouvido.

 E, àquela altura que nem valia mais alinhar os cabelos, eu não sabia se havia doído mais em mim ou... Bem, havia doído mais em mim.