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História Escarlate - Passos Curtos


Escrita por: mrs_hoshino

Capítulo 13 - Passos Curtos


Fanfic / Fanfiction Escarlate - Passos Curtos

Passos curtos

Pequenas ondas se chocavam contra o corpo de Luna, a água gelada respingando em seu rosto despertando-a lentamente. Piscou algumas vezes, preguiçosamente, enquanto tentava lidar com sua visão turva, todo o redor estava mergulhado numa neblina espessa, o que a fez temer que talvez o impacto e a pressão da água a tivessem cegado e...

Sua visão se estabeleceu no segundo seguinte, fazendo-a enterrar seus pensamentos pessimistas no fundo de sua mente e tentar se levantar, tarefa que se mostrou ser impossível na primeira tentativa. As ataduras, surpreendentemente ainda firmes, estavam manchadas de sangue e todos os músculos de seu corpo se recusavam a responder sem antes usar uma dor lascinante como argumento. Sentou-se de uma vez, sentindo cada junta estalando no processo, o cabelo e roupa ensopados fazendo seu corpo tombar pra frente.

Os últimos momentos de que se lembrava, antes do forte impacto contra água, foi do olhar mortalmente feroz da alada que a perseguia, o que a lembrou de adicionar "alados" à sua pequena lista de pessoas que queriam sua cabeça. Era como se, quanto mais tentasse fugir e se manter segura, mais se encurralasse, cercando-se com um muro rígido de inimigos difícil de abater. Tinha que tentar se manter longe de áreas onde pudesse ser caçada, o que reduzia monstruosamente as áreas neutras de Pan Gu.

Limpou a área à sua frente, retirando as pedras e folhagens, e alisou-a com a mão de forma que cobrisse todas as falhas do terreno arenoso. Começou a desenhar o mapa de Pan Gu da melhor forma de que se lembrava, destacando o território dos seus atuais inimigos. O acampamento ficava à noroeste de ambos, uma "área morta", riscou-o do mapa e tentou cruzar uma linha representando a rota que fizera de lá até a casa onde tinha ficado, seguindo até a floresta e onde imaginava ser a queda d'água e, através dela, tentou ter um ideia, mesmo que vaga, de onde estava. Se tinha calculado corretamente, estava próxima à Cidade das Feras, curioso como o destino de Luna era um sádico incurável...

Olhou para o mapa improvisado novamente só para ter certeza de que não havia outro caminho, levantando-se em seguida e analisando ao redor. Apenas árvores a cercavam, de forma rala a princípio mas se tornando mais densas conforme escondiam o caminho de terra na direção oposta ao riacho onde a feiticeira acordara. Ela estava sozinha novamente, sentia que já passara por tal situação mais vezes do que conseguiria se lembrar. Estava sempre a fugir daqueles que só a viam como uma oportunidade de ascender em algo, como conquista pessoal ou na vã esperança de que ela fizesse jus ao seu título de feiticeira e lhes pudesse trazer algum poder. Por que havia sido amaldiçoada com tal título? Por que havia sido castigada com a fraqueza que lhe causara inúmeros mal entendidos? Olhou para o céu, que tipo de deus a estava usando como peão num jogo tão sádico?

 

Com um suspiro pesaroso, voltou a olhar para frente e colocou os fios de cabelo que haviam se colado em sua face para trás, sentindo-os ainda úmidos. Deu um passo desastrado pra frente, sem nenhuma firmeza em seus pés. Sentia-se fraca por conta de toda a dor que abatia seu corpo, mas não era só isso que a atrapalhava. Seu estômago também exigia atenção através de uma queimação desconfortável que se espalhava por todo o abdômen.

Mas não era hora de sentir fome ou dor, ela tinha que achar um lugar para se abrigar, aí sim pensaria em secar suas roupas, ver seus ferimentos e até mesmo procurar algo para comer.

Avançou com passos débeis até o interior da floresta que se estendia para além da clareira onde acordara, usando as árvores corpulentas como apoio sempre que precisava parar para descansar e respirar um pouco. Não tinha ficado com Fataliz e Nabucodo por tempo o bastante para se acostumar com a presença de ambos, mas sentia-se estranhamente solitária. Se não fossem os mercenários, talvez tudo pudesse ser diferente. Ela poderia ter trabalhado junto aos dois guerreiros em segurança até que encontrasse um lugar melhor para ficar.

Mas… O fato de Nabucodo e Fataliz serem o que eram… ela não poderia confiar demais neles de qualquer forma, logo isso se tornaria um problema também. A curiosidade dela sobre o guerreiro de cabelos escuros e olhar frio os castigara com um tipo estranho de relacionamento baseado em dívidas, cuidados e, ao mesmo tempo, estranheza e desconfiança. Eles eram cuidadosos o bastante para manter certa distância um do outro, mas não podiam negar que agora eram mais próximos do que gostariam.

Não havia parado pra pensar ainda, ao menos não com calma, mas estranhava a forma como ambos haviam cuidado um do outro quando a necessidade surgiu, mesmo tendo se conhecido há pouquíssimo tempo. Luna chegou a considerar a ideia de ficar ao lado dele, Fataliz não parecia tão mau como tentava fazê-la acreditar. Parecia ferido e até um tanto perdido, exatamente como ela.

Mas Luna não podia se dar esse luxo. Embora não tivesse um motivo palpável pelo qual viver, também não tinha desejo algum em encurtar sua estadia na terra ou torná-la ainda mais miserável de alguma forma, o que certamente Fataliz daria um jeito de fazer. Mais cedo ou mais tarde.

 

Enquanto caminhava absorta em pensamentos variados, notou que a floresta se tornava menos densa à sua direita. Cautelosa, dirigiu seus passos até lá, sempre mantendo-se na parte de trás dos troncos das árvores.

Era uma clareira, havia algumas tendas ali, como se fosse um acampamento, e algumas fogueiras também. Provavelmente um grupo grande habitava aquela área, o cheiro de algo no fogo denunciava que ainda estavam por ali. A simples lembrança da existência de comida fez o estômago de Luna protestar novamente, dessa vez com um grunhido suave, mas perfeitamente audível. Cobriu-o com ambos os braços num abraço desajeitado a si mesma, se o grupo fosse menor talvez até conseguisse pegar um pouco da comida ou esperar por restos como qualquer animal faria, ela não era tão diferente nessa situação, não é? Mas a circulação de um número maior de pessoas poderia colocar sua vida em risco, já que não conseguiria monitorá-las e talvez sequer sobrasse algo para comer, o que faria o esforço ser em vão.

 

Deu as costas à clareira e suspirou mais uma vez, fechando os olhos e mantendo-se escorada à árvore até tomar coragem para retomar a caminhada. Ouviu um som suave, um som que teria escapado até mesmo a ela se sua audição não fosse tão boa, abriu os olhos assustada e olhou ao redor. Não havia nada ali Talvez algum animal pequeno que havia se intocado e agora fugia a seus olhos cansados, nada que ela tivesse que temer.

Deu alguns passos em direção à outra árvore, irritada consigo mesma pela fraqueza de seu corpo que não lhe permitia dar mais do que uma dezena de passos antes de precisar se apoiar em algo para se recuperar.

 

— Olá…?

 

A voz soava de trás de Luna, do acampamento que tinha acabado de ver. Era baixa e quase inaudível, mas a audição da feiticeira estava se provando bem útil nos últimos minutos. Ela paralisou, sem saber o que fazer ou para onde ir naquela situação. Certamente estava fora de questão escalar uma árvore ou sair correndo para se proteger, só podia esperar que não chegassem com lanças e pedras contra ela para que pudesse ao menos ter uma chance de sair viva.

 

— Moça? Tá bem? — A voz baixa e infantil soou apenas alguns metros atrás de Luna, que retesou seu corpo por instinto.

 

Luna não queria se virar. Temia que qualquer movimento fosse mal interpretado. E se a menina se assustasse e gritasse por ajuda? Iriam atacá-la antes mesmo que pudesse explicar algo.

O som de folhas secas sendo partidas denunciou os passos leves da criança em direção à feiticeira, fazendo com que ela se apoiasse à árvore a fim de poder olhar por sobre o ombro para a pequena criatura. A jovem aparentava não passar de sua décima primavera, com os fios negros desgrenhados lhe caindo sobre a face e sujando-a mais ainda com a terra que lhe cobria. Os olhos dela, cinzentos e opacos, aguçaram a curiosidade da feiticeira, que ergueu uma sobrancelha, ela era cega? Como a tinha encontrado então?

 

— Não ter medo, a Lilian vai cuidar você… — a menor falou com um sorriso, dando passos cuidadosos em direção à Luna

 

— Eu não estou com medo. — Ela se virou para a garota, inclinando levemente seu corpo para poder ficar no nível dos olhos dela. Suas pupilas não expressavam nenhuma reação, mesmo assim ela caminhava sem errar rumo à feiticeira confusa. — Você… Consegue me ver…?

 

— Ela consegue sentir seu cheiro, pra ser mais específica. — Uma voz suave surgiu dentre as árvores atrás da menina revelando pertencer à uma senhora de cabelos avermelhados — É uma Tophyr…

 

— Eu achei que eles estivessem extintos… — Luna recobrou a postura, observando a senhora se aproximar da mais jovem e pousar a mão sobre a cabeça dela com carinho.

 

— Viver na terra ser melhor que a guerra.

 

A jovem assentiu para a garota, a capacidade de comunicação e raciocínio dos Tophyr podia deixar a desejar, mas estavam certos nisso. A raça era conhecida pelo trabalho que faziam escavando túneis em busca de minérios ou a pedido de nobres que precisavam de passagens secretas para seus castelos e mansões, mas fazia tempo que ninguém ouvia falar deles. Era verdade que seus corpos e cérebros não haviam sido feitos para a guerra, então foi mais fácil imaginar que todos haviam sido dizimados com facilidade durante os inúmeros embates que ocorreram em PanGu desde que o Caos havia se espalhado.

 

— Kaya. Você? — A pequena retirou Luna de seu devaneio, pegando na mão dela com firmeza. Quando ela havia se aproximado tanto?

 

— Seu nome. Ela está aprendendo a se apresentar ainda… — a senhora explicou simpática ao ver a expressão confusa da feiticeira — Eu me chamo Lilian, a propósito.

 

— Ah… — Ela abaixou o olhar de volta à Kaya, agitando levemente as mãos num cumprimento desajeitado — Luna. eu me chamo Luna.

 

— Lilian cuida seu machucado, ela boa. — A pequena puxou-a devagar, mesmo assim com uma força admirável para a pouca idade que aparentava.

 

— Eu não…

 

Só então a idosa pareceu perceber o estado em que Luna se encontrava. Abriu os lábios como se fosse soltar uma exclamação, mas não quebrou o próprio silêncio, ao invés disso caminhou até a jovem com pressa, tomando o outro braço dela entre os seus.

 

— O que fizeram com você, minha querida? Foram aqueles monstros dos mercenários, não foram? Tsc… — Lilian estalou a língua, balançando a cabeça negativamente antes de continuar, mal dando tempo para uma resposta. — Temos que cuidar disso… Você já deve ter perdido bastante sangue… Kaya!

 

— Eu!

 

— Ponha mais água no chá e prepare a cama para eu cuidar da sua amiga aqui.

 

— Ahm… A senhora não precisa… — Luna começou, oferecendo alguma resistência embora suas pernas parecessem ansiar pelos cuidados da recém conhecida.

 

— Me preocupar? — Ela sorriu docemente, um sorriso que causou um arrepio no fim da espinha da feiticeira. Quantos anos fazia desde que vira um sorriso tão doce e singelo? — Querida… não posso te deixar sair por aí assim… Não poderia me perdoar. Sou uma velha egoísta, então deixe que eu faça isso pela minha consciência.

 

Luna retribuiu o sorriso de forma fraca, simplesmente por não saber de que outra forma retribuir. A senhora de fato não lhe oferecia nenhum perigo, muito menos a criança. E, se de fato ela a ajudasse, ainda ganharia uma chance maior de sobreviver agora que não tinha a proteção de Fataliz e precisava contar apenas com seu corpo e suas habilidades.

O problema era… E quanto aos outros que residiam naquele acampamento? Seriam tão gentis quanto Lilian e Kaya? A feiticeira agitou as orelhas sem perceber, preocupada, mas tentada a ceder ao pedido da mais velha.

 

— Seus companheiros podem não gostar de me ter por perto… — ela admitiu, sentindo o próprio braço retesar quando foi puxada mais uma vez por Lilian.

 

— Eles não vão se incomodar, acredite. Nos comprometemos a ajudar qualquer um que necessite, e você é uma dessas pessoas hoje. — A mais velha deu tapinhas suaves no braço da mais nova, deixando leves marcas enegrecidas na pele alva dela por conta de sua mão suja de terra.

 

Luna sentiu vontade de rir, que tipo de compromisso era esse? Ajudar os necessitados? Justamente na era do Caos?

Parecia uma piada de mau gosto que a velha contava para aliviar a tensão. Mas a forma como ela havia falado… Não parecia ser mentira.

Mesmo ainda um pouco descrente de tudo aquilo, ela se deixou levar pelas palavras e pelo braço gentil de Lilian, que a conduziu de volta à clareira. Ao contrário da sensação de perigo constante a qual havia se acostumado, a sensação que tanto os mercenários quanto Fataliz causavam; ser levada por aquela senhora já quase no fim de sua vida trazia um pouco de paz ao peito de Luna. Lembrava-a de uma senhora gentil que também lhe cuidava quando criança e certamente já havia morrido a essa altura da vida.

Essa falta de perigo deixava a feiticeira inquieta, mas, ao mesmo tempo, à vontade o bastante para baixar pelo menos um pouco sua guarda.

 

Ela adentrou na área do acampamento e olhou ao redor curiosa, não parecia haver ninguém por ali além dela e de Lilian, o que fez com que suspirasse um pouco mais aliviada. Não teria que se preocupar com nada agora, sua mente poderia descansar um pouco.

A mais velha a guiou até uma das tendas, soltando-a apenas para que entrasse, mas mantendo suas mãos nas costas dela como que apoiando-a. O interior da tenda era maior do que aparentava por fora, o que causou certo espanto em Luna. Ao fundo, um amontoado de tecidos chamou sua atenção, principalmente por conta da Taphyr sentada sobre ele. Ela aguardara pacientemente por Lilian após cumprir seus desejos, numa postura quase servil. Isso era estranho… Mas não era da conta da feiticeira o relacionamento que aquelas duas tinham.

 

— Deixe Luna se deitar, Kaya. — Lilian falou suave, fazendo com que a criança se levantasse de onde estava, o lugar que Luna imaginou ser a cama. — Procurarei roupas novas pra você mais tarde, alguém deve ter algo que lhe sirva.

 

A feiticeira abriu a boca para contestar, mas não estava realmente afim de tal coisa, então apenas sorriu grata e assentiu em silêncio. Dirigiu-se até onde Lilian indicara, sentando-se quase como Kaya fazia momentos antes. Sentiu suas pernas formigarem quando finalmente as livrou da tarefa de sustentar o próprio corpo, elas ainda doíam, mas bem menos agora que estavam esticadas e relaxadas sobre o amontoado de tecidos que serviam de cama e eram bem confortáveis por sinal.

Ela fungou, captando o aroma de ervas, agora ainda mais forte, de algum lugar dentro da tenda. Seus olhos acompanharam seu olfato, que os guiou até um bule que descansava sobre uma espécie de caixote, a infusão deveria ser a mesma que Lilian instruíra Kaya a aumentar, já que a senhora servia-se de uma caneca naquele momento.

 

— Kaya é a única? — a feiticeira indagou, quebrando o silêncio, enquanto fitava a pequena Taphyr divertir-se assoprando para longe o vapor que subia do bule.

 

— A única Taphyr, você diz? — Lilian se virou de volta para ela, segurando a caneca com certo cuidado enquanto caminhava em direção à cama. — Ela não fala sobre sua família com frequência… E é a única que eu já encontrei pessoalmente, tem estado comigo desde então.

 

Luna aceitou a caneca com cuidado quando a mais velha a ofereceu, agradecendo com um aceno de cabeça antes de aproximá-la do nariz para sentir melhor o aroma que exalava. Se tivesse que adivinhar, diria que era uma infusão de flores de sabugueiro, mas não tinha tanta certeza.

 

— Não é comum ver outras da sua raça também… — Lilian confessou, servindo mais uma caneca de chá, dessa vez para si própria. — Ouvi dizer que vocês se escondem no deserto das virtudes… O que faz tão longe de casa?

 

— Eu não… — Luna ponderou sobre como dizer aquilo e se deveria fazê-lo de fato, soltando um suspiro que serviu para espantar a fumaça que subia da caneca entre seus dedos — Não tenho contato com outras da minha espécie. É complicado.

 

— Entendo… — A senhora sorriu, desculpando-se por sua indelicadeza. — Você parece ter tido dias difíceis… Mas pode descansar agora, eu cuidarei de você até que possa voltar para sua jornada.

 

— ...Obrigada — agradeceu com um sussurro, dando uma golada no líquido ainda quente e sentindo-o aquecer sua garganta, seu peito e depois finalmente repousar no seu estômago.

 

— Luna melhor? — A voz de Kaya cortou o silêncio, chamando a atenção da feiticeira para si.

 

— Um pouco — ela lhe respondeu gentil, vendo um sorriso se abrir em sua face.

 

— Eu ainda tenho que ver essas feridas… Se importa? — Lilian perguntou gentil, estendendo a caneca em que bebera para que Kaya segurasse.

 

Luna a encarou em silêncio por alguns segundos, receosa. A imagem de Fataliz tocando-a enquanto fazia aqueles curativos, agora encharcados e sujos, veio a mente, causando um arrepio discreto no fim de sua espinha.

Por que pensara nisso agora? Sua mente estava cansada demais e começava a se confundir com suas prioridades, só podia…

Assentiu para a mais velha, que com um sorriso foi até o caixote que servia de apoio ao bule e o abriu, colocando o objeto de lado por um instante. Ela voltou momentos depois com uma variedade de coisas em seus braços, tais como ataduras e alguns potes de tamanhos variados, sentando-se novamente ao lado de Luna.

 

— Você tem família? — Lilian perguntou num tom casual, uma tentativa de fazer a feiticeira relaxar um pouco.

 

— … Não — ela respondeu depois de alguns segundos em silêncio.

 

Não era mentira, mas também não chegava perto da verdade. Seu passado e sua história estavam tão distantes que às vezes a faziam duvidar se tudo de que se lembrava de fato havia ocorrido. Seu pai, os dias que pareciam não ter fim no interior do castelo onde viviam. A noite em que tudo mudou…

Um arrepio percorreu sua espinha, fazendo com que ela agitasse as orelhas por reflexo, não gostava de se recordar do que passara antes de se juntar aos mercenários. Embora tenha aprendido o que é maldade e “Caos” com eles, sentia que já era familiarizada com tal fazia muito tempo.

Decidida a evitar mais perguntas de Lilian, tomou a frente e pensou em algo para mantê-la distraída o bastante para esquecer sua curiosidade.

 

— Como você e Kaya se conheceram?

 

— Ah… Isso já faz algum tempo… — A mais velha sorriu nostálgica, olhando rapidamente para Luna antes de pegar uma faca curta, ainda menor que uma adaga, e cortar parte de uma das pernas da calça que ela vestia. — Eu e minha família estávamos atravessando um vale próximo de Merídia… Kaya estava escondida no tronco oco de uma árvore. Peguei-a para criar, seria incapaz de deixar um ser tão indefeso por sua própria conta e risco.

 

A feiticeira sorriu gentil, indicando que Lilian continuasse, mas esta não o fez. A gentileza e a bondade da senhora eram tão estranhas à jovem que chegavam a lhe causar um certo desconforto. Ainda existiam pessoas assim por PanGu? Mesmo a mais pura das criaturas estava sujeita à corrupção de sua alma pelas mãos do Caos, ainda que fosse contra o desejo dos deuses. A sua própria história não tinha sido tão diferente, os absolutos não haviam tido piedade nem mesmo em sua chegada ao mundo, afastando-a da mãe de maneira tão cruel.

Uma fisgada em sua ferida a trouxe de volta à realidade, fazendo com que baixasse os olhos pra sua coxa. Lilian já havia livrado sua perna direita do tecido, deixando-a com algo que lembrava um pouco uma roupa íntima para cobrir sua roupa íntima de fato. A fisgada havia sido causada pela atadura, que havia se fundido à pele que começava a se fechar e fora puxada pela mais velha na hora de limpar a ferida.

Luna viu o sangue vivo sair de sua carne novamente exposta enquanto Lilian o limpava pacientemente. Ficou sem palavras por alguns segundos, numa espécie de transe sem explicação, até que agitou a cabeça discretamente e apoiou o peso do corpo sobre as mãos estendidas no chão atrás de si.

 

— Você falou sobre sua família… São eles que moram nas outras tendas?

 

— Sim! Fomos nos conhecendo ao longo dos anos, então o acampamento acabou crescendo um pouco e precisamos de ainda mais comida. — Ela riu de suas próprias palavras, levando o olhar à Kaya como num estranho instinto materno que apenas necessitava saber o que a pequena fazia. — Eles devem chegar ao cair da noite. Vão gostar de te conhecer…

 

— Espera. Então vocês são tipo… um clã? — Luna decidiu dar mais uma golada em seu chá, para molhar a garganta e para ver se abrandava a confusão que as palavras de Lilian momentaneamente haviam lhe causado.

 

— Preferimos nos identificar como uma família. Somos todos nômades unidos pela dor e pela perda, somos semelhantes e vivemos juntos… Não é essa a definição de família?


A feiticeira preferiu não corrigir a mais velha, então apenas assentiu em silêncio, dando mais uma golada no chá já frio e se limitando a observar os dedos envelhecidos e cuidadosos dela lhe aplicarem as misturas medicinais sobre as feridas.



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