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História Eu, Eu Mesma e Minha Ignorância - Twenty Five


Escrita por: MadeixasNegras

Notas do Autor


Espero que gostem! :)

Capítulo 25 - Twenty Five


Fanfic / Fanfiction Eu, Eu Mesma e Minha Ignorância - Twenty Five

O vento soprava forte e o som das folhas secas farfalhando em algumas das árvores era música para os nossos ouvidos. Percebi que algumas nuvens escuras tomaram parte do céu, bem características de quando neva, e me perguntei se havia possibilidade de o tempo virar tão bruscamente. Naquela tarde fria de quarta-feira, Miles e eu tiramos um tempo para esquecer de tudo. Ficamos algum tempo patinando no Wollman Rink, até que Miles se cansou e disse que precisava descansar antes que tivesse uma cãibra na perna. Sentamos em um dos bancos perto das muretas do rinque e bebemos um pouco de água. Voltei minha atenção para Miles, que observava as poucas pessoas no rinque, ao longe. Achei que fosse o momento certo para contar as coisas que faltavam para Miles. Seu cabelo estava levemente bagunçado e gotas de suor escorriam por suas têmporas.

-Lembra quando você disse que não queria mais segredos entre nós, lá no ônibus? – comecei.

-Lembro. – ele me encarou, de certo esperando mais alguma revelação – Você tem mais alguma coisa pra me contar?

-É meio bobo, mas eu e Luke Warren estamos meio que... Namorando? – tentei buscar uma palavra que se adequasse a nossa situação e falhei.

A testa de Miles se franziu e seu olhar se voltou para mim, um misto de confusão e deboche. Ele sorriu levemente.

-Luke Warren? Que loucura... Me diz uma coisa, Amie, tem mais alguma coisa que você queira me contar? Tipo, onde Jimmy Hoffa tá enterrado ou quem matou John Kennedy?

-Para, Miles! Que isso, não é tão surpreendente assim. – revirei os olhos, tentando disfarçar o quão envergonhada eu estava.

-Eu nunca nem vi vocês conversando, pra mim é uma grande novidade. Ainda mais se tratando do Luke Warren, o bad boy que só causa problema.

Miles ria meio sem graça e passava uma das mãos sobre o cabelo úmido, tentando absorver a notícia. Talvez não tivesse sido uma ideia tão boa contar aquilo a Miles.

-O Luke tá melhor agora. Vocês podiam até dar um jeito de ser amigos, sei lá. Pra mim também é meio estranho considerando que ele me bateu na festa de Halloween do Carter e há algumas semanas a gente nunca nem tinha conversado na vida.

-Pera aí, ele te bateu? – a incredulidade estava mais que estampada no olhar de Miles.

Tive que contar a história toda para ele. Miles ficou irritado, dizendo que quando voltássemos para Cortland ele iria atrás de Luke no colégio para entender aquilo tudo, mas eu pedi que ele não fizesse isso.

-Sempre que eu toco no assunto dessa festa ele fica mal.

-Foda-se, quem com certeza ficou mais mal com isso certamente foi você. Isso é ridículo.

Desviei o olhar. Ficamos em silêncio por instante, até que eu resolvi encerrar o tema da conversa.

-Olha, tá tudo bem. Eu não teria ficado com Luke se ele me faz mal. É sério, pode ficar de boa.

Miles voltou o olhar para mim, com as sobrancelhas arqueadas, pronto para voltar a discutir. Mas ele não o fez, apenas suavizou o olhar e se levantou.

-Tá bom, que seja. Eu não acho isso legal como você tá dizendo, mas foda-se o que eu acho. Vem, vamos embora antes que escureça.

Fiquei um pouco impressionada com a rapidez que Miles se desviou do assunto, mas entendi que ele provavelmente só queria parar de falar sobre Luke. Fizemos a trilha de volta pelo Central Park em silêncio. Nuvens cor de chumbo tomaram totalmente o céu antes claro e brilhante de Nova York. Logo precisei vestir meu casaco novamente, porque senti o tempo esfriar e o vento soprar mais forte. Era quase cinco da tarde e o céu havia ficado incrivelmente escuro, com apenas algumas manchas de azul claro.

-Você acha que vai nevar essa noite? Olha como o céu ficou. – perguntei.

-Não sei. Depende da temperatura, se chegar a zero então talvez neve à noite.

-Que horas é nosso ônibus de volta?

-Umas seis e meia, por aí. Até lá já vai estar bem escuro. Quer pegar um táxi até a estação de Newark?

-Não vai ficar muito caro? É melhor ir de metrô.

-Ah... – Miles estava visivelmente cansado por conta da patinação – Eu não me importo de pagar mais caro pra não ter que andar até lá de volta.

Ele tirou uma das alças de sua mochila dos ombros e procurou algo lá dentro, mas não conseguia achar.

-Ué, você pegou minha carteira?

-Não, por que eu pegaria sua carteira? – estranhei a pergunta de Miles.

-Eu não tô achando ela aqui dentro. – Miles remexeu mais ainda dentro da mochila e não tirou nada lá de dentro – Cara, eu devo ter esquecido ela no Wollman Rink na hora de pagar, que droga! Vou ter que voltar lá pra pegar, me espera aqui.

-Esperar aqui? Não fala merda, eu vou junto. – disse, num tom mais agressivo do que gostaria.

E corremos com o coração acelerado até o Wollman Rink, o estresse era tamanho que chegava a ser palpável. Eu me perguntava como ele poderia ter esquecido a carteira num lugar como aquele, e para o desespero de Miles, chegamos tarde demais. O rinque fechava às cinco.

-Ah não, ah não! Deve ter algum vigia aí dentro, não pode ser! – Miles batia no portão de ferro desesperadamente, gritando por um possível funcionário, mas obviamente não havia ninguém lá dentro.

-O que a gente faz agora? – perguntei, um pouco aflita sobre como voltaríamos para casa, visto que eu havia gastado boa parte do meu dinheiro e o que sobrou não seria suficiente para as duas passagens de ônibus.

-Boa pergunta, eu não sei! Quanto de dinheiro você ainda tem?

-Eu não sei, uns sete dólares talvez...

Miles ficou ainda mais angustiado, passando a mão sobre os cabelos incessantemente.

-Você ainda tem seu celular, dá pra ligar pra Cathy e pedir que ela venha buscar a gente. – sugeri, tentando achar alguma solução.

-Não dá, ela disse que tinha uma festa pra ir hoje no fim da tarde e só ia voltar à noite. Ela não vai atender. – Miles me olhou, ruborizado - Eu não sei o que fazer, Amie. Estamos fodidos, e eu sou muito burro!

-Como você sabe que ela não vai atender? Liga, ué! – falei, gesticulando cada vez mais por conta do quão estressante a situação estava se tornando.

Miles discou o número e esperou. Esperou mais um pouco, e na quinta tentativa ele desistiu.

-Isso é ridículo. – soltei, cruzando os braços – Eu preciso voltar pra casa.

-Não é só você que quer voltar pra lá, e mesmo que eu tenha sido burro não é motivo pra você se estressar desse jeito. Se você só você que quisesse ir pra Cortland a gente até dava um jeito, né? – Miles disse, num tom sarcástico que me irritou, apesar de ele dizer a verdade.

Optei por ficar quieta e esperar dinheiro brotar no meu bolso. Miles e eu trocávamos alguns olhares rasteiros e por alguns momentos achei que ele fosse chorar, sentado no chão em frente ao portão do Wollman Rink, de braços cruzados. O dinheiro que eu tinha era o suficiente para comer alguma coisa, mas não voltar para casa ou simplesmente pagar um quarto de hotel. Só quando o céu escureceu totalmente e as luzes do Central Park se acenderam é que eu me toquei sobre a loucura daquela situação toda. Não havia muito o que fazer. Nós iríamos passar a noite na rua, deitados num banco qualquer?

-Você não conhece ninguém aqui em Nova York que possa te ajudar? – perguntei, sentando ao lado de Miles.

Ele apenas balançou a cabeça negativamente.

-Eu tenho umas tias que moram aqui, mas eu não faço ideia de onde nem nada disso. Perdemos contato. Pra falar a verdade eu ainda tenho o número de um primo que descolava uns ingressos de jogo pra mim. – Miles pegou o celular e começou a procurar pelo tal primo na lista de contatos – Ele trabalhava num hotel cinco estrelas aqui perto...

E de repente o semblante de Miles mudou da mais profunda desesperança para o completo entusiasmo. Ele discou o número e esperou na linha, até que eu pude ouvir um burburinho.

-Ariel? Sou eu, Miles. É... Eu tô de passagem aqui em Nova York e queria te ver, você ainda trabalha naquele hotel de ricaços? O Ritz? Isso, você tá por aí...? Beleza.

-E aí? Como visitar seu primo vai nos ajudar? – perguntei, tentando entender a lógica naquilo tudo.

Miles me olhou com um sorrisinho de canto e se levantou, ajustando a mochila nas costas.

-Ele vai fazer um favor pra gente, só isso.

E saiu pela calçada a passos acelerados. Saltei de onde estava sentada e puxei a manga do casaco de Miles bruscamente, o fazendo parar.

-Você vai fazer o que eu tô achando que vai? – perguntei, franzindo a testa com tanta força que minha cabeça começou a doer - Pedir um quarto de hotel pro seu primo que você não vê há anos? Miles, fala sério.

-Você tem uma ideia melhor? Quer passar a noite dormindo num banco congelado?

-E quem disse que ele vai simplesmente te deixar ficar de graça no quarto de um hotel como o Ritz?

-Por isso mesmo, eu disse que ele vai fazer um favor. – Miles frisou a última palavra, deixando seu plano idiota bem claro.

Não consegui me segurar e soltei uma risada ao desviar o olhar.

-Você só pode tá brincando, isso é muito ridículo. Não vai colar, Miles!

-O que a gente tem a perder? Custa muito ir até lá e pelo menos tentar falar com ele? – Miles começou a ficar irritado – Você é muito pessimista, meu Deus!

-Se eu sou pessimista então você é muito inocente pra achar que isso vai dar certo. Seria melhor eu ter ficado com Luke lá em Cortland ao invés de ter vindo correr o risco de passar a noite na rua com você! – disse, meio sem pensar.

Miles me encarou por um momento.

-Então tudo bem, Amie! Já que minha ideia é tão estúpida e você se arrependeu de ter vindo, durma por aqui no frio ou vá embora sozinha. – ele disse, sério e aparentemente irritado, coisa que eu não imaginei que fosse acontecer – Boa noite pra você.

Ele se virou e desapareceu entre os arbustos. Eu estava até meio boquiaberta com o quanto Miles tinha sido apelão naquela hora, mas depois de uns instantes, quando realmente percebi que estava sozinha no meio do Central Park à noite, reconheci que eu tinha sido idiota. Eu não precisava ter sido tão dura com ele. A ideia continuava sendo idiota, mas como ele havia dito, não custava nada tentar. Senti um amargor preencher meu peito e respirei fundo, correndo pelo caminho que Miles seguiu, esperando que ele não tivesse ido muito longe.

Avistei ele numa trilha mais iluminada, próxima de uma das entradas do parque. Havia outras pessoas andando por ali e eu conseguia ver e ouvir os carros na avenida. Miles não me olhou quando passei a andar ao lado dele, só me ignorou. Acho que ele esperava que eu me desculpasse, mas eu demorei para fazer isso. Eu podia ter muitas qualidades, mas um dos meus piores defeitos era a falta de humildade. Pedir desculpas quando eu achava que estava certa demandava um esforço enorme da minha parte, tal qual o de levantar um bloco de ferro de quinhentos quilos. Lucy vivia reclamando do fato de eu ser desumilde e não pedir desculpas, e que eu precisava trabalhar isso antes que ninguém quisesse mais ficar ao meu lado. Engoli o orgulho e falei um “me desculpa” baixinho.

Miles me olhou, e pude perceber que ele não estava mais com raiva. Pelo menos, ele não demonstrou. Atravessamos uma avenida iluminada e paramos em frente à fachada do Ritz-Carlton. Nós dois estávamos hesitantes. O prédio era todo iluminado e as bandeiras da fachada tremulavam incessantemente. Miles tomou a iniciativa e entrou no hall do Ritz, seguido por mim. Pude sentir o ar quente do aquecedor preencher meu pulmão e um arrepio percorrer meu corpo todo. O ambiente todo exalava riqueza. Havia um lustre de cristal pendurado acima de nós, mármore por todos os lados e decorações finíssimas que eu nem ousaria tocar. A recepção era totalmente iluminada em tons amarelados, o que deixava tudo muito aconchegante, e havia vários sofás e vasos de cerâmica por todo o lugar. Paramos diante de uma bancada de madeira lustrada, e Miles abordou um homem engravatado cuja placa de identificação dizia “Concierge”.

-Boa noite. – ele disse.

-Boa noite, bem vindos ao Ritz-Carlton. Como posso ajudá-los? – o homem perguntou.

-Eu gostaria de falar com o Ariel.

-Perdoe-me, posso saber o motivo e quem pede pela presença dele?

-Miles Harrison. É urgente, por favor.

O concierge franziu as sobrancelhas e se retirou, indo para outro lado da recepção. Depois de um instante, um homem que usava o cabelo num rabo de cavalo se aproximou de nós, logo reconhecendo Miles.

-Ariel! Quanto tempo, mano. – Miles sorriu, indo ao encontro do primo.

-Cara, achei que nunca mais fosse te ver! – eles trocaram um aperto de mãos e um abraço – Como anda a tia Cathy?

-Bem, ela vai bem. – Miles ia continuar, mas Ariel o interrompeu.

-Quem é essa aí? – ele disse, apontando para mim.

-Minha amiga, Amie. Escuta, eu preciso de um favor seu.

Ariel cruzou os braços e comprimiu os lábios.

-Quem é vivo sempre aparece pra pedir favor. O que você quer? Eu tô no meio do turno.

Miles o puxou para um canto e reduziu o tom de voz, apesar de eu ainda conseguir escutar a conversa dos dois.

- Eu tô sem dinheiro e não vou conseguir voltar pra casa hoje. Você podia descolar um quarto aí pra eu e ela passarmos a noite.

-Ah, mano... Isso aqui não é motel, meu querido. Vai procurar outro lugar. – Ariel já ia se afastando quando Miles o puxou novamente.

-Não! Você não tá entendendo, eu esqueci minha carteira no meio do Central Park e não tem como a gente voltar pro Cortland de ônibus. A gente tá liso. Me arruma esse favor aí, vai...

-Por acaso você sabe que eu posso me foder muito por conta disso? Que eu posso até perder meu emprego?

-Eu sei dos riscos, mas você não vai deixar seu primo mais novo passar a noite na rua, vai?

Ariel ficou em silêncio por um instante, suspirou e contornou a bancada de madeira. Ele deu uma olhada na recepção e se abaixou, pegando uma chave dourada de dentro da bancada. Ariel pediu para que nós nos aproximássemos e falou bem baixo, olhando fixamente para Miles.

-Eu vou deixar vocês ficarem numa das suítes Avenue que tá com o piso do banheiro rachado. A manutenção vem essa semana. Vocês têm que me prometer que não vão fazer barulho e ser muito, mas muito discretos. Se alguém pegar vocês fora do quarto, vocês são expulsos e eu vou ser demitido. – Ariel suspirou e revirou os olhos – Vou descolar um prato do serviço de quarto pra cada um, e só.

Miles ficou radiante.

-Mano, você é demais! Caralho!

-Fica na sua, xará, você tá me devendo um favor agora. – Ariel deu mais uma olhada na recepção – A gente vai subir pelo elevador de serviço. Andem logo.

O que Ariel estava fazendo por nós era surreal. Totalmente arriscado, mas surreal. Só o fato de eu passar a noite numa das suítes do Ritz já era um sonho. Nós três entramos rapidamente no elevador de serviço, que ficava perto da entrada da cozinha do hotel, e subimos até o 15º andar. Assim que as portas do elevador – que também era extremamente luxuoso – se abriram, entramos num corredor vazio e iluminado com luminárias amareladas. O carpete vermelho escuro impedia que nossos passos fizessem barulho, e andamos silenciosamente até o quarto 152. Enquanto Ariel destrancava a porta do quarto, Miles e eu nos entreolhávamos e vigiávamos o corredor, envoltos numa atmosfera de suspense para saber como era o quarto em que ficaríamos, ou se alguém apareceria no corredor e nos descobriria.

-Entrem, rápido! – Ariel falou, num tom mais baixo, empurrando nós dois para dentro do quarto.

Nunca havia estado um lugar tão chique em toda a minha vida. A finesse do quarto era tamanha que até o cheiro era diferente de tudo que eu já havia sentido, como se perfume caro fosse borrifado diariamente naquele quarto. As janelas estavam cobertas por cortinas marrom claro, havia alguns sofás com bordados em tons pastéis, luminárias e vasos decorados, e uma televisão de última geração que contrastava com o ar antiquado do lugar todo. Parecia uma sala de estar.

-O quarto é de vocês. Não mexam em nada, não peguem nada do frigobar a não ser que vocês paguem, arrumem qualquer merda que vocês bagunçarem... – Ariel parou, meio cansado de tantas instruções e provavelmente estressado com o risco que estava correndo – Tem alguns sabonetes e essas coisas no banheiro, umas toalhas no armário, sei lá... Vejam o que vocês acham por aí. Só não baguncem ou quebrem nada. Mais tarde eu mando alguma coisa pra vocês comerem.

Antes de sair do quarto, Ariel deu uma olhada no corredor e olhou para nós novamente.

-Não façam merda. – disse, e fechou a porta do quarto logo em seguida.

Meus olhos percorriam o quarto, atentos a todos os detalhes da decoração. Havia algumas bebidas caras numa estante ao lado do frigobar e um telefone com instruções de como falar na recepção. Quando me virei para falar com Miles, ele não estava mais na saleta.

-Miles? – perguntei, meio num impulso.

-Tô aqui!

A voz veio de um cômodo ao lado, em que havia uma passagem para o que devia ser o quarto propriamente dito. Assim que passei pela porta, vi Miles deitado em uma cama gigante com um colchão bem alto, esticando as pernas e braços de forma boba. Os antes organizados lençóis e travesseiros estavam meio amassados, mas em compensação, o carpete do quarto parecia nunca ter sido utilizado, de tão limpo.

-Sai daí, Miles! Você vai sujar a cama! – falei alto, contrariando as orientações de Ariel.

Puxei uma das pernas de Miles pela beirada da cama, inutilmente. Ele deu uma gargalhada e se sentou na minha frente, com o cabelo bagunçado.

-Qual é, Amie, relaxa! Olha o tamanho dessa cama, não vai sujar nada não.

Não pude evitar uma risada diante do jeito bobo de Miles e me forcei a ficar mais tranquila. Sendo bem egoísta, o quarto não era de nossa responsabilidade, e sim de Ariel. Nós poderíamos fazer o que quiséssemos e sair fugidos no dia seguinte, mas isso ferraria a vida do primo de Miles e isso provavelmente sairia caro para ele depois. Era melhor manter os bons modos, mas podia me dar ao luxo de relaxar ao menos um pouco pelo menos uma vez na vida. Suspirei e tirei meu casaco, deixando-o por cima de uma mesa de mármore claro perto de uma poltrona de couro. Abri a janela do quarto, me deparando com uma avenida movimentada e luzes cintilantes do Central Park. Os prédios ao longe também brilhavam, e o barulho do centro da cidade era abafado pela janela. Pequenos pontinhos brancos começaram a cair diante dos meus olhos e eu senti o vento frio soprar de repente.

-Miles, vem cá ver isso. Parece neve, será que é? – pedi para que ele chegasse até a janela.

Ouvi ele se levantar da cama num pulo e vir até mim. Pude ver seu reflexo pela janela. Miles se aproximou do parapeito da janela, me empurrando um pouco para o lado, e esticou a mão para tentar pegar um dos pontinhos brancos, mas não conseguiu.

-Pode ser chuva congelada, não sei. – ele se afastou e tirou o tênis de um dos pés – Mas eu sei que a gente precisa ligar o termostato pra não congelar aqui dentro. Deve ser fácil de achar.

Ainda encostada no parapeito da janela, observei Miles entrar no banheiro da suíte descalço e exclamar alguns palavrões para demonstrar o quão impressionado ele estava com o visual luxuoso lá de dentro.

-Amie, vem aqui ver o naipe desse banheiro! – ele gritou, com a voz abafada pelas paredes.

Dei uma risadinha e fui de encontro a ele. Realmente, o banheiro parecia ter saído de um daqueles catálogos de casas chiques. Havia um chuveiro todo em mármore marrom claro, uma banheira pequena logo ao lado, um grande espelho iluminado por pontinhos de luz e duas pias, uma ao lado da outra. Alguns sabonetes e vidrinhos com hidratantes estavam organizados ao lado da banheira, e um vaso com flores vermelhas me chamou atenção. Lembrei de Ariel comentando sobre o piso rachado no banheiro, mas devia ser muito discreto, porque nem eu nem Miles percebemos nada. 

"O padrão de qualidade deles aqui é realmente bem alto", pensei.

-É bem chique mesmo. Eu podia ficar aqui pra sempre. – disse, ainda deslumbrada.

-Pode ter certeza que algum dia eu vou ser podre de rico e voltar pra ficar nessa suíte. – Miles gesticulou abertamente – Nessa aqui, em específico.

Apenas sorri. Não estava duvidando do potencial de Miles, só era engraçado ver ele falar com tanto entusiasmo. E de repente, me lembrei de Luke. Ele devia estar esperando alguma mensagem ou ligação minha, e com tantos acontecimentos eu tinha esquecido completamente de ligar para ele. Deixei Miles sozinho no banheiro e voltei para a suíte, em busca do meu celular. Havia uma chamada perdida dele. Luke provavelmente não iria gostar de saber que eu estava hospedada num quarto de hotel com Miles. Na verdade, eu nem sabia se ele era ciumento ou não, mas era meio estranho até para mim estar tão próxima de Miles, assim de repente. Não demorei para escutar o chuveiro ligar lá do banheiro e aproveitei para ligar para Luke bem brevemente. Em poucos instantes, ele atendeu.

-Oi. – falei, sem muito entusiasmo.

-E aí, como tá seu dia? – Luke disse, do outro lado da linha.

-Foi melhor do que eu imaginava. – sorri.

-Que bom que você se divertiu. Pensei bastante em você hoje, mas também tive um bom tempo sozinho. Mas me diz, por quais lugares você passou?

E contei a ele sobre o Empire State e o Wollman Rink, sobre o quanto me diverti e tudo o mais. Mas, acabou que nós encerramos a chamada sem eu sequer mencionar que eu não havia voltado para Cortland e que muito provavelmente não iria a aula no dia seguinte. E muito menos que eu estava no Ritz-Carlton junto de Miles, que ele mal conhecia. Mas, para a minha surpresa, Luke não demonstrou nenhum ciúme ou algo parecido pelo fato de Miles e eu termos passado o dia todo juntos. E me convenci de que não era preciso contar isso a ele a não ser que o assunto surgisse depois que eu voltasse para casa.

-Melhor assim. – disse, em voz alta. – Menos uma preocupação.

E novamente, o assunto de Fumiko voltou à minha mente.

“Tenho que ligar pra ela, não se esqueça. Tenho que ligar pra ela, não se esqueça”, pensei repetidas vezes.

Ouvi o barulho do chuveiro desligar.

-Amie, você ligou o termostato? – Miles perguntou ao abrir a porta do banheiro e deixar uma nuvem de vapor quente escapar.

-Ainda não, tinha esquecido! – levantei da beirada da cama num pulo.

Não foi muito difícil de achar, como Miles havia dito. Estava num canto da sala de estar, perto de um quadro em preto e branco. Deixei a temperatura num vinte e cinco agradável. Assim que ia voltar para o quarto, Miles apareceu com os cabelos molhados e a cintura envolta numa toalha bege felpuda. Não nego que fiquei um pouco constrangida por ver ele sem camisa, mas relevei.

-Eu esqueci que a gente não trouxe roupas reservas. – ele disse, sorrindo, meio embaraçado.

-E agora? Vai ter que fazer das toalhas o seu pijama? – comentei, com uma risada.

-É sério que você não trouxe nada de roupa extra na sua bolsa?

-Acho que eu trouxe meias e um casaco, deixa eu ver... – saí da sala de estar e fui ao quarto, em busca da minha mochila.

De fato, só havia dois pares de meias mais grossas e um casaco de malha, bem quente. Nada de camisetas ou qualquer outra peça de roupa. E aí, eu me dei conta que eu teria que repetir a roupa do dia de hoje, mesmo ela estando suja.

-Eu tenho duas meias e um casaco, serve? – me virei para Miles e o vi concordar.

Depois disso, deixei Miles sozinho e fui para o banheiro. Organizei minhas roupas usadas numa pilha na parte seca da pia, e enrolada numa das toalhas limpas, abri a torneira da banheira. Observei a água preencher o espaço da banheira e me dei ao luxo de jogar alguns sais de banho e sabonetes líquidos que estavam por ali na água quente. Um dos sais, o de lavanda, era uma das minhas fragrâncias favoritas. Mergulhei na água cheia de espuma e senti meu corpo relaxar quase que instantaneamente. Parece que eu estava derretendo e me transformando em parte da espuma. Mesmo que o banho estivesse muito bom, precisei sair antes que eu ficasse totalmente enrugada ou cochilasse lá dentro.

Voltei para o quarto, com o cabelo preso e meio úmido, e encontrei Miles assistindo televisão deitado em um dos sofás. Ele vestia apenas o casaco que eu havia lhe dado, uma cueca comprida e um dos meus pares de meia. Não comentei nada. Na mesa de centro da sala, havia uma bandeja prateada com dois pratos de macarrão com molho de tomate e dois copos com suco de laranja.

-Ariel trouxe isso pra gente?

-Aham. Tava te esperando.

-Quanta gentileza. – disse, num tom meio irônico, o que tirou uma gargalhada de Miles.

Comemos assistindo televisão, sem muitos comentários. O macarrão era básico, mas delicioso, assim como o suco. Ao terminarmos de comer, Miles se atentou para o fato de que nós não tínhamos escovas de dente também.

-Acho que mascar um chiclete resolve esse problema. – ele disse.

Por volta das dez da noite, quando nós já estávamos praticamente cochilando em posições desconfortáveis nos sofás da sala de estar, sugeri que nós fôssemos nos deitar. Miles desligou a televisão e desligou as luzes do ambiente, enquanto eu investigava as roupas de cama do armário do quarto.

-Tem alguns cobertores e um lençol reserva.

-Pode me dar o lençol, vou dormir aqui no sofá. – disse ele, apontando para o sofá pequeno que ficava nos pés da cama principal.

-Miles, não precisa disso. A cama é enorme, a gente consegue dormir sem se encostar.

A solução pareceu bem razoável para ele. Joguei dois cobertores na cama e logo me deitei, deixando a luz do abajur ao meu lado acesa. Era cômico de perceber o espaço vazio entre eu e Miles no meio da cama, e mesmo assim, era espaço suficiente para que nós dois dormíssemos confortavelmente. Não demorou muito para que Miles me desejasse boa noite, se virasse para o outro lado e apagasse a luz de seu abajur. O silêncio havia preenchido totalmente o quarto, e se ouvia apenas o som abafado dos carros na avenida, que parecia não ficar vazia nunca. Encostei a cabeça no travesseiro e suspirei, ainda tentando absorver a loucura que havia sido aquele dia. E aí, num lampejo rápido, me lembrei novamente de Fumiko. Não iria conseguir pegar no sono antes de ligar para ela.

Tentei levantar da cama o mais discretamente possível, com medo de acordar Miles. Na verdade, eu nem sabia se ele já havia pegado no sono, mas optei pela discrição. Apanhei meu celular, fui até a lista de contatos na letra F e encarei o contato de Fumiko por um momento. Fiquei com medo de ligar, por inúmeros motivos. E se eu ligasse, mas ela já estivesse dormindo? Afinal, já era mais de dez horas da noite. Ou então, se o número não existisse, ou se o número não fosse mais de Fumiko, havia muitas possibilidades. E considerando todas elas, ainda assim disquei o número. A linha chamou por um tempo, até que uma voz feminina meio rouca atendeu o telefone. Meu coração disparou e por um milissegundo, fiquei sem saber o que dizer.

-Alô? Alô? – a voz repetiu.

-Alô, quem fala?

-Fumiko Okamoto, quem gostaria?

-Ahn... – hesitei, pensando em como me identificar – Meu nome é Amielise, sou filha da Lucy Silvermann. Espero não estar ligando muito tarde.

-Não, imagine! Aí em Nova York está tarde, mas aqui mal anoiteceu. Não fez mal nenhum.

-Desculpe perguntar, mas... Aí onde? – perguntei, genuinamente confusa.

-No Oregon. Moro em Portland, nos mudamos recentemente. Lucy não te contou?

“Faz sentido, o fuso horário é diferente. Do outro lado do país”, pensei.

-Na verdade, não. – disse, com uma risadinha meio sem graça.

-Como você vai, Amie? Nossa, faz tanto tempo desde a última vez que eu te vi, você deve estar enorme. – sorri ao ouvir o tom saudoso com que Fumiko começou a falar – Como vai a Lucy?

-Eu vou bem, obrigada. Sobre a Lucy, é justamente por isso que eu liguei... Ahn... Eu não sei como te dizer isso ao certo, mas Lucy piorou muito nas últimas semanas... Não sei quando foi que vocês conversaram pela última vez.

-Faz um bom tempo, é verdade. Mas como ela está? – notei o entusiasmo dela diminuir.

-Ela... – parei, hesitante, me odiando muito por não ser direta e objetiva.

-Aconteceu alguma coisa? – o tom de preocupação nela se sobressaiu.

-Eu sinto muito, Fumiko, mas a Lucy faleceu há poucas semanas. Parada cardíaca.

Meu coração palpitava e meus olhos marejaram. Devia estar sendo terrível, mais que terrível na verdade, receber uma notícia tão triste tão repentinamente. Fumiko não disse nada por alguns instantes, talvez tentando absorver o impacto da morte de Lucy.

-E como você está com tudo isso? Digo... Você está com o Derek agora?

-Ainda não consigo acreditar no que aconteceu. Já o Derek se mudou e vendeu a casa em que a gente morava, agora eu tô ficando na casa de um amigo. É temporário, mas não sei o que fazer, sinceramente.

-Mas como você está fazendo para se sustentar? Você não pode ficar sozinha assim.

-Ah... Eu tô levando com o pouco dinheiro que me restou. Mas eu tô bem, Fumiko, tá dando pra viver.

-Eu me preocupo com você. É muito triste, lamento muito pela condição em que você está. Lucy era uma pessoa muito boa, uma amiga de longa data, é uma tristeza muito grande que eu estou sentindo. Mesmo assim, obrigada por me informar.

Naquele momento, conforme eu aceitava de vez o fato de que Lucy havia morrido e eu havia contado isso à Fumiko, um sentimento horrível me preencheu por completo. Uma angústia que fazia com que eu não quisesse mais me mover, apenas ficar ali, de pé em frente ao parapeito da janela, com o telefone na mão. Quase que petrificada de tristeza. Disse à Fumiko que iria desligar, porque estava tarde e eu não queria mais incomodar.

-Tudo bem, Amie. Posso te ligar outras vezes essa semana para ver se você está bem.

Apenas concordei. Desliguei a chamada, que havia sido até rápida, e deixei o celular em cima da mesa do quarto. Miles ainda estava na mesma posição, aparentemente num sono profundo. O quarto estava escuro e até o barulho dos carros parecia ter silenciado. Não consegui me conter e deixei as lágrimas rolarem. Meu rosto todo estava formigando. Parte de mim pensava no porquê de eu estar chorando tanto sendo que a morte de Lucy havia sido há um bom tempo, mas a outra parte só queria jogar a tristeza para fora de qualquer forma. Não sei por quanto tempo chorei ali, apoiada na parede da janela, mas em determinada hora, Miles se sentou na cama e me encarou, talvez tentando entender o que estava acontecendo.

-Amie? – ele balbuciou, com a voz mais grave.

Não disse nada.

-Am? Tá tudo bem? Você tá passando mal?

-Não... – falei, baixinho, a voz embargada.

-Vem deitar, tá tarde.

Andei devagar até a cama, com os olhos marejados, e assim que me sentei, Miles percebeu que não estava tudo bem.

-Ué, você tá chorando? – ele aparentou estar mais desperto e ligou o abajur ao lado dele – O que aconteceu?

Não consegui dizer nada. Miles, como de praxe, estendeu os braços e me puxou para um abraço, dessa vez, bem apertado. Nós encostamos na cabeceira almofadada na cama e ficamos ali, em silêncio. Sem perceber, entrelacei meus braços com os de Miles. Fiquei com a cabeça encostada no ombro dele por um tempo, até que me acalmei. A tristeza havia ido embora provisoriamente. Talvez na próxima vez em que Fumiko me ligasse, o choro voltaria. Voltei a focar no que estava acontecendo ali quando senti o queixo de Miles encostado em minha cabeça. Meu impulso seria me desvencilhar, mas eu estava tão confortável emaranhada junto a ele que eu simplesmente não quis sair. Mesmo que o casaco de Miles e as cobertas estivessem me esquentando mais do que eu gostaria. Queria poder diminuir a temperatura do termostato por telecinesia.

-Sabe, eu não ia deixar você sozinha lá no parque.

-Eu achei que sim.

-Mas eu não ia.

-O que você ia fazer se eu não fosse atrás?

-Acho que iria te esperar, não sei. Isso não passou pela minha cabeça, mas eu não ia te deixar dormir na rua.

Sorri. Era incrível o quanto Miles me fazia sentir segura, e acima de tudo, bem. Mais incrível era saber que, no início das aulas, eu não fazia questão da presença dele todos os dias e não imaginei que nós ficaríamos tão próximos, e que ele literalmente salvaria a minha vida por me deixar ficar na casa dele. O breve namoro dele e de Hazel passou pela minha cabeça rapidamente, mas resolvi ignorar.

-Eu não saberia o que fazer se você não me levasse pra sua casa naquele domingo.

-Não tinha suspeitado de nada, você foi bem convincente.

-Desculpa por ter escondido aquilo de você por mais do que deveria. Não sabia como te contar, de verdade.

-Teria sido melhor do que me contar durante a viagem, mas eu entendo seu ponto. Não faz mal.

-Um dia eu vou conseguir te retribuir o favor. Pra você e sua tia.

Miles se afastou um pouco, me segurando pelos braços, suavemente.

-Eu disse que não faz mal. – ele sorriu.

Senti o tempo parar por um instante. Miles parecia diferente ali. Os cabelos castanhos bagunçados, os olhos inchados de sono, a voz grave e gentil, o casaco quente deixando seu peito um pouco à mostra. Uma pequena centelha se acendeu dentro de mim nesse momento, um pouco parecida com o que eu havia sentido por Luke no dia do McDonald’s. Um sentimento que me fazia não querer largar de Miles, porque ele era, ao menos nas últimas horas, meu porto seguro. Fiquei um pouco confusa, me sentindo um pouco boba por estar confundindo as coisas. Será mesmo que eu estava confundindo algo? Será que Miles também estava sentindo algo parecido? Eu estava sendo uma idiota por estar tão próxima de Miles considerando o que eu tinha estabelecido com Luke? Mas o que eu tinha estabelecido com Luke era concreto? Eram muitas perguntas e nenhuma resposta. 


Notas Finais


Obs.: Jimmy Hoffa foi um líder sindical estadunidense que desapareceu misteriosamente em 1975. É um caso famoso nos EUA porque nunca acharam o corpo dele, o que é motivo de especulações e teorias da conspiração, por isso a piada do Miles.

Espero que tenham gostado do capítulo! :)


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