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História Eu, Eu Mesma e Minha Ignorância - Thirty


Escrita por: MadeixasNegras

Notas do Autor


Depois de alguns meses de hiato, tô postando a sequência. Desculpem pela demora, espero que gostem ;)

Capítulo 30 - Thirty


Fanfic / Fanfiction Eu, Eu Mesma e Minha Ignorância - Thirty

Minhas tão esperadas parcelas de dinheiro aterrissaram na caixinha do correio na tarde gelada daquele domingo, dia vinte e dois. Eu estava assistindo televisão, largada num dos sofás menores da sala de estar da casa de Miles, ouvindo as brasas da lareira crepitarem. Mexia meus pés calçados com meias felpudas de maneira automática, na tentativa de aquecê-los. Nem Cathy nem Miles estavam em casa naquele período da tarde, o que achei bom, porque nas tardes de fim de semana gostava de ficar sozinha. Por sorte, tinha achado um canal que estava passando episódios especiais de Natal de vários desenhos animados, como Bob Esponja. Ver Lula Molusco entediado com todos os outros peixes cantarolando sobre o Natal e o Papai Noel me fez rir - e eu lembrei de uma certa cena de um episódio em que o Bob Esponja precisava receber uma entrega do correio e ficou tão animado com isso que ficou esperando pela encomenda dentro da caixa de correio -, o que me fez rir mais, e lembrar que eu também estava esperando por um certo pacote.

Levantei do sofá e me esgueirei até a janela da sala sem muitas expectativas - só por curiosidade -, afastei um pouco a cortina de linho marrom claro e vi, para a minha grata surpresa, que a bandeirinha vermelha da caixa de correio estava levantada. Abrir aquela portinhola e finalmente agarrar aquele pacote de papel pardo me encheu de alegria como há muito tempo eu não sentia. Assim que voltei para dentro de casa, desliguei a televisão e abri o pacote com cuidado, ignorando meus instintos que diziam para eu rasgar aquele papel em mil pedacinhos, como eu queria fazer com a cara de Derek. Lá estavam elas, minhas parcelas, por inteiro. Contei e recontei as cédulas várias vezes, incrédula. Derek realmente tinha me enviado aquele dinheiro, e não eram notas falsas. Dois mil e seiscentos dólares em espécie, como eu deveria ter recebido há um bom tempo.

Antes que escurecesse, decidi ligar para Fumiko e dizer que iria aceitar seu convite. Eu iria para Portland passar a semana do Dia de Ação de Graças com ela e sua família. Parte de mim estava aliviada de poder sair daquele estado pela primeira vez em anos e conhecer uma cidade nova, mas a outra – a mais realista – estava desesperada em saber que eu ficaria uma semana numa casa desconhecida, convivendo com pessoas desconhecidas, e que eu não sabia com certeza se me queriam lá também. De qualquer forma, decidi ir.

Apesar de termos nos resolvido, as coisas entre eu e Miles estavam meio esquisitas e flutuantes e eu não queria ter que passar todo o recesso de Ação de Graças com ele. E se não fosse com ele, não haveria outra pessoa. Pensar sobre isso me fez lembrar de Luke e Betty Lou. Agora, com meu saldo restaurado, eu poderia pagá-la por ter deixado minhas caixas ocupando sua garagem. E mesmo sentindo meu peito angustiado ao pensar em Luke, eu reconhecia que precisava falar com ele sobre alguma coisa, não necessariamente sobre nossa briga, mas alguma coisa, só para ver como o clima entre nós estava. Não tive muita iniciativa para ligar primeiro ou mandar alguma mensagem, então resolvi deixar o Cosmos se encarregar de fazer algo acontecer, ou não.

Quando liguei para Fumiko, ela ficou genuinamente alegre em saber que iria me receber e não fez questão de se conter. Acho que, para ela, seria como rever minha mãe depois de tantos anos. Expliquei de onde tinha tirado dinheiro para viajar e pedi que ela comprasse minhas passagens pelo site da companhia aérea no meu nome, visto que eu não tinha conta bancária e não poderia pagar as passagens em dinheiro vivo, mas passaria o dinheiro a ela assim que chegasse em Portland. Ela foi bem compreensiva e me perguntou que horário, que dia, e que poltrona do avião eu queria. Disse a ela que queria ir no dia seguinte e que o horário não era muito importante, desde que fosse durante o dia. Acabei escolhendo uma das poltronas mais na frente, porque certa vez li que quando o avião está caindo, as pessoas na parte do meio para trás são as primeiras a morrer.

Miles chegou em casa antes de Cathy, por volta das seis da noite, quando o céu já havia escurecido totalmente e adquirido tons de um laranja arroxeado fantasmagórico. Eu estava no quarto de visitas arrumando minha mochila antes de ir. Miles parou na soleira da porta e me encarou assim que me dei conta que a mochila era muito pequena para que todas as roupas coubessem dentro dela. Eu provavelmente carregava uma expressão cansada e meio frustrada por não ter lembrado desse detalhe antes, o que arrancou dele um leve riso e me fez olhar para a porta.

-O que tá fazendo? – ele me perguntou, ainda parado onde estava.

-Arrumando umas coisas, vou viajar amanhã.

-Vai pra onde assim tão de repente? – Miles franziu as sobrancelhas, confuso – Você precisa de uma mala maior pra fazer esse bolo caber aí dentro.

-Portland. – dei de ombros sobre o comentário da mala.

-No Oregon? Por que tão longe?

-Uma amiga da minha mãe me chamou pra passar a semana do recesso com ela e eu não vi razões pra recusar o convite. Talvez a neve atrapalhe meus planos, então quero ir o quanto antes.

-Ah. – ouvir as palavras “minha mãe” provavelmente o fez repensar o que ia dizer sobre a viagem repentina - Deve significar muito pra você, então.

-É, sei lá. – desviei o olhar da mochila e o encarei - Eu só queria ir pra longe e parar de pensar em tudo o que aconteceu nesse mês.

-Que horas é o seu voo? – perguntou ele, após uma pausa.

-Uma da tarde. Vou ter que arranjar um táxi e ir pra Syracuse.

-Que mané táxi, a Cathy te leva. Logo ela chega em casa e aí falo com ela. – disse ele, tomando um pouco de controle da situação.

-Eu não quero ocupar o tempo dela, Miles.

-Não vem com essa, não. Você tá aqui em casa há alguns dias, não vai ser uma ida ao aeroporto que vai atrapalhar minha tia.

Não disse nada. Todo mundo algum dia já falou alguma dessas frases polidas só por educação sem realmente querer dizê-las. Geralmente funciona, mas ele percebeu que eu só estava dizendo aquilo por convenção ou algo do tipo. Fiquei um pouco envergonhada. Na maioria das vezes dizemos isso para alguma tia que mal vemos ou algum conhecido, mas eu e Miles já éramos amigos, - bem amigos -, e não havia necessidade disso depois de tantos dias na casa dele. Miles se afastou da soleira da porta e deu alguns passos na minha direção.

-Não vou mentir, tô meio decepcionado. Achei que você fosse ficar aqui.

Olhei para ele e soltei um daqueles grunhidos afirmativos que soltamos quando não sabemos o que dizer, desviando novamente o olhar da mochila, quase como se ela fosse meu refúgio visual para eu não ter que encarar Miles sem lembrar do que havia rolado no quarto ao lado na noite anterior.

-Achei que a gente poderia repetir o bate e volta em Nova York qualquer dia desses, ver se minha aula de patinação no gelo te adiantou alguma coisa, voltar ao Ritz...

Diante da minha falta de respostas imediatas, Miles se aproximou e segurou minhas mãos, como na manhã em que ainda estávamos no Ritz e eu estava finalmente encarando os sentimentos que começavam a borbulhar dentro de mim a respeito dele.

-Sabe, eu ainda não falei com o Luke desde sexta. – disse, prestando atenção nas bochechas rosadas de Miles, provavelmente devido ao frio.

-O que tem isso?

-Você sabe o que tem isso. – torci os lábios, tentando descobrir se ele estava se fazendo de sonso ou se realmente não entendia a relevância de Luke dentro da situação toda - Se você quiser que mais vezes como aquela no quarto ontem aconteçam, eu vou ter que falar com ele.

Apertei as mãos frias de Miles, como quem quer encerrar um assunto logo e partir para outros afazeres. Antes que eu pudesse soltá-las, Miles se aproximou de repente e encostou os lábios nos meus, e o que supostamente deveria ser apenas um selinho se transformou num beijo calmo e lento, que pareceu durar alguns longos minutos. Senti meu corpo se tensionar, como se eu estivesse fazendo algo errado – e realmente eu estava – mas retribui o beijo de qualquer forma.

-Você é quem sabe. – Miles soltou minhas mãos após o beijo e andou até a porta, e antes de sair do quarto, falou - Caso você vá antes que eu possa te ver de novo. Vou te arranjar uma mala maior.

Fiquei meio estática, sentindo o coração palpitar e meu rosto enrubescer. Passei minhas mãos geladas pelo rosto, na tentativa de esfriá-lo, tentando me convencer de que estava tudo bem e eu estava sendo desnecessariamente dramática levando as coisas tão a sério.

“São só garotos. Você tem mais com que se preocupar”, pensei.

Passei alguns instantes tentando me desvencilhar dos pensamentos sobre Miles e Luke e a viagem do dia seguinte, em vão. Não sabia se ia tomar um banho ou comer algo, ou esperar Cathy chegar em casa para ver o que iríamos comer, ou se recontava novamente todo o meu dinheiro para ter certeza de que nada iria faltar. O toque do meu celular me fez voltar ao quarto de visitas. Era Luke Warren. Involuntariamente, revirei os olhos e pensei que minha noite estava prestes a ficar mais complicada do que deveria, e de fato, eu estava certa. Antes que o toque parasse, atendi, meio relutante.

-Oi.

-E aí. – ouvir a voz de Luke outra vez depois da nossa briga me acendeu uma centelha amarga bem no fundo do peito.

-Tinha pensado em te ligar mais cedo.

-E por que não ligou? – disse ele, quase que em um tom de reprovação.

-Porque eu não quis. – falei ironicamente, esperando que ele entendesse meu senso de humor atrapalhado e não levasse a resposta atravessada a mal.

-Tá bom, então. – quase pude enxergar o sorriso debochado de Luke através do telefone – Tá fazendo o quê? Você podia dar uma passada aqui em casa.

-Agora? A essa hora?

-Qual é o problema?

-Sei lá, é que tá tarde.

-Se você não quer vir então é só falar, cara.

-Não, eu quero. Não precisa vir me buscar, eu vou sozinha.

E desliguei, antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. Na verdade, eu estava bem dividida. Não queria ter que andar de bicicleta no escuro e no frio só para ver a cara lavada de Luke, mas também não queria viajar sem ter resolvido meus assuntos com ele. No fim das contas, resolvi ir. Miles estava no quarto e aparentemente não notou minha saída. Também não avisei nada para ele, o que pode parecer inconsequente e estúpido, e na realidade é mesmo. A rua estava completamente deserta assim que abri a porta de casa, o que me fez ter um impulso de voltar para dentro e ficar no calor, totalmente segura, e ignorar a ligação de Luke, mas fui assim mesmo.

Graças ao meu conhecimento em relação às ruas de Cortland e à lembrança de que a casa de Luke ficava perto do Suggett Park, não demorei a chegar à Madison Street. Não vi que horas havia saído de casa e muito menos lembrei de ver as horas quando avistei a silhueta encurvada de Luke na penumbra, em frente à casa dele. Parei com a bicicleta no meio fio e enfiei as mãos no bolso do casaco, meio sem jeito.

-Não precisava ter desligado na minha cara, mano. – ele se aproximou, cheirando a pinho, o que me lembrou o dia em que fomos à garagem de Carter na caminhonete dele.

Dei de ombros, literalmente. Observei, agora mais de perto, a casa de Luke, e percebi que nenhuma luz estava acesa do lado de dentro. A única luz responsável por iluminar o lugar em que estávamos vinha do poste acima de nós, uma luz amarelada e opaca, que brevemente conseguiu tornar a rua gelada um pouco mais aconchegante.

-Não tem ninguém? – perguntei, apontando para a casa.

-Não. – disse ele, olhando para onde eu apontei.

-Achei que seus pais ficavam sempre em casa.

-Eles decidiram ficar longe de mim por uns dias e foram pra puta que pariu passar uns dias na casa de uns primos.

-E você ficou.

-Não queria ter que responder perguntas sobre faculdade nem nada dessas merdas pra um bando de gente que só finge se importar com os outros.

Luke arrumou as mangas do casaco de lona e se sentou no meio fio, um pouco afastado de mim, e me olhou, provavelmente esperando que eu fizesse o mesmo.

-Você devia ser preocupar com isso, o ano letivo tá acabando. – evitei o tom de cobrança na voz e me sentei ao lado dele, sentindo um arrepio percorrer meu corpo por ter que sentar na calçada fria.

-Eu não dou a mínima pra isso. Com ou sem diploma você fica preso num emprego arrombado pelo resto da vida. – Luke olhou para uma das esquinas escuras e pousou seu olhar lá por um tempo, até se voltar para mim – Você, eu imagino indo pra faculdade.

-Acho que se eu conseguir alguma carta de recomendação ou algo do tipo, vou acabar aqui em Cortland mesmo. Sei lá, não ando tendo grandes aspirações na vida desde que minha mãe morreu. Ela se importava com isso muito mais do que eu.

-Tô ligado. – Luke tirou de um dos bolsos um isqueiro e começou a acendê-lo, mas não tinha nenhum cigarro nas mãos, então não reclamei.

-Desde que tudo aconteceu eu esqueci de todas essas coisas de colégio e tal. Minha vida virou de cabeça pra baixo e eu não faço ideia de por onde começar a arrumar a bagunça.

-Talvez você possa aprender a viver na bagunça.

-E virar tipo você? Não, valeu. – ouvi Luke dar uma risada contagiante e não pude deixar de sorrir – Minha mãe não aprovaria isso.

Um curto silêncio se estendeu por alguns instantes, e não me preocupei em encontrar mais alguma coisa para dizer, até que Luke mudou de posição para esticar as pernas e começou:

-Você não veio aqui pra ficar encarando o asfalto.

-Eu sei. – voltei o olhar para ele – Vim aqui pra ver como as coisas tavam, e como a gente não se xingou até agora, acho que tá tudo bem.

-Foi mal por ter gritado daquele jeito aquele dia. – Luke disse, depois de uns segundos, acendendo o isqueiro sem manter a chama por muito tempo.

-Tá. Foi mal por não ter sido sincera com você, também. – falei, sentindo o rancor invadir meu peito de novo.

E, novamente, o silêncio. O olhar de Luke percorreu a esquina outra vez, e eu pude ver algumas sombras se movendo perto do poste de luz.

-Você não quer entrar, não?

-Pra quê? – olhei para ele. – Pra você começar com uma conversinha lerda, me levar pra cama e encerrar isso tudo de uma vez?

-Qual é? Tá achando o quê? Não sou nenhum cafajeste. – Luke aumentou o tom de voz, aparentemente ofendido – Essa nunca foi minha prioridade com você.

-Comigo, né. – dei uma risada de escárnio e revirei os olhos.

-É. Deixei bem claro desde o início.

-Você nunca deixou nada claro, Luke.

-Ah, por Deus, não faz nem um mês que a gente começou a ficar. Você queria o quê?

-Sei lá! – levantei a voz, já cansada daquela conversa – Sei lá o que eu queria. Você deixa as coisas complicadas demais, meu Deus.

-Eu deixo? Você é a mina mais complicada que eu já fiquei, cara. Baixa a bola aí um pouco.

Dei de ombros. Estava indo tudo tão bem, e num instante, eu estava me sentindo ridícula. Talvez, se eu tivesse poupado Luke do comentário sobre a cama, ele não teria começado a discutir.

-Olha, eu só queria esclarecer as coisas. – olhei para os olhos verdes cinzentos de Luke – Se você quiser sair com outras pessoas, eu não ligo, só quero que você me diga.

-Por que tá me dizendo isso?

-Porque eu conheço a sua fama, Warren. Eu faço parte do pacote, agora.

Luke deu uma risada mais alta, acho que porque sabia que eu estava dizendo a verdade.

-E você, por acaso tá vendo alguém além de mim? O cara lá que você tá ficando na casa dele, que você falou que sentiu tesão aquele dia, o Miles.

-É, mais ou menos. Não sei bem, ele é uma pequena loucura de momento, eu acho. Já você, você é uma grande loucura de momento.

-Vocês já ficaram, então. Cobrando a verdade de mim, mas você também não é sincera, entendi.

-Eu tô sendo sincera agora, tá? – rebati, logo na defensiva, antes que aquilo pudesse virar outra discussão.

-Tá, tô sabendo. – ele rastreou a esquina mais uma vez, parecendo um pouco desconfortável – Não tô vendo ninguém, não. Até pensei em algumas, mas ah... Você é complicada e eu gosto de você assim mesmo. As outras não tem essa audácia e essa vozinha irritante e eu gosto disso em você. – Luke voltou o olhar para a esquina, e eu pude ver as sombras um pouco mais nítidas, talvez fosse um grupo de caras.

-Me comparando, né. Legal. Desse jeito faz parecer que você é o maior pegador da cidade.

-E eu não sou? – ele se virou para mim, com um sorriso escrachado, e depois de uma pausa voltou a oferecer – Tem certeza que não quer entrar?

-Você não tem vergonha na cara mesmo, né? - não consegui conter o riso, sentindo o clima aliviar um pouco – O que tem aí embaixo, mel? – perguntei, apontando para as calças folgadas dele.

-Se você quiser descobrir, eu deixo. – ele falou, se aproximando de mim.

-Vá se foder, Luke. – encobri o rosto com uma das mãos e olhei para a esquina contrária, que estava vazia.

-Mas é sério, eu não vou te empurrar pro quarto se você não quiser. Tá feita a oferta.

-Não, obrigada, guarde isso pra outra. Na verdade, eu já vou embora. Tá tarde e eu acho que já resolvi o que tinha pra resolver com você. – levantei do meio fio e pousei uma das mãos no ombro de Luke.

-O Miles deve ser melhor que eu. Mas tá, não sabe o que tá perdendo.

Eu nunca sabia se Luke estava contando vantagens de si mesmo de forma sarcástica ou se aquilo realmente era verdadeiro. De qualquer forma, eu não queria saber.

-Sabe, eu acho que vou aceitar suas sugestões e vou entrar pra beber uma água antes de ir.

-A cozinha é logo depois da escada, é tão fácil que qualquer idiota acha. – ele se virou para trás, rindo, esperando minha reação.

-Se você tentar alguma gracinha comigo lá dentro, eu esfolo a sua cara, entendeu?

Luke ergueu os ombros, como quem se faz de desentendido, e voltou a olhar para frente. Entrei pela porta da frente da casa de Luke como se já tivesse ido lá várias vezes. Senti o frio gelado ficar do lado de fora, e me deparei com uma sala de estar quase que antiquada, cheia de crochês, pratarias e porta-retratos que pareciam pertencer ao século passado. Quem visse a sala antes do morador da casa jamais diria que Luke Warren vivia lá.

Realmente, a cozinha era bem fácil de achar. Passei por uma escada de madeira lustrosa cujos degraus eram enfeitados com um carpete bonito e cheguei à cozinha, que era pequena, mas bem organizada. Havia um vaso de flores por cima da copa cuja água estava verde e turva. As tulipas, muito provavelmente compradas em alguma floricultura, estavam murchas, e me dei a liberdade de jogar a água velha pelo ralo e trocar por uma nova. Luke provavelmente não ligava para as tulipas, quiçá sabia que elas estavam lá.

Avistei um armário de vidro em que havia alguns copos e enchi um deles com água da pia, que estava tão fria que achei que fosse possível ela vir acompanhada de algumas pedras de gelo. Enquanto tomava a água e pensava no meu caminho de volta e se Cathy já estaria em casa, ou se Miles havia me mandado alguma mensagem avisando que o jantar estava pronto, eu pensei em como a conversa havia fluido relativamente bem entre eu e Luke. Nem parecia que, há alguns dias, eu e ele tínhamos quase saído no tapa perto das arquibancadas do colégio por motivos extremamente banais. Quer dizer, mentiras não são banais, mas o contexto da briga havia deixado tudo mais idiota do que realmente era. Parecia estar tudo bem entre nós e eu finalmente poderia encerrar a breve loucura com Luke para ver se valia a pena me meter com Miles. Às vezes, eu queria não ter ninguém para me preocupar com esse tipo de coisa, ou então algum namorado eterno, para que eu não tivesse que lidar com picuinhas como essas outra vez.

Deixei o copo em cima da pia, que estava vazia, e voltei um pouco mais lentamente do que eu deveria para o quintal da frente, por admirar cada detalhe daquela sala de estar outra vez. Imaginei quanto tempo eles gastavam para tirar poeira de tudo. Vi uma porta na parede contrária à escada e supus que fosse um lavabo, e eu estava certa. O meu reflexo horripilante no espelho do lavabo me recebeu assim que abri a porta. Meus olhos estavam lacrimejando por causa do frio, meu nariz escorria levemente e meus lábios trincados pediam por camadas e camadas de hidratante labial. E eu, acima de tudo, parecia precisar de doses cavalares de vitamina D, porque estava pálida como um fantasma, apesar de minha pele não ser muito clara.

Foi aí que ouvi um barulho alto e me assustei. Saí do banheiro e varri a sala com o olhar, procurando se o som estava dentro ou fora de casa, e aí ouvi um falatório e alguns gritos altos e rasgados. Franzi as sobrancelhas e uma expressão de pura dúvida preencheu meu semblante. Não fazia ideia do que estava acontecendo, talvez fossem vizinhos barulhentos, eu não sabia. A sala estava como eu a havia visto a primeira vez. Resolvi abrir a cortina da janela principal, e não vi nada no quintal. Luke não estava mais lá. Ao invés disso, quanto mais me aproximava do lado de fora, mais o som se intensificava, e eu agora conseguia distinguir que os gritos eram de raiva, e não de qualquer outro sentimento. Abri a porta da sala com o coração a mil, tentando enxergar o que quer que estivesse acontecendo na rua escura, e assim que me virei para o lado direito da calçada, que levava à garagem em que Luke e eu ficamos outro dia, pude ver algumas sombras. Na esquina para a qual Luke tanto olhava, não havia mais ninguém. Corri até a fonte do som e arregalei os olhos diante da cena inesperada.

Três ou quatro caras – não consegui saber ao certo – muito irritados chutavam, socavam e empurravam Luke, que estava encostado na cerca que dividia os terrenos, encolhido, totalmente incapaz de se defender. Eles gritavam e xingavam Luke, mas na hora, tudo aconteceu tão rápido que não conseguia processar o que exatamente eles diziam. Sem pensar no perigo em que eu corria, gritei o mais alto que pude e chamei a atenção do grupo de agressores para mim, que pararam de bater no corpo encolhido de Luke. Quase que no mesmo instante em que cheguei, o grupo se dispersou e saiu correndo, sem qualquer intenção de tentar me agredir também. Era muito provável que o problema fosse só com Luke. Nem consegui ver se ele havia tentado se defender, se havia puxado briga, se os caras tinham partido para cima dele sem motivo, se era um assalto ou briga por algum desentendimento qualquer.

-Eu acabei de chamar a polícia! – esbravejei, meio de improviso, tentando ter certeza de que eles haviam ido embora mesmo.

Se no lavabo eu tinha me achado pálida, diante daquela cena provavelmente eu estaria branca feito giz. Corri até Luke e me agachei, apalpando o corpo gelado do garoto, que antes exalava confiança e parecia ser impenetrável, e agora não passava de farrapos. Seu nariz estava torto para o lado e escorria talhos de sangue, assim como os machucados em sua testa, e um de seus olhos já começara a inchar. O estrago realmente era feio e eu não sabia o que fazer. Ele gemia e pressionava uma das mãos contra a barriga.

-O que aconteceu? – balbuciei repetidas vezes, e não obtive nenhuma resposta imediata.

-Puta merda... Chama a ambulância... – ele se arrastou para tentar ficar sentado na calçada, mas a dor que ele sentia apenas o permitiu mudar de posição no chão.

-Ambulância? Você...? – senti o coração acelerar diante do pedido, porque não sabia se a família de Luke possuía plano de saúde, e se não tivesse, ninguém poderia arcar com as despesas de um hospital.

-Amie, eu tô todo fodido, me leva pro hospital, por favor. – pude ver as lágrimas brotarem dos olhos roxos de Luke e seu rosto se contorcer de agonia.

Era inacreditável. Luke provavelmente sabia de seu destino se ele continuasse sentado do lado de fora da casa, mas se aquelas sombras na esquina realmente eram aquele grupo de agressores, ele não haveria como fugir. Ele me chamou repetidas vezes para entrar, e eu neguei todas elas. Se nós tivéssemos entrado, talvez Luke não estaria sangrando na calçada. Se ele tivesse me dito que as sombras da esquina eram, na verdade, alguns caras que queriam alguma coisa com ele, nós provavelmente teríamos entrado em casa. Não pude deixar de sentir um aperto horrível no peito, um sentimento de culpa avassalador que só se intensificava por conta de toda a adrenalina e desespero do momento. Diante daquela situação, eu só poderia gritar por ajuda, ou chamar a ambulância e ter que ligar para os pais de Luke, ou cuidar da situação por conta própria. Foi o que eu fiz.

-Luke, você tem que tentar levantar. – disse, tentando manter o tom de voz firme, porque ele precisava de alguém com quem contar naquele instante tenebroso.

Ele gemeu e chorou quando eu tentei o levantar pelos ombros. Não estava conseguindo reunir a força suficiente para tirá-lo de lá, e quanto mais eu tentava, mais eu sentia vontade de chorar e sair correndo. Mas Luke estava totalmente sozinho, e eu não podia deixá-lo ali. Imediatamente lembrei de Lucy e de como ela provavelmente pediu por ajuda e caiu sozinha no assoalho do quarto quando eu não estava lá, de como ela precisou de Derek para levá-la ao hospital, e de como eu me senti horrível por isso. A culpa me consumia diariamente por não ter estado lá quando ela precisava, e agora era a hora de eu me redimir.

-Luke, por favor... – puxei o garoto pelos ombros e o fiz sentar encostado na cerca, lutando contra a voz embargada – Eu vou te levar daqui. Me ajuda, por favor.

-Não, eu vou sozinho... – ele gemeu, com orgulho barato.

-Cala a boca. – foi a última coisa que disse a ele antes de sairmos dali.

Não sei por quanto tempo tentei fazer com que Luke se levantasse de fato, mas a noite parecia esfriar mais e mais a cada minuto, e nenhuma alma sequer passava pela rua para que eu pudesse pedir carona ou simplesmente ajuda. Parecia um teste. Devia ser o meu karma negativo agindo. Eu também não sei da onde eu e Luke tiramos forças para sair da calçada, mas nós conseguimos. Depois de alguns instantes que pareceram intermináveis, ele finalmente se manteve de pé, curvado para frente, e andamos cambaleando até a minha bicicleta no meio fio. Não precisei dizer nada a ele para que ele soubesse que teria que ir na garupa até o hospital. Ele aguentou se segurar e eu aguentei segurá-lo até o mesmo hospital em que Lucy ficou antes de morrer. Eu sentia a cabeça de Luke apoiada nas minhas costas, seus braços me apertando quase que desesperadamente para que ele não caísse no meio da rua, me lembrando a cada segundo que eu precisava pedalar, e pedalar forte, até o hospital.

Assim que cruzamos a entrada do estacionamento, desci da bicicleta e corri até a recepção, gritando por ajuda, porque um amigo havia sido espancado, talvez até esfaqueado, e eu não sabia o que fazer. Logo, alguns enfermeiros apareceram com uma maca e eu apontei onde Luke estava, se apoiando nos muros do hospital. Vi ele ser carregado para dentro, e quando percebi que o pior tinha passado, deixei as lágrimas rolarem. Aos soluços, eu tentava me convencer de que estava tudo bem, e que era só ligar para os pais de Luke para que eles tomassem alguma providência, e que ele iria ficar bem e no máximo seria alguma costela quebrada, e que eu não tinha responsabilidade nenhuma sobre o que tinha acontecido. O susto fez o choro ser mais desesperado do que eu achei que deveria ser. 


Notas Finais


Espero que tenham gostado! :)


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