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História Eu, Eu Mesma e Minha Ignorância - Thirty One


Escrita por: MadeixasNegras

Notas do Autor


Oi, gente. Nem sei bem o que dizer depois de, o que, dois anos? Mas se consola vocês, eu terminei uma faculdade nesse meio tempo e é provável que eu passe a postar mais capítulos. Enfim, espero que gostem.

Capítulo 31 - Thirty One


Uma cama, uma janela, um armário, uma penteadeira. Marrom escuro, florido. Macio e duro. Parece velho. Quatro linhas, que formam mais quatro, e que formam um grande quadrado. Tem cheiro de madeira. Cheiro de amaciante. Sabão em pó. Não, tá errado. Fiz o exercício errado. Primeiro era o armário, depois a cama. Acho que a palpitação passou.

Uma garota de algum lugar do mundo uma vez postou no Twitter que prestar atenção no que está ao seu redor faz a ansiedade passar. E que jogar pedras de gelo no chão do banheiro te faz descontar a sua raiva. Até que sim, dei a razão pra ela, mas era impossível deixar de voltar a ficar ansiosa quando lembrava de Luke no hospital.

Eu saí correndo. Peguei a bicicleta e voltei pra casa de Miles, jantei, escovei os dentes e me deitei como se nada tivesse acontecido. Pedi pra que Cathy me levasse no aeroporto no dia seguinte, ela disse que sim, eu disse boa noite e vim me deitar. Não sabia se Luke iria querer falar comigo de novo depois disso. Eu reuni forças e o levei para o mesmo hospital em que Lucy morreu, deixei ele sob o cuidado de enfermeiros e depois saí correndo. Entrar naquele hospital era impensável. O cheiro do lugar era igual ao de morte. Eu não consegui. Também não consegui dormir. Não sabia que horas eram. Sabia que eu deveria estar em Syracuse pontualmente às duas pra não perder meu embarque.

Era algo novo viajar de avião. Não sabia como eram as pessoas que viajavam de avião partindo de Syracuse. Vesti qualquer coisa. Cathy me emprestou uma mala maior a contragosto pra que todos os meus pertences coubessem, já que Miles fez questão de dizer a ela que eu queria colocar “um bolo de roupas dentro de uma mochila de escola”. Durante o caminho para o aeroporto, Miles tentou me explicar sobre a diferença entre os fusos horários pra que eu não me perdesse. Ele tentou me convencer de que, quando eu chegasse a Portland, às oito da noite, já seriam onze em Cortland. Não fazia muito sentido, mas aceitei.

Miles e Cathy viram meu avião decolar do terraço do aeroporto. O cheiro do combustível de avião me enjoou por um tempo. Achei que a sensação de vertigem ao ser lançada para o céu dentro de uma grande lata com asas fosse me deixar pior. Serviram cafezinho até pousarmos em Washington para uma escala. As pessoas trataram a viagem com a maior naturalidade, então resolvi fingir também. A neve não nos atrapalhou em nenhum momento. Durante o caminho de Washington até Portland, fiquei imaginando se minha mala chegaria junto comigo no aeroporto ou se ela se perderia pelo país. Ela chegou. O ar de Portland cheirava a pinho, igual Luke. Mas o cheiro de pinho de Portland era mais natural. Quando o sinal do meu celular voltou, me segurei para não mandar mensagem para Luke. Não havia chamadas perdidas nem mensagem de ninguém.

Esperei Fumiko me pegar no aeroporto. Ela não estava igual à foto que vi na garagem de Derek, exceto pelo cabelo escuro e longo. Fumiko tinha grandes bolsas abaixo dos olhos, óculos quadrados e um sorriso acolhedor. Apesar do frio, ela estava de sandálias.

- O voo nem atrasou, né? Que bom, assim a comida não vai esfriar. Deixei tudo pronto pra quando você chegasse. – disse ela, dando partida em seu Corolla 2009.

O carro estava cheio de brinquedos no assoalho do banco de trás. Ia perguntar se ela tinha filhos, ou se seu marido estaria em casa, ou o que ela tinha feito pro jantar, mas só perguntei se o frio não a incomodava.

- Você pergunta por causa das sandálias? – ela desviou o olhar da rodovia e encarou os próprios pés – Não, não. Eu gosto.

Portland e Cortland, pelo menos no trecho em que andamos, pareciam a mesma, exceto pelos inúmeros pinheiros. Quer dizer, havia mais carros, mais prédios, mais gente na rua, até mais outdoors, mas tirando isso, as duas eram iguais. Fumiko cantou o caminho todo enquanto ouvia o rádio. Lembrei de Lucy e fiquei imaginando o que ela acharia disso tudo, e pensando que ela não costumava cantar, nem dirigir, nem usar sandálias.

- Chegamos. Pode descer.

Obedeci e desci do carro, mesmo sem saber onde estava. Vi Fumiko entrar na garagem de um conjunto de apartamentos de dois andares próximo a um bosque. Segui Fumiko o tempo todo. Subimos um lance de escadas e entramos em um dos apartamentos com vista para o bosque do outro lado da rua. A casa cheirava a incenso, a TV estava ligada. Um gato estava deitado no parapeito da janela da sala. Estava quente ali dentro. Talvez fosse por isso que Fumiko saiu de sandálias. Precisei tirar o casaco.

- A casa é sua. – Fumiko me olhou logo depois de trancar a porta – Posso te dar um abraço?

Não pensei muito. Abracei Fumiko e vi Lucy passar de relance pelos meus olhos. Algo fofo passou pelas minhas pernas e miou.

- Oi Mumu... essa é a Amie. Diga “Olá”! – Fumiko me soltou e apertou o gato balofo no colo.

Eu não era a maior fã de gatos, mas Mumu tinha um certo charme. Fumiko saiu dali e me deixou. Estávamos na cozinha. Perto da janela onde Mumu estava deitado, havia uma mesa redonda de madeira lustrosa. Uma embalagem de comida estava ali, junto de um vaso de plantas de plástico. O ambiente tinha o mesmo filtro alaranjado e aconchegante da casa de Cathy, mas mais barulhento e com alguns pelos de gato acumulados no carpete. A cozinha era pequena. Andei até a mesa lustrosa e pude ver que, ao lado direito, havia uma sala com um grande sofá. Não havia ninguém lá e as luzes estavam desligadas, mesmo que a TV estivesse ligada em algum canal de desenhos infantis. Do lado esquerdo, apenas um corredor. Algo naquele apartamento me deixava um pouco sufocada, com se eu estivesse de cachecol em um dia de verão. Julguei ser a quantidade de quadros, porta retratos e objetos de decoração espalhados pelas paredes. Tentei prestar atenção aos detalhes de cada uma daquelas coisas, mas logo Fumiko voltou, ainda com o gato nos braços.

- Deixa eu carregar suas malas pro seu quarto. Quer tomar um banho, comer? Viagens cansam muito.

- Tem alguém em casa? – ignorei as perguntas.

- Tem. A vovó está dormindo e o Neil também. Amanhã você vai poder falar com eles. – ela apontou para a embalagem transparente em cima da mesa lustrosa – É macarrão, espero que você goste. Não tive como fazer um jantar como você merece, hoje o dia foi bastante cheio.

- Não faz mal. – e dei meu sorriso mais anêmico.

Percebi que Fumiko talvez quisesse me perguntar coisas sobre a minha mãe, ou ter uma conversa sincera comigo e me perguntar como realmente eu estava com tudo o que tinha acontecido na minha vida nos últimos tempos, mas, nem eu sabia ao certo.

- Eu preciso te entregar o dinheiro das passagens depois. – disse, sentando em uma das cadeiras mais próximas da embalagem de macarrão.

- Imagine, Am. O dinheiro é o de menos. – Fumiko soltou Mumu no chão da cozinha e abriu a geladeira, investigando o que havia lá dentro – Você bebe refrigerante? Tem uma lata de Pepsi aqui.

Ela não me deixou responder, e logo me deu um copo colorido para que eu bebesse o refrigerante. Fumiko se apoiou na mesa e coçou a testa.

- Eu preciso dormir, mas se precisar de algo, você pode ir no meu quarto me chamar, tá? Lembre-se, a casa é sua. Seu quarto é à esquerda no corredor. Vou levar suas coisas pra lá.

E saiu com minhas bagagens na mão. Mumu também. Imaginei que iria chegar e me deparar com uma família de comercial de manteiga, mas não foi nada disso. Eu não sabia quem era a vovó, nem quem era Neil. A TV continuava ligada, mas só havia eu ali. Abri a embalagem de macarrão. O cheiro não me agradou muito. Talvez a viagem de avião estivesse começando a me fazer mal só ali, naquela hora. Não lembrava quando havia sido minha ultima refeição, então me fiz comer o macarrão com queijo, ou tofu, ou o que quer que fosse a coisa branca e esponjosa que havia no meio da massa e entre os legumes passados do ponto, e imaginei se Lucy iria gostar. Acho que não. O ruído da TV da sala ao lado não parecia inteligível. Comi apenas metade do meu jantar e bebi o resto da Pepsi. Tateei o aparador da sala à procura do controle remoto da TV e a calei. Silêncio total.

Andei pelo corredor estreito procurando uma porta à esquerda, só havia uma. Era o que, por uma semana, seria meu quarto. Cortina com estampa de flores delicadas, um armário e um tapete. O cheiro de incenso estava lá também. Procurei um banheiro. Havia um no próprio quarto, um luxo que nunca tive na minha casa. No banheiro, ao menos, o incenso não estava presente. Não adiantou muito. Meu corpo se contorceu por inteiro, e meu último reflexo foi abrir a tampa do vaso sanitário. Vomitei como há muitos anos eu não fazia. Não tinha ninguém pra segurar meu cabelo, mas me senti um pouco melhor, porque o incômodo que senti desde a noite passada no hospital saiu de dentro de mim. O cheiro do incenso que começou a vir do quarto para o banheiro era bem melhor do que o gosto ácido que estava na minha boca. O macarrão ruim tinha ido todo embora, também. Fiquei mal. Fumiko queria me agradar, mas eu não gostei da comida.

Ouvi alguns passos vindos da direção do corredor, mas ao invés de levantar e dar descarga no que havia feito, continuei parada. Acredito que havia deixado a porta do quarto aberta. Tive certeza assim que uma criança pequena parou na soleira da porta.

- Ô mamãe!

Pulei de susto e me forcei a ficar de pé. Parecia ser um garoto. Os cabelos eram iguais aos de Fumiko, na altura dos ombros. Ele usava um macacão felpudo e amarelo, e meias, também amarelas. Ele não parecia assustado ou confuso. Parecia que, no cotidiano dele, era comum que o barulho de alguém vomitando no banheiro do quarto ao lado o acordassem a noite.

- Mamãe! – ele chamou de novo, e ouvi passos rápidos pelo corredor, até que Fumiko chegou – Mamãe, ela vomitou.

- Opa... Amie, tudo bem? Está enjoada?

- Já passou... – neguei, completamente sem jeito.

- Eu vou te ajudar. – Fumiko percebeu a presença do menininho, e imediatamente mudou o tom de voz - Neil, o que você tá fazendo acordado, hein? Pra sua cama, agora! Tchau!

Ela tirou Neil de dentro do quarto dando tapinhas em sua cabeça, e antes que ele saísse, consegui ouvir ele perguntar se eu estava grávida. Como uma criança daquela idade conseguiria fazer essa associação, eu não sabia. Talvez eu não entendesse muito bem sobre crianças. Ouvi a porta do quarto se fechar.

- Você quer um remédio? – Fumiko perguntou, encostada na soleira da porta.

Eu imaginei que ela fosse fazer um drama, mas assim como a criança, ela parecia estar OK com o meu vômito repentino. Tudo parecia bem, parecia normal, e isso era bem esquisito.

- Não. Eu já tô me sentindo melhor. Desculpa por isso, fiquei enjoada da viagem.

Fumiko entendeu e me ajudou a limpar o banheiro da melhor maneira possível para aquela hora da noite.

- Essas coisas acontecem. – ela se levantou, descartando na lixeira o último bolo de papel higiênico sujo, e me encarou – Sabe, eu te chamei pra cá porque achei que você estivesse muito sozinha lá em Nova York. Se você quiser voltar, vou entender.

Não disse nada. Na minha cabeça, desde que entrei no primeiro avião com destino ao Oregon, senti vontade de dar meia-volta e pousar em Cortland novamente, apesar de tudo. Sair da zona de conforto era simplesmente horrível.

- Eu não sei o que eu quero, Fumiko. – dei um longo suspiro e me sentei na tampa do vaso sanitário – Quero a minha mãe de volta.

Achei que Fumiko iria falar palavras de conforto. Ela apenas falou que também queria Lucy de volta, com muito, mas muito, pesar. Disse que iria me deixar pensar, que queria que eu ficasse bem, me desejou boa noite, e pediu que, se eu sentisse mais alguma coisa, a chamasse no quarto dela. Eu não sabia onde ficava o quarto dela, mas concordei. Ela saiu, fechando a porta do quarto, e eu fiquei.

Passei o restante da noite tentando decidir o que eu queria realmente fazer, e não cheguei a conclusão alguma. Levantei sem saber ao certo que horas eram, mas pude ver que o dia havia clareado e a TV da sala estava ligada, então entendi isso como um sinal de que estava todo mundo de pé. No meu celular, nenhuma mensagem, nem ligação.

A casa estava um pouco menos quente do que na noite passada. Cheguei à cozinha e vi Neil, o garotinho da noite passada, comendo cereal. O gato Mumu estava em cima da mesa, bem perto da tigela de Neil, talvez na esperança de que algo sobrasse pra ele. Fumiko colocava alguns pratos na lava-louças. Sentei em uma das cadeiras e esperei que ela me notasse.

- Você vai vomitar no meu cereal? – Neil perguntou, na maior naturalidade.

- Não...

- Lilo! Isso são modos? – Fumiko o repreendeu, mesmo que eu não tirasse do menino a razão de me questionar – Se sentindo melhor? – ela me olhou.

Apenas balancei a cabeça dizendo que sim. Neil falou que tinha terminado e saiu da cozinha.

- Crianças... – Fumiko riu e se sentou ao meu lado.

- Como você disse que era o nome dele, mesmo?

- Neil. Ele gosta que todos o chamem de Lilo, apelido de Neil, diz ele. Um dia ele ficou sabendo sobre o Neil Diamond, encucou que isso é nome de velho, e ele não é velho. Vai entender.

- Parece justo. – eu sorri – Posso tomar um pouco de café?

Mais que depressa, Fumiko saltou e me arrumou uma xícara colorida, assim como o copo em que ela me serviu Pepsi no jantar.

- Não sei como você gosta, aqui tomamos ele mais fraquinho. Tem açúcar aí na mesa. – ela voltou sua atenção para a lava-louças.

Derramei um pouco de açúcar na xícara e beberiquei. Não pude evitar, fiz uma careta. O café da casa de Fumiko era um pouco estranho. Tomei outro gole. Não parecia café, não mesmo. Vi Neil voltar para a cozinha e pegar uma xícara do que parecia ser chá com Fumiko. E aí, ele catou o saleiro da mesa, colocou uma quantidade enorme em sua xícara de plástico, e saiu.

- Fumiko, o Neil acabou de colocar sal na xícara dele.

Foi o suficiente pra que Fumiko fosse até onde ele estava e perguntar o que diabos ele queria com aquilo. Ouvi a conversa. Neil falou que o chá dele estava normal, e que ele havia colocado sal no açucareiro e açúcar no saleiro para que as formigas se confundissem e não roubassem mais o “nosso açúcar”.

- Me dá isso aqui, me dá. Pro banho, já! – Fumiko ordenou, e Neil passou correndo por trás da mesa.

Fumiko voltou, como se tivesse envelhecido cinco anos em dois minutos, e tirou a xícara do café salgado de mim, jogando tudo pelo ralo da pia.

- Eu juro por Deus. O Lilo é impossível às vezes.

- Quantos anos?

- Seis. Às vezes parece mais. Nem te conto o que já me falaram na reunião de pais e mestres do colégio. – Fumiko tentou evitar, mas acabou dando uma risada contagiante.

Depois do causo do café salgado, Fumiko disse que iria levar Neil à escola, mas que eu poderia ficar à vontade, porque “a casa era minha”. Oito da manhã, sozinha de novo. Nesse meio tempo, recebi uma mensagem de Miles. Ele perguntou se havia dado tudo certo com o voo, e como estava sendo estar do outro lado do país. Respondi que estava tudo bem. A imagem de Luke caído na calçada voltou à minha mente e fez meu estômago revirar. Queria alguma notícia dele, mas não sabia se deveria mandar mensagem, ou ligar, ou o que quer que fosse.

Fumiko voltou dali meia hora. A manhã seguiu comigo sentada na mesma cadeira da mesa da cozinha, ouvindo Fumiko conversar, meio que, sozinha, até que ela falou que precisava acordar a vovó. A vovó era uma senhora bem, bem velha, que ficava o tempo todo em uma cadeira de rodas e não falava absolutamente nada em nenhum momento. Fumiko conversava com ela e a perguntava coisas, mas ela não vocalizava nada, apenas concordava ou discordava. Fumiko disse que ela não tinha nenhum problema grave de saúde além da osteoporose, e que a vovó precisava fazer hemodiálise de vez em quando, e isso sugava praticamente o dinheiro todo dela por conta do plano de saúde, e a vovó precisava tomar sol todos os dias na varanda do prédio, e andar com ela de carro era muito difícil, e Neil estava crescendo ao lado dela, mas era tudo muito complicado. Quis perguntar sobre o possível marido de Fumiko e sobre onde ele poderia estar, mas resolvi ficar calada, porque em nenhuma conversa até aquele momento, Fumiko havia mencionado algum marido ou pai de Neil.

Depois do almoço, quando resolvi desgrudar da cadeira da cozinha e me prostrar no sofá da sala, Fumiko disse que iria à loja de presentes.

- É onde eu trabalho. Quer ir lá conhecer?

Recusei por causa da neve fina que começava a cair do lado de fora. Eu teria outras oportunidades de conhecer a loja de presentes de Fumiko. Ficamos apenas eu e vovó em casa durante a tarde toda, mas parecia não haver ninguém em casa. Só se ouvia o barulho da TV. Não senti mais vontade de vomitar, nem de voltar para Cortland por um tempo. Tentei ficar sem pensar no colégio e no que me aguardava quando eu voltasse de Portland.

Mais tarde naquele dia, entreguei o dinheiro das passagens para Fumiko e expliquei que iria ficar até o fim do feriado de Ação de Graças. Neil e a vovó se acostumaram com a minha presença, e nunca questionaram o porquê de eu estar na casa deles. A neve começou a cair um pouco mais perto do feriado, e as aulas de Neil foram suspensas. Então, de frente à TV, passamos a ficar eu, Neil e Mumu dividindo o sofá, e a vovó na cadeira de rodas. Lembro de quando vimos uma propaganda de fraldas antes de a novela do fim da tarde começar, e Neil voltou ao assunto do dia em que vomitei no banheiro.

- Você vomitou porque tá grávida? – ele soltou, sem precedentes.

- Não. – voltei o olhar pra ele – Vomitei porque fiquei enjoada da minha viagem.

Neil pareceu se contentar com a resposta, mas o assunto continuou.

- Eu sei de onde os bebês vêm.

- De onde? – perguntei, ligeiramente preocupada.

- É segredo e eu prometi pro Mumu que ia contar pra ele, só. Eu não posso te dizer. Mas eu sei de onde eles vêm. – e saiu, indo pedir à Fumiko algo pra comer.

Comecei a me afeiçoar a Neil com o passar dos dias. Até à vovó, mesmo que ela nunca tenha trocado uma palavra sequer comigo. O Dia de Ação de Graças veio, passou, e, sinceramente, eu não poderia ter me sentido melhor. Talvez, dali alguns anos, eu pensasse que foi um feriado péssimo. Mas, nas condições em que eu estava, foi muito bom. Se não fosse por Fumiko, eu estaria, literalmente, perdida. E, por mais que, quando cheguei, eu quisesse voltar para Cortland, na véspera da volta eu não estava mais certa disso. Já era noite quando Fumiko veio me perguntar a que horas eu gostaria de ir para o aeroporto.

- Não sei. Hora que você puder.

- Não foi o que eu perguntei. – Fumiko se sentou ao meu lado no sofá e diminuiu o volume da TV.

Suspirei. Como eu iria dizer pra ela que eu não queria mais voltar pra casa, e ainda por cima, que eu não queria voltar a estudar, eu não sabia. Mas era o que eu gostaria de dizer.

- Você sabe que pode voltar quando quiser, não sabe?

- Fumiko, eu não sei se quero voltar. Não tem nada lá pra mim.

Ficamos em silêncio por um instante.

- O que você espera que eu faça, Lisie?

Lisie. Uma palavrinha foi capaz de revirar minhas entranhas por completo. Tapei o rosto com as mãos e chorei. Fumiko imediatamente se desculpou e acariciou minhas costas, achando que a culpa era dela. Não era. Falei que meu pai costumava me chamar assim. Ela perguntou onde ele estava, eu contei. Contei tudo, tudo mesmo, desde o hotel de beira de estrada até o dinheiro que consegui extorquir de Derek pra que eu pudesse viajar para o Oregon e me ver livre daquela vida que se tornou miserável em questão de poucos dias. Ela ficou calada.

- Eu preciso pagar a Betty Lou. Preciso pegar as coisas que deixei com ela, preciso terminar o colégio, preciso ser responsável, mas não consigo. É tudo tão difícil...

Fumiko continuou em silêncio.

- Então, fica. Você não precisa ir. Usa seu dinheirinho e paga o no-show do voo de amanhã, paga a mulher que ficou com as suas coisas, paga sua mudança. O resto, a gente vê. Dezessete anos, só, você tem. Eu também sinto falta da Lucy. Ela iria querer que você ficasse com alguém que se importa. – Fumiko me pegou pelas mãos, olhou bem no fundo dos meus olhos, e disse – Eu nunca, nunca, vou tentar ficar no lugar da sua mãe. Seu pai imprestável não está mais aqui. Você tá em casa.

Foi impossível não continuar chorando. Usei a barra da blusa pra enxugar um pouco do rosto. Vi que Neil e Mumu nos flagraram. Ele carregava o gato gordo no colo completamente desajeitado. Fumiko pediu que Neil largasse Mumu, porque ele poderia ficar estressado. O garotinho perguntou por que eu estava chorando tanto.

- Ela sente falta da mamãe dela, Lilo. Mas ela vai ficar bem.

Neil pousou suas duas mãozinhas suadas e repletas de pelo de gato nas minhas bochechas e repetiu que “tudo iria ficar bem”, e perguntou se podia mudar de canal. Eu falei que sim, entreguei a ele o controle remoto, e perguntei o que ele queria ver. Fumiko entendeu que eu já estava melhor e foi perguntar à vovó o que ela gostaria de jantar. O choro daquela noite e a conversa com Fumiko foram o suficiente para me fazer sentir que um peso havia sido tirado das minhas costas. A dor não tinha passado, mas as preocupações momentâneas, sim.

Sentada no sofá ao lado de Neil, senti meu celular vibrar. Era uma mensagem, e pior, de Luke. A coração disparou. Li.

“Uma costela quebrada e um nariz fora do lugar. Tô todo roxo e fudido. Meus velhos me levaram pra casa e eu vou ficar confinado por um mês. Valeu por ter me largado no hospital, arrombada. Não precisa mais me ligar. Falou.”

Que ótimo encerramento do nosso caso.

“Obrigada pela parte que me toca. Me sinto emocionada. Se fode.”

E voltei a assistir TV com Neil. Quer dizer, Lilo.


Notas Finais


Espero que tenham gostado. Comentem e divulguem!


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