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História Eu, Eu Mesma e Minha Ignorância - Four


Escrita por: MadeixasNegras

Notas do Autor


Olá, leitores!

Esse capítulo ficou um pouco maior que os outros, mas ainda assim, espero que gostem! :)

Capítulo 4 - Four


Fanfic / Fanfiction Eu, Eu Mesma e Minha Ignorância - Four

Deviam ser umas oito horas quando fui deixada na porta de casa naquela sexta-feira, véspera de Halloween. Observei as luzes do carro seguindo pela Banks Street até a esquina mais próxima, onde desapareceram. As luzes amareladas dos postes tornavam o silêncio da rua ainda mais perturbador, e as abóboras iluminadas dos quintais do fim da rua fizeram arrepiar. Resolvi entrar em casa antes que algum maníaco fantasiado antes da hora aparecesse e me atacasse. 

Fiquei surpresa ao ver que as luzes da sala estavam todas desligadas, e apenas a luz do corredor do segundo andar estava iluminando o ambiente. Nenhum sinal de Lucy à vista, apenas ruídos vindo do andar de cima. Larguei minha mochila em cima do sofá da sala e subi correndo as escadas, percebendo o som ficar mais alto, ficando parecido com água corrente. Novamente, assim como há algumas semanas atrás, apenas a luz amarelada do banheiro estava ligada, com suas frestas passando por baixo da porta. Conforme eu me aproximava do banheiro, o som ia ficando mais alto e distorcido, e a poucos passos da porta, me dei conta de que era minha mãe, agonizando com alguma coisa. 

Abri a porta do banheiro com tanta ferocidade que tive a impressão de que ela tinha se partido, com o coração acelerado, sempre imaginando o pior. Vi Lucy sentada nos azulejos claros do banheiro, próxima do vaso sanitário, enrolada numa toalha, tossindo como se estivesse sufocada. O chuveiro ainda estava ligado, produzindo uma cortina de vapor que infestou o banheiro todo e só fez minha visão ficar mais embaçada. 

A primeira coisa que passou pela minha cabeça foi que a pressão de Lucy tivesse baixado, mas assim que me agachei ao lado dela, vi que ela estava vomitando tudo e mais um pouco no vaso. Sem hesitar, segurei seu cabelo molhado no alto da cabeça e a apoiei para que ela conseguisse alcançar o vaso mais facilmente, tentando controlar a taquicardia. 

Não consegui dizer muitas palavras de apoio. Apenas as máximas "respire" e "calma, está tudo bem" conseguiram sair da minha boca sem ficarem trêmulas. Lucy, ao contrário de minhas palavras, tremia como se a temperatura dentro de casa estivesse abaixo de zero. Tirei seu cabelo úmido do rosto e limpei seus olhos, ainda molhados por causa da água do chuveiro, e aparentemente inchados por choro. Desliguei o chuveiro, pondo fim ao ruído que tinha feito a situação toda parecer um pandemônio, e me sentei no piso molhado do banheiro, de frente para Lucy. 

-Você tá melhor? Conseguiu por tudo pra fora? - indaguei, um pouco mais calma por ver minha mãe respirar normalmente e parar de tremer. 

Lucy assentiu e me abraçou, começando a soluçar. Tive que me segurar para não desatar a chorar junto dela, porque um provável motivo para aquela situação toda começava a se formar em minha mente. Infelizmente, era algo recorrente.

-Me desculpe, Amie. Me perdoe, por favor... - Lucy me olhou, com os olhos marejados, e segurou minhas mãos.

-Aconteceu de novo, não foi? - perguntei, já sabendo a resposta.

-Eu já pedi desculpas, mil perdões, filha. Você sabe que eu estou perdendo a noção das coisas...

-Você não pode me passar um susto desses por algo que você evitar, mãe. Eu quase tive um ataque cardíaco quando te vi aqui, pelo amor de Deus! 

Não pude fazer que minha voz saísse firme. Ver minha mãe, acabada daquele jeito, me quebrava em milhões de pedaços. Era um fato que, quanto mais ela se medicava, mais ela perdia a noção da realidade. A memória dela estava se deteriorando dia após dia e eu não poderia fazer nada além de medicá-la. Aquilo já tinha acontecido antes. Eu odiava ser dura com ela, mas não havia outra opção.

-Pela última vez, mãe. Não tome remédios sem a minha supervisão, eu imploro. - pedi, passando minhas mãos pelo rosto dela - Eu sei que você quer melhorar mais rápido fazendo isso, mas esses remédios são fortes e te fazem passar por situações como essa! Sua memória não é mais a mesma e você sabe disso. 

A expressão de genuína tristeza e desapontamento consigo mesma estavam escancaradas no rosto de Lucy. Não me lembro de ter me esforçado tanto para não chorar. O esforço era tanto que meu rosto estava doendo, mas eu me recusava a demonstrar fraqueza perto da minha mãe. Eu era o exemplo dela, tinha que ficar sempre forte e passar isso para ela. Era difícil, mais do que eu podia imaginar.

-Por favor, entenda. Não me passe mais esse susto, tudo bem? - esperei a confirmação dela e continuei - Isso aconteceu só hoje?

-Há alguns dias isso vem acontecendo. Não quis te contar. - Lucy me fitou com seus olhos escuros e brilhantes - Eu sei que estou perdendo a cabeça. Não vou durar pra sempre. Você é muito forte fazendo tudo isso por mim, mas eu já estou velha, Am. Deixe o tempo fazer o trabalho dele e cuide mais de você mesma. 

Lucy sorriu e limpou seu rosto molhado mais uma vez, depois se levantou, arrumou a toalha no corpo e saiu do banheiro, dizendo que iria se deitar mais cedo. Não consegui levantar do chão por alguns bons minutos. Eu também tinha a plena consciência de que minha mãe não iria durar muito. Há pelo menos cinco anos eu vinha mantendo isso em mente, para que quando acontecesse, eu não me espantasse tanto. Sem ela, eu ficaria totalmente sozinha. 

-Malditos remédios... - resmunguei baixo, ao me levantar dos azulejos molhados do banheiro. 

Eu não conseguia entender por que, mesmo tomando tantas pílulas e comprimidos, minha mãe não conseguia se curar. Era um ciclo vicioso de crises, mais remédios, períodos estáveis e novamente, crises. O que mais me decepcionava era o fato de ela praticamente passar seus dias dopada e não ter nenhuma melhora. Quanto mais variedade de pílulas ela tomava, mais suas sequelas se agravavam. 

Era tanto que Lucy passava mal e vivia com problemas por tomar os remédios numa dose muito maior do que deveria, por ter sua memória totalmente deteriorada. Lucy simplesmente se esquecia de ter tomado suas pílulas mais cedo e reforçava a dose. Ela não tinha mais discernimento nenhum, e eu me culpava imensamente por não poder estar sempre presente e evitar que crises como a de hoje acontecessem. Acontece que eu, infelizmente, não sou onipresente.

Andando pelo corredor de casa, vi a porta do quarto de Lucy entreaberta e a vi deitada na cama, assistindo TV, ainda molhada e enrolada em sua toalha.

-Mãe, não vai se vestir? - me encostei na soleira da porta, observando Lucy, com toda a sua falta de perspectiva.

-Daqui a um instante, um instante. 

-Já comeu algo? 

-Pode me fazer macarrão com queijo? Estou com vontade hoje, faz tanto tempo que eu não como...  - Lucy virou seu olhar para mim e sorriu por um momento.

Suspirei e sorri de volta. Era a quarta vez na semana que ela me pedia macarrão com queijo, e o estoque na dispensa estava por acabar. Eram episódios como esses que me faziam chorar todas as noites. Minha mãe, inocentemente falando coisas que entregavam que ela estava perto do fim. Logo em breve ela poderia se esquecer do meu nome, de onde fica sua casa, e de todo o resto, e eu não poderia fazer nada além de medicá-la e acelerar o processo.

Desci as escadas até a cozinha e liguei as luzes da sala, logo indo até a cozinha fazer - pela quinta vez na semana - o macarrão com queijo de Lucy. A receita se tornou tão comum que virou um hábito dos jantares da semana, e num instante eu já estava levando a comida de Lucy para o andar de cima.

-Muito obrigada, filha. Isso é muito bom. - Lucy se ajeitou na cama e pegou a tigela com macarrão de minhas mãos, sorrindo timidamente.

Percebi que ela já tinha se trocado e estava vestindo sua camisola azul preferida, então me dei por satisfeita e me retirei. Fui para o meu quarto e despenquei em cima da cama, esgotada. Aquela sexta-feira tinha sido o dia mais cheio e intenso das últimas semanas, e era inevitável não remoê-lo todo outra vez, detalhe por detalhe.

Lembrei do momento em que Luke e eu estávamos na garagem de Carter, falando sobre a aposta estúpida que ele tinha feito sobre mim, como se o fato de eu não beber cerveja fosse de outro mundo. Eu e Luke nunca tínhamos conversado como naquela tarde, e eu nunca tinha imaginado ficar tão próxima dele e daquelas pessoas, mas Hazel tinha me arrastado para aquele meio e eu não ia desfazer aqueles laços inesperados tão cedo. 

-Foi mal se eu te ofendi. Eu só falei o que me veio na cabeça. - disse, tentando desfazer o clima pesado entre eu e minha mais nova amizade.

-Não me ofendeu. As pessoas precisam levar um tapa na cara de vez em quando pra acordarem da fantasia que fazem dentro das próprias cabeças. No caso, você deu esse tapa muito bem dado. - Luke me olhou com um sorriso malicioso nos lábios e voltou seus olhos para o horizonte - O Carter tá te chamando lá na TV. 

Olhei para onde estava a TV de Carter e o vi sentado numa almofada, perto de onde as Harper estavam tendo um ataque de risos e passando trotes. Ele me encarava com um olhar nada convidativo, então pedi para que Luke fosse junto.

-Qual é, ele não vai te morder. Pelo menos não aqui. - Luke riu de seu próprio comentário e me empurrou levemente na direção de Carter.

Andei até ele, hesitante, e me sentei ao seu lado. Vi que Hazel estava digitando no celular, com uma expressão de distanciamento total do que estava acontecendo ao seu redor. Voltei minha atenção para Carter e vi que ele tinha uma caixa de papelão nas mãos, cheia de fitas e CD's. 

-Escolhe uma. - Carter começou, com sua voz grave e ligeiramente arrepiante.

Vasculhei a caixa de fitas e encontrei o Blue Album, do Weezer. 

-Sempre tentei achar esse nas lojas, nunca consegui. - mostrei o CD a Carter e o devolvi de volta na caixa.

-É difícil. Praticamente relíquia, ao meu ver. É por isso que eu tenho.

Notei uma certa arrogância por parte de Carter e resolvi que iria ficar um pouco mais na minha. 

-Acha uma fita pra trocar por essa. Uma com um show, de preferência.

Vasculhei a caixa um pouco mais, meio incomodada com o jeito de Carter, e achei uma live do U2, de 1987. 

-Põe essa. 

Carter sorriu e encaixou a fita na TV, dando início às músicas da turnê de mais ou menos 30 anos atrás.

-Sabe, eu nunca me imaginei nessa situação. Inclusive tava falando isso pro Luke.

-Não são todos que podem vir até essa garagem. Aproveite. - Carter cruzou as pernas e se sentou na minha frente.

-Eu sei, por isso é tão estranho. Nunca pensei que um dia eu estaria na garagem de Carter Lewis ouvindo U2 numa TV com VHS integrado em pleno 2015.

Carter riu contagiosamente e bebeu um pouco de sua cerveja.

-Não pensei que você fosse assim. Achei que você fosse uma idiota genérica qualquer e quase não te chamei, mas mudei de ideia. Que bom que eu fiz isso. 

-Eu... - franzi as sobrancelhas diante do comentário estúpido e inesperado de Carter - Não sei se devo chamar isso de elogio, então vou relevar.

Carter riu muito mais do que eu e eu tentei disfarçar minha insatisfação. Respirei fundo. A cada segundo minha vontade de sair gritando daquela garagem. Olhei para Luke, que estava distraído assistindo ao show. No momento, ele era quem estava me impedindo de ter um ataque histérico.

-Isso tudo fica ainda mais estranho considerando que você quase me socou no primeiro dia de aula, há umas semanas atrás. 

-Você esbarrou em mim. Isso é ridículo, você não tem olhos pra olhar pra frente? - Carter disse, de maneira ignorante, como se uma frase daquelas não fosse nada de mais.

-Engraçado você lembrar desse dia, acho que você lembra também de que meus olhos estavam no meu celular, e não focados em não esbarrar em você o tempo todo. Mas isso não te surpreende, eu sou só uma idiota genérica qualquer, não é? 

Por um momento, pensei ter visto Carter Lewis abrir a boca. O garoto arrogante sorriu e se inclinou para trás, aparentemente gostando da situação.

-Realmente, você não é quem eu esperava, Silvermann. Eu te respeito. Respeito você e Hazel. 

Dei de ombros diante do "elogio" de Carter.

-Há quanto tempo vocês se conhecem? - perguntei, ao olhar para Hazel, que ainda digitava algo no celular, concentrada.

-Conheci a Hazel nas férias, quando eu fui prestar uns serviços comunitários no Suggett Park, ao invés de ficar um tempo na delegacia. - Carter riu, com uma pontada de nostalgia, e continuou -Ela tava lá na Wickwire Pool, conversando com uma garota ruiva escrota que fica no posto de salva-vidas nas férias de verão.

-Gina Williams é uma ótima pessoa. - retruquei mais rápido do que achei que era possível e interrompi Carter, que logo voltou a falar besteiras.

-Que fosse. Achei Hazel interessante de longe e resolvi ver se ela poderia me dar um pouco de diversão naquela tarde, porque não não tava nenhum pouco afim de catar lixo do chão.

Carter Lewis era realmente um idiota. Cerrei os olhos e me virei para Hazel mais uma vez. Ela tinha passado muitos dias na minha casa sem mencionar uma vez sequer que Carter, aquele Carter, tinha dado em cima dela. Hazel tinha começado a fazer merda antes mesmo de eu notar.

-Eu tentei, juro. - Carter sorriu de forma maliciosa e me encarou - Mas a Hazel consegue ser uma vaca estúpida quando quer, e eu fiquei sem me divertir. Não sei se feliz ou infelizmente, ela continuou a me ver e a falar comigo. Até hoje continuo sem entender, mas não questiono. Uma hora ou outra ela pode ser útil. - Carter continuava a sorrir, falando aquele monte de idiotices sem o menor discernimento - Lembro inclusive que ela falou de você um dia. Que você era a única amiga dela no mundo todo.

Baixei meu olhar para o chão, escolhendo cuidadosamente as palavras. Carter falou antes que eu.

-Eu costumo dizer que os amigos dos meus amigos são meus também. Hazel é minha amiga, você é amiga dela, e eu sou amigo de vocês duas. É recíproco.

-É meio possessivo e seletivo da sua parte. 

-Eu preciso ser. Quero pessoas que me interessam ao meu lado. Você acha que por acaso eu escolheria o quê, uma Grace Campbell pra andar do meu lado? - Carter riu com escárnio.

-Qual é o problema de Grace? Eu sou amiga dela. Se você tem algum problema com ela, fale na cara dela ou direto pra mim. - cuspi minhas palavras com raiva, deixando Carter surpreso pela segunda vez.

-Eu não sei se você sabe, mas ela é filha do babaca do Campbell. Ele é o maldito que mais reprova naquela porra de escola. 

-E por isso você não pode gostar dela? Você é um idiota.

Quinn e Aubrey nos interromperam escandalosamente, com olhares preocupados e gritos.

-Cala a boca, Quinn! Ela pode escutar pela linha! - Aubrey gritava, histérica, com o fio do telefone na mão.

Aparentemente, a sessão de trotes tinha dado errado e algum dos idiotas do outro lado da linha tinha ficado com raiva. Nunca tinha visto Aubrey tão desesperada, sem sua típica compostura.

-Por que caralhos você foi passar um trote pra farmácia?! Agora a gente tá fodida! - Quinn retrucou, chamando a atenção de Hazel, lá do sofá - Admite que foi um trote e desliga essa porra!

-Eu não vou admitir nada, se essa velha chamar a polícia eu vou pro reformatório e vou levar você junto! 

-A Clinton não vai chamar nada... - Quinn falou, com descrença.

-Você é burra, Quinn?! O telefone da farmácia tem identificador de chamadas pela nossa localização, se a Clinton resolver nos entregar e chamar a polícia, eles chegam aqui em um segundo! - Aubrey gritava, a ponto de ter um colapso nervoso.

-Eu não vou voltar pro reformatório! - Quinn começou a gritar e a puxar os poucos cabelos que tinha.

Todos na garagem - inclusive Hazel, que estava totalmente imersa em suas mensagens - estavam em choque com o súbito momento de desespero das duas, que há segundos atrás estavam rindo como duas idiotas. Não sei no que elas estavam pensando quando passaram um trote para a farmácia da sra. Clinton, mas eu conhecia aquela velha mau humorada e poderia ser a salvação delas naquela tarde. E eu realmente fui.

-Espera aí, Clinton? A farmácia da sra. Clinton? - perguntei, entrando no meio das duas gêmeas.

-É, essa puta velha mesmo. Conhece ela? - Quinn perguntou, me olhando com os olhos saltando das órbitas.

-Me passa o telefone! - falei, ainda meio hesitante.

Quinn jogou o telefone de fio em minhas mãos, e eu agi rápido. 

-Alô? Alô, sra. Clinton? Sim, sou eu! Amielise, filha da Lucy Silvermann. Isso, a mulher dos descontos ilimitados... 

Um silêncio constrangedor e cheio de expectativas tinha se instalado na garagem, como se todos estivessem presenciando um espetáculo. E eu, infelizmente, era a protagonista. 

-O quê? Chamar a polícia? Não, imagine! - sorri, nervosa, com os olhares das Harper na minha cola.

Hesitante, escutei a sra. Clinton surtar do outro lado da linha. Eu sabia que aquela velha não iria desistir de armar um escândalo tão cedo, então pensei numa história tão idiota que poderia parecer real. Deixei a sra. Clinton armar seu escarcéu e comecei.

-Eu... - fechei os olhos, sentindo que iria me arrepender por inventar uma história daquelas - Eu sou amiga delas. Não há necessidade de chamar ninguém, sra. Clinton. Elas não fizeram por mal. Elas foram no dentista, inalaram muito gás anestésico e ficaram malucas. - sorri, rezando para que a velha histérica acreditasse naquela loucura - Isso mesmo. 

Carter não conseguiu evitar uma risada. Tive que me segurar para não rir junto com ele. Eu não ia perder a credibilidade no final da história.

-Não, imagine... Eu é que agradeço, sra. Clinton, tenha uma boa tarde.

Desliguei o telefone. Por uns minutos, somente o som da TV preencheu o cômodo. As gêmeas me olhavam, totalmente incrédulas e boquiabertas por presenciar a façanha mais inesperada que elas poderiam imaginar.

-O que caralhos foi isso?! - Quinn gritou, escandalosa, e me pegou pelos ombros para me dar um abraço que poderia ter quebrado minhas costelas - Foi genial!

Pude ver Aubrey respirar aliviada e sorrir da forma mais discreta possível, voltando, aos poucos, à sua postura habitual. Escutei Hazel dar uma risada do sofá e a vi voltar às mensagens, carregando um sorriso orgulhoso. Luke também sorria, de braços cruzados, de certo tentando acreditar que a garota reservada que ele conheceu há poucos minutos tinha se transformado naquela louca mentirosa.

-É sério, Silvermann. Pode me pedir qualquer coisa, eu devo tudo e mais um pouco pra quem me impediu de voltar pro reformatório. - Quinn agradeceu, genuinamente feliz - Isso também vale pra Aubrey.

A loira concordou, sem soltar um agradecimento sequer. Mas, para mim, só a confirmação delas me servia como a garantia de que eu não seria perseguida no colégio ou receberia bombas caseiras no armário, como tinha acontecido no ano passado com uns alunos inocentes do Junior Year. Pela primeira vez, eu me sentia segura e bem alojada na hierarquia estudantil. 

-Não há de quê, Quinn. Eu só falei o que me veio na cabeça pra safar vocês. 

-Totalmente inesperado. Você tem nosso respeito, Amie. - Aubrey disse, acendendo um cigarro num canto da garagem, tirando de mim todo e qualquer resquício de vontade de abraçá-la.

Apenas sorri. Repentinamente, senti meu celular vibrar no meu bolso. Levantei do carpete e vi que a mensagem era de Miles. Dizia que ele precisava falar comigo, e que era bem importante.

-Carter me mandou comprar uma pizza. Quer vir? - Luke me perguntou, parado na minha frente.

-Desde quando você faz o que os outros mandam? - retruquei, guardando meu celular no bolso.

Luke deu uma risada e enroscou seu braço no meu pescoço, bagunçando meu cabelo, que já não estava lá essas coisas. Empurrei Luke para o lado e sorri sem pensar. Aquele cara era um dos idiotas mais legais que eu já tinha conhecido.

-Na verdade eu já tava de saída. - falei e puxei umas mechas do meu cabelo, tentando organizá-lo de alguma forma.

-Ei, Carter! Amie tá vazando. - Luke gritou para Carter, que estava sentado no sofá, mais uma vez ao lado de Hazel.

Carter apenas sorriu e acenou. Hazel pronunciou um "Me liga" inaudível e eu assenti. Quinn gritou um "Até mais" e Aubrey só sorriu, com seu cigarro entre os dedos. 

"Bando de malucos...", pensei enquanto saía da garagem de Carter junto de Luke.

Se eu pudesse viajar no tempo e dizer para a Amie de uma hora atrás como ela se sairia na garagem de Carter, eu diria que seria o dia mais louco e inusitado que ela viveria em uns bons meses.

-Foi melhor do que você jamais imaginou que seria, não? - Luke me olhou, tirando as chaves da picape do bolso.

-Sim, totalmente. Meu dia mais insano em umas boas semanas. - sorri, meio embaraçada, mas feliz.

Eu ia dar a volta para ir embora, mas Luke me gritou.

-Sobe aí! - ele falou, ao entrar na picape, logo girando a chave da ignição.

-O quê? - franzi as sobrancelhas, tentando entender se Luke queria dizer aquilo mesmo.

-Vou te dar uma carona, sobe aí. 

Fiquei parada a poucos metros da picape, ouvindo-a ranger, decidindo se eu entrava naquela com Luke - o babaca do Senior Year, que na verdade tinha se revelado um cara bem interessante -, ou se ia a pé para casa. Não sei se feliz ou infelizmente, a Banks Street ficava a meia hora da casa de Carter, e eu não tinha ido para o colégio de bicicleta naquela sexta. Resolvi arriscar.

Entrei na cabine da frente, ao lado de Luke, e fechei a porta do passageiro, hesitante. O cheiro de pinhos e cigarros voltou a incomodar meu nariz. Assim que Luke deu a partida, um Carter apressado surgiu, deixando a porta da garagem aberta. Abri a janela e o deixei a apoiar.

-Amanhã vai ter uma festa de Halloween aqui em casa. Vê se aparece. - Carter sorriu e continuou - Use uma fantasia ou uma máscara sequer, é Halloween. Às oito. 

Carter voltou para dentro da garagem tão rápido quanto apareceu. Luke deu a partida e virou na esquina da South Main Street, depois ligou o rádio. Tocava uma música country qualquer, que não tinha absolutamente nada a ver com Luke. Ele, não sei se para me contrariar, gostou da maldita música.

-Blackberry Smoke, é uma boa banda. - Luke tamborilava seus dedos no volante ao ritmo da música, que com o tempo se tornou agradável.

-Não sou a maior fã de country. - cruzei os braços e passei a olhar as ruas do Centro de Cortland pela janela.

-Eu também não, mas há exceções pra tudo. - Luke me olhou, dividindo sua atenção comigo e com a estrada - Você também não tem cara de quem vai naquela festa do Carter.

-É, acertou. Também não sou a maior fã de festas que existe. 

-Você deveria ser. Seria bem requisitada. 

Encarei o sorriso idiota de Luke e não consegui evitar soltar uma risada. A todo momento aquele garoto mudava o meu pensamento sobre ele.

-Luke Warren, você é o pior de todos, sabia? 

O sorriso de Luke se manteve, e ele voltou a prestar atenção na rua. As luzes dos carros começavam a se acumular nas ruas e um burburinho típico de fim de tarde preencheu o Centro da cidade.

-Por que você não tá sendo um babaca como você é no colégio? Desde que eu entrei nesse carro hoje mais cedo, você vem sendo um cara decente. 

-Eu não ganharia nada sendo babaca. Com o colégio é diferente, aquele lugar é tão detestável que eu não consigo evitar. 

Sorri. Luke, com seus cabelos lisos na altura dos ombros e olhos verdes profundos, conseguia me surpreender a cada segundo. Sempre que eu pensava em algo que ele poderia dizer, Luke me contrariava. Parecia que ele conseguia ler a minha mente. Era até assustador. E, mais uma vez, lá pelas seis da tarde, Luke me surpreendeu outra vez.

-Ah, me esqueci de dar meu endereço. A gente tá perto.

-Pra quê? Não vamos passar lá por agora. - Luke disse, sem tirar os olhos da rua.

-Como assim? 

-Estou te sequestrando. - Luke me olhou, com uma cara tão séria, que eu cheguei a achar que era verdade.

Olhei para Luke como se ele estivesse falando árabe. Virei o rosto para a janela e percebi que nós estávamos entrando na rodovia estadual, a NY-13. 

-Você não tá falando sério, tá? - perguntei, totalmente embasbacada.

Luke não disse nada, nem esboçou reação nenhuma, apenas seguiu pela rodovia até entrar no estacionamento do Wendy's. Paramos a picape numa vaga de frente para as janelas do restaurante. 

-Que tipo de sequestrador eu seria se eu não parasse num fast-food? Desce aí.

Desci da cabine e senti uma lufada de vento úmido bagunçar meu cabelo. O céu estava escurecendo, não só por causa do fim do dia, mas porque nuvens de chuva estavam tomando espaço. Luke andou até a porta que levava à área de não-fumantes, e eu o segui. O restaurante estava meio vazio para uma sexta-feira à noite, e dois atendentes estavam atirando dardos nos fundos da cozinha. 

-Ei?! Querem vir atender seus clientes? - Luke gritou, fazendo um dos funcionários atirar um dos dardos na foto do funcionário do mês.

Assustei-me com o tom de voz de Luke, que foi de calmo a histérico em segundos.

-O que você quer? - Luke se virou para mim.

-Nada, não precisa. Eu nem tenho dinheiro aqui comigo.

-Corta essa, Amie. Eu sei que você quer alguma coisa, e não seria justo levar comida para os outros e deixar você sem nada. Todos merecem um pouco de gordura saturada.

Não pude evitar uma risada e pedi, mesmo me sentindo culpada, um wrap de frango picante junto de uma limonada.

-Me vê um chili, uma porção de fritas e um chá gelado.

Saímos da área do caixa e fomos nos sentar nas mesas externas, porque Luke queria vigiar a picape de Carter. O vento estava tanto que precisei prender meu cabelo, mas para Luke não parecia ser um problema, apesar de todas aquelas mechas. Nossa comida chegou rápido, assim como eu comecei a devorar meu wrap, mas Luke cruzou os braços e deixou o chili com as fritas em cima da mesa.

-Você pagou oito dólares num chili que você nem vai comer? - perguntei, entre mordidas no wrap.

-Eu nunca disse isso. Uma hora eu vou comer e você não vai nem perceber.

E voltou a ignorar o pobre chili. Larguei meu wrap em cima da mesa e arrastei o pote de chili para o meu lado. Foi até engraçado ver a maneira possessiva como Luke descruzou os braços e tomou o chili de mim em questão de segundos.

-Você não vai comer, mas não me deixa também? Que egoísta. - debochei de Luke enquanto tomava minha limonada, que mais parecia gelo com limão do que o contrário.

Luke apenas me olhou de canto e escondeu um sorriso com a manga do casaco.

-Sabe, nem nos meus sonhos mais insanos eu teria imaginado sair com Luke Warren do Senior Year. 

-E muito menos que ele te pagaria um wrap de frango. - Luke completou, entortando os lábios, como num protótipo de sorriso - Hazel também era desconfiada quando comecei a falar com ela, por causa do Carter. Ele contou que deu em cima dela? Ridiculamente satisfatório ver o Lewis levando um fora.

-Sim, ele falou. - comentei, rindo da imagem que Luke criou na minha cabeça - Eu lembro do dia em que você apareceu do nada na biblioteca, foi assustador e aleatório ao mesmo tempo. Pra mim, você parecia um idiota...

E num piscar de olhos, com a mesma facilidade que criou o clima, Luke o desfez. Simplesmente por acender um cigarro. Meu sorriso se desfez bruscamente e meu peito se encheu de puro ódio depois de inalar aquela fumaça podre.

-O que foi? Eu ainda sou um idiota? - ele perguntou, com o cigarro entre os dedos.

Joguei o resto do meu wrap na mesa e empurrei minha cadeira para trás, já me levantando da mesa.

-Ei, ei! - Luke segurou o meu braço antes que eu entrasse no restaurante - O que caralhos eu fiz? 

-Se você não amassar essa porra no chão, oficialmente você é um idiota! 

Os olhos de Luke estavam incrédulos, assustados, totalmente em pânico por me ver gritando daquele jeito, com os olhos arregalados e bochechas vermelhas. Mecanicamente, os dedos de Luke se abriram e deixaram o cigarro cair no chão. Seu tênis o amassou e apagou a fúria do meu peito como se ela fosse uma vela. 

-Amie, você tá tão vermelha quanto o meu chili. Se acalme, por tudo o que é mais sagrado! 

Luke puxou a cadeira que estava ao lado dele e me sentou, depois me deu um pouco de seu chá gelado. Não falei nada por um bom tempo. O vento úmido da chuva que cairia mais tarde fez meu rosto esfriar. Eu não deveria ter surtado na frente de Luke Warren.

-Me desculpa. Mesmo. Eu não tenho esses acessos de raiva normalmente. - falei, timidamente, acuada na cadeira marrom do Wendy's.

-Pode me explicar o que foi isso? Você se transformou de uma hora pra outra. - Luke ainda respirava pesadamente.

-Foi o meu pai. Ele acabou com a vida da minha mãe. Em todos os sentidos. Minha mãe tava se esforçando pra ficar boa e se controlar, pra cuidar de mim, e tudo o que ele fazia era fumar essa desgraça. Hoje, depois de tudo, o que ficou marcado em mim foi o cheiro disso. Dessa... Coisa. 

Cuspi cada uma daquelas palavras com dificuldade. Luke olhava para o asfalto do estacionamento, aparentemente tentando entender o meu ponto.

-Eu me sinto uma completa idiota contando isso pra você, que é praticamente um desconhecido. A única pessoa que sabe dessa maldita história é a Hazel, e eu conheço ela há uns seis anos. Isso tudo é realmente um engano ridículo. Parece que eu tô vivendo um tipo de sonho maluco e não tenho consciência do que tô fazendo. Na verdade, eu nem sei se isso é um sonho ou um pesadelo. 

Olhei para Luke. Ele não tinha tirado os olhos do chão, tentando entender aquela loucura toda. Até que, pela enésima vez, ele me surpreendeu. Pegou uma de suas fritas, mergulhou no chili, e comeu. Entre tantas e tantas atitudes que ele poderia tomar naquela situação, ele comeu uma batata. 

-Você não precisa saber ao certo o que tá vivendo. Só quero que saiba que, tanto eu quanto Hazel somos confiáveis o bastante pra fazer você viver seu melhor sonho ou seu pior pesadelo. E isso não é uma ameaça.

Luke sorriu e me olhou nos olhos pela primeira vez desde o meu surto. Sem pensar muito, o abracei.

-Luke Warren, você é o pior de todos. - sussurrei, com o queixo em seu ombro.

-Eu sei disso. 

Não falamos mais nada depois disso, pelo menos não antes de sairmos do Wendy's. Luke encomendou algumas asinhas de frango para a garagem de Carter e logo depois ele disse que ia me deixar em casa. Já estava escuro quando nós saímos do restaurante, e seguimos pela NY-13 por um bom tempo, até que, lá pelas oito da noite, Luke parou a picape em frente à minha casa. 

-Carter deve ter ficado puto por você ter demorado tanto com a comida. 

-Eu digo que deixei você aqui, fui esfolar a cara de uns idiotas por aí, e fica tudo bem. - Luke, pela primeira vez no dia, sorriu espontaneamente. 

Retribui o sorriso e entreguei meu celular a Luke. 

-Anota seu celular aí. Posso precisar qualquer dia. 

Luke fez o mesmo, e depois que trocamos nossos contatos, eu finalmente desci da picape. O garoto ligou a ignição e o barulho do ranger da picape ecoou pela rua toda.

-Vou te esperar amanhã na casa do Carter com a cartela de cigarros na mão.

-Vá se foder, Luke... - forcei uma cara de irritação, mas um sorriso bobo se sobressaiu e serviu como despedida para Luke Warren.

As lembranças de mais cedo naquele dia foram interrompidas pelo toque do meu celular. Olhei o nome no visor de chamadas. Era Hazel. Atendi o telefone, ainda tentando fazer as lebranças se desvanecerem.

-Hazel? Tá em casa? - perguntei, sentando na cama.

-Sim, por que a pergunta? Achou que eu tava na rua até uma hora dessas?

-Não, eu só imaginei mesmo. Se bem que, do jeito como você e o Carter tavam lá hoje de tarde, não me surpreenderia se vocês dois resolvessem ficar um tempo a mais juntos... - sorri, imaginando a cara de Hazel.

-Cala a boca, Am! Quem você acha que eu sou? Me respeite. E além disso, eu vi você e o Luke também, no maior clima.

-O quê? Não há nada entre eu e o Luke, segura a onda, tá? 

-Eu não disse nada, mas se a carapuça serviu... - Hazel riu maleficamente e me arrancou um sorriso, mesmo sem querer.

-Você entendeu o que eu quis dizer.

-Claro, claro que sim. Mas mudando de assunto, Carter te contou da festa? Você vai?

-Não, Hazel. Claro que não. As festas de Halloween do Carter são as mais insanas de todas, você acha mesmo que eu iria numa festa daquelas? Até a polícia apareceu lá uns anos atrás.

-Larga de exagero, Am. E você, acha que eu iria numa dessas se eu não soubesse do que se trata? 

Hazel soou terrivelmente convincente. 

-Escuta, eu não vou, e você também não. Isso é sério, se a polícia aparecer lá de novo, a gente pode ser pega junto com aquele povo e eu não estou afim.

-Tarde demais, Am. Aubrey e Quinn me chamaram pra ir comprar as fantasias numa loja de roupas antigas do Centro, amanhã de manhã. 

-Não sabia que vocês eram tão próximas assim. - disse, num tom ciumento que eu não queria que tivesse saído.

-Calma, não precisa ficar com ciúmes, elas chamaram você também. E aí?

-Não, Hazel... Eu não tenho dinheiro pra ficar gastando com esse tipo de coisa. Talvez eu tenha alguma máscara de hóquei parecida com a do Jason e uma roupa larga e escura pra usar.

-Ah, então você vai? Se você tá escolhendo roupas, então é porque vai! - Hazel desatou a rir do outro lado da linha.

Revirei os olhos e me despedi de Hazel, desligando a chamada. Caí na cama outra vez e encarei o teto. Ir naquela festa era ridiculamente arriscado, mas eu não podia deixar Hazel sozinha. E se ela resolvesse beber, quem cuidaria dela? Eu precisava ir, de um jeito ou de outro. 

Afastei a festa dos meus pensamentos e passei uma mensagem para Miles, perguntando o que ele queria me contar. E, rolando o dedo pelos meus contatos, vi os recentemente adicionados. Só havia um: Seu melhor pesadelo. Franzi as sobrancelhas e achei que se tratava de um spam, mas aí me lembrei de Luke. Era ele. Sorri e bloqueei a tela do celular. 

-Ah, Luke Warren... Você é o pior de todos.


Notas Finais


Espero que tenham gostado! :)


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