-Ikki?
A voz que me chamava estava muito longe. Muito.
-Ikki? Consegue me ouvir?
Abri os olhos muito devagar. Uma silhueta se formou diante dos meus olhos, mas estava difícil enxergar mais do que um vulto.
Tentei falar, mas tudo que saiu foi um gemido.
-Ele está reagindo. Alguém, rápido...
Tentei me mexer, mas não conseguia. Virei a cabeça um pouco e foi então que vi que onde eu estava tinha uma movimentação grande.
Não consegui contar, mas devia ter em torno de sete ou oito pessoas por ali. Pisquei várias vezes e uma luz se acendeu nos meus olhos.
-Ele ainda está sobre efeito da droga. Portanto, sugiro que se aproveitem disto para obter uma confissão detalhada.
-Mas isso... Eu preciso levá-lo para a...
-NINGUÉM VAI LEVÁ-LO DAQUI! ELE ESTÁ CLARAMENTE DROGADO, ISSO FOI ARMAÇÃO.
-Shun, se acalme...
-NÃO VOU ME ACALMAR SAORI! É O MEU IRMÃO QUE ESTÁ SENDO ACUSADO DE UMA COISA QUE ELE NUNCA FARIA.
-Shun...
Consegui identificar a voz de Saga. Era firme e autoritária.
-Eu pedi exames de sangue, mas por sorte coletaram algumas amostras no início da noite, o que pode evidenciar a clara diferença de medicamentos no organismo dele. Até que esses resultados fiquem prontos, ninguém irá remover meu paciente daqui.
-Ele foi autuado em flagrante. Nem mesmo vocês...
Saga parecia rosnar enquanto respondia aquela voz, que também não me era estranha.
-Ou você atua do nosso lado ou desaparece daqui. Se tiver alguma dúvida, aproveite o momento como eu disse: sob o efeito de seja lá o que for que tenha tomado, ele está obedecendo a qualquer comando dado. Pergunte o que quiser e ordene que ele diga somente a verdade. E se estiver convencido ou não, suma da minha frente por que com um advogado como você ninguém precisa de um júri para condená-lo.
Um silêncio que era tão constrangedor que até eu senti a tensão no ar se instalou. Outra voz conhecida se manifestou.
-Se o que você diz é verdade Dr. Saga... Nós podemos realmente levar isso em conta e evitar uma prisão desnecessária.
-Frei, você me conhece há algum tempo. Desconfia mesmo da minha palavra?
-Não.
-Muito bom. Gostaria que você participasse desse depoimento. Podem gravar o momento até, acho que será uma prova válida diante de qualquer tribunal. Mesmo os mais desfavoráveis, não concorda Dr. Shaka?
O tom de Saga era irônico e desdenhoso.
-Contanto que a verdade...
-A verdade, a verdade... A verdade dele é que é um rapaz doente, vítima de outra pessoa tão doente quanto ele. Pessoa essa que se você fosse tão bom e capaz quanto se acha, já deveria ter posto atrás das grades.
-Saga, já chega. Shaka, tome o depoimento de Ikki.
A voz de Saori soou enérgica, e pelo jeito pôs um fim a qualquer discussão que ainda quisesse continuar naquele lugar. Minha vista foi ficando mais clara e pude identificar melhor e aos poucos as pessoas naquele lugar, que com algum custo reconheci como meu quarto.
Saori. Saga. Shaka. Shun. Frei. Os seguranças que Saori colocou na porta do quarto.
Seiya.
Minha cabeça deu um giro e eu ouvi um zumbido forte. Uma mão gentil pousou em meu braço.
-Ikki? Como se sente? Preciso que me fale o que está sentindo.
-Eu... Dor de cabeça. Tontura.
-Consegue falar?
-Acho... Sim...
Saga afagou meu braço de maneira suave.
-Muito bem. Escute, estamos todos aqui. Vai tudo se acertar. Agora, Shaka, lembra de Shaka?
-Shaka?
- O advogado... Ele vai te fazer algumas perguntas, e você precisa responder a verdade. Somente a verdade, Ikki. Você me ouviu?
-Só a verdade...
Saga pareceu satisfeito. Shaka se postou a frente da minha cama e se dirigiu a mim em um tom seco e indiferente.
-Ikki. Eu vou fazer algumas perguntas e espero que me responda com toda a franqueza. Fui claro?
-Claro... Responder...
Shaka fez um interrogatório. Nome, idade, profissão, família, formação. Todos pareciam ansiosos a medida que eu respondia. Shun estava visivelmente nervoso, mas a cada resposta ele parecia mais animado.
Shaka perguntou se eu me lembrava do que acontecera a pouco.
-Não.
-Qual sua última lembrança? A última coisa que se lembra de ter visto?
Demorei um pouco a responder.
-Seiya...
Saga, Saori e Shun se entreolharam pesarosos. Mesmo com a atenção voltada para Shaka, eu pude ver que eles pareciam chateados.
-Seiya? Quem é Seiya?
-Meu... Meu...
Foram segundos de tensão até que saísse da minha boca a verdade.
-Meu amigo.
-E por que se lembra de tê-lo visto?
-Eu... Não sei. Tinha uma porta. Ele entrou... Eu acho que dormi. Posso ter sonhado?
Realmente, eu estava muito confuso ainda.
-E antes de ver o Seiya, o que se lembra?
-Eu... Conversei com a enfermeira loira. Ela me aplicou o soro com remédio. Tirou a bandeja do jantar e saiu...
-Como era essa enfermeira?
-Loira. Gorda. Não muito nova. Estranha. Mas com a voz... A voz familiar.
Shaka suspirou de uma maneira que nem mesmo sóbrio eu saberia identificar se era de alívio ou descontentamento.
-Ela pôs um remédio... Remédio para que?
-Dor... Barriga.
Um minuto de silêncio. Shaka se virou para Saga.
-Seria possível um remédio para dor de barriga deixá-lo assim?
-Não um remédio simples. No prontuário dele consta um analgésico abdominal comum, mas obviamente foram colocados dados errados ali.
Shaka parecia considerar algo. Sua voz mais uma vez alcançou meus ouvidos.
-Ikki. Você matou Shina?
-Eu? Não, eu não... Nunca faria isso. Shina é minha amiga.
-Você tinha algo contra Shina?
-Não.
-Você veio parar nesse hospital por que se acidentou durante uma briga. Recorda-se disso?
-Não.
-Você foi atingido brutalmente por que estava agredindo Shina em uma festa. Lembra-se disso?
-Não. Eu não... Nunca bateria em uma mulher. Shina é minha...
-Amiga, já disse isso. Droga, ele parece falar a verdade.
-Não parece feliz com isso Shaka.
-Não é isso, Saga. É que...
-Não importa. Pergunte logo o que mais precisar saber pois os exames logo chegarão e irei medicá-lo. Não desperdice tempo.
Shaka parecia indignado com Saga, mas obedeceu claramente a contra gosto. Fez mais algumas perguntas que nem lembro bem, e por fim calou-se.
-É tudo?
-Não há necessidade de perguntar mais nada. Se ele está sobre efeito de algum tipo de droga da verdade e nega todas as acusações sem demonstrar hesitação ou medo, não há por que desacreditá-lo. Posso apenas dizer por hora que é um rapaz muito azarado.
-E teimoso. Se tivesse ouvido a mim e Saori...
Alguma conversa ainda parecia acontecer, mas minha atenção foi atraída para a pessoa que sutilmente foi se encaminhando até a frente da minha cama.
Eu não sabia dizer o que era verdade ou delírio.
Mas Seiya estava ali. Mancando. Com uma expressão estranha, como se olhasse para algo que não definira ainda se era bom ou ruim.
-Seiya?
-Sim Ikki. Sou eu.
-Seiya. O que... O que faz aqui?
De repente tudo silenciou. Todos encaravam a mim e a Seiya de forma temerosa.
-Eu... Eu ouvi uma gritaria próximo ao meu quarto. Uma enfermeira gorda entrou, dizendo que você havia... Matado Shina.
-Shina... Eu nunca mataria a Shina.
Todos pareciam constrangidos. Seiya piscou algumas vezes.
-Eu sei Ikki. Eu sei...
Ele parecia triste. Muito triste.
-Seiya... Você... Por que chora?
-Eu... Não se preocupe Ikki.
-Eu... Me preocupo. Preocupo-me com você.
-Por quê? Por que se preocupa comigo, Ikki?
Saga e Saori tentaram interferir.
-Seiya, você e Ikki precisam descansar. Vamos.
-Isso Saori, acompanhe Seiya e...
-Calem a boca!
Todos se assustaram com a reação bruta de Seiya. Ele os mirou com os olhos vermelhos e após alguns segundos se virou para mim novamente.
-Ikki. Eu quando entrei no quarto da Shina há algumas horas encontrei você.
-Eu?
-Sim. Conte-me a verdade. Por que você estava se...
Ele parecia incomodado.
-Você estava se tocando entende?
-Me tocando?
-Se masturbando. E quando me viu, você... Hum... Chegou ao orgasmo.
-Orgasmo...
-Lembra-se disso?
-Feliz...
Todos pareciam concentrados em nós.
-O que? Feliz? Você estava feliz?
-Me falou... Ela disse... Que você ficaria feliz se me visse... Me visse... Gozando para você.
Seiya levou à mão a boca e se apoiou na beira da cama. Shun foi ampará-lo.
-Seiya?
-Eu... Por que você gozaria pra mim, Ikki?
-Eu...
-Por favor, Seiya, chega. Vamos, ele não está em si...
-Espera Shun. Espera. Eu preciso saber. Ikki?
-Sim?
-Me fala a verdade. Por que se masturbou... Para mim?
Saga e Saori bem tentaram impedir que a conversa continuasse. Mas era tarde e mesmo com eles falando alto e juntos, Seiya ouviu claramente minha declaração.
-Por que eu amo você.
O silêncio era sepulcral. Todos me olhavam com medo, pena e desconforto.
-Você me ama?
-Amo.
-Desde... Desde quando?
-Há muito tempo.
Seiya começou a sacudir a cabeça. Ele começou a chorar alto e pedia que o tirassem dali.
Shun e Saori o ampararam e ele saiu do quarto. Pelo jeito os outros também foram saindo, pois logo menos eu estava apenas com Saga na sala.
-Droga... Maldita Pandora.
-Pandora?
-Ikki. Você... Descanse. Feche os olhos.
Obedeci. E caí no escuro mais uma vez.
-- -- --- -- --
Acordei com uma dor de cabeça forte. Senti uma imensa vontade de vomitar e pelo jeito Saga já esperava por isso, pois tossi antes mesmo de abrir os olhos e ouvi sua voz próxima a mim:
-Se quiser vomitar, não segure. Estou a sua frente com uma vasilha pra isso.
Não consegui mesmo segurar, e abri os olhos o bastante para enxergar o rumo da vasilha. Vomitei algo quase preto algumas vezes.
-Não segure nada. Tente respirar devagar.
Ainda tossi mais algumas vezes, mas afastei a vasilha com a mão. Saga foi ao banheiro jogar aquilo fora enquanto eu olhava em volta.
Fora a dor de cabeça eu me sentia fraco. Uma série de imagens passava diante de mim de forma confusa.
Saga me tirou daquele devaneio.
-Ikki?
-Hum...
-Você... É... Como se sente?
-Estou com dor de cabeça. E me sinto fraco.
-Naturalmente... Depois de tudo...
-O que... Aconteceu alguma coisa?
Saga me olhou com um misto de pena e curiosidade.
-Qual sua última lembrança clara?
-Como é?
-Qual a última coisa de que se lembra claramente? É importante que me diga.
Não me esforcei muito.
-Ué... Eu estava aqui olhando para o relógio. A enfermeira loira me deu um soro dizendo que era para dor abdominal. E agora eu acordei com essa dor sem fim e vomitando.
Saga arregalou os olhos e cruzou os braços. Parecia ponderar algumas coisas.
-Que horas são? Você não tinha ido descansar?
-Ikki... Eu tenho algumas coisas para te dizer. E você não vai gostar de ouvi-las. Infelizmente, não há motivos para rodeios, tentar falar de maneira maquiada só irá atrasar as coisas.
Mirei Saga de maneira assustada. Um arrepio me percorreu a espinha.
-O que...
-Você foi drogado. O soro que você tomou tinha uma droga. Uma droga muito potente...
-Droga? Tentaram me matar?
-Antes... Olha, é difícil formar uma opinião sobre isso.
-Não estou te entendendo Saga.
Saga se mostrou pela primeira vez em todo o tempo que eu o conhecia preocupado com algo. Ele passou a mão na cabeça repetidas vezes.
-Ikki. Aquela enfermeira que você achou estranha... Nós temos fortes suspeitas que fosse a Pandora disfarçada.
-Como é?
-Na verdade... Há uma enfermeira na equipe do hospital com as mesmas características daquela mulher que te atendeu. Mas ela desapareceu sem dar notícia a família ou amigos desde aquele dia...
-Do jeito que você fala é como se tivesse passado muito tempo.
-Na verdade... Hoje completam cinco dias desde que tudo aconteceu.
-Cinco dias? Eu estive cinco dias apagado?
-Sim. Você... Vai precisar ser forte.
Eu nunca imaginei que ouviria Saga falando daquele jeito comigo.
-O que aconteceu?
-Por enquanto temos parte de conjecturas e parte de fatos. As conjecturas são as seguintes...
Saga suspirou.
-Pandora sumiu com a enfermeira e se fantasiou de alguma forma para ficar parecida com ela. No começo achamos que...
-Achamos?
-Eu, Saori, Shun, Shaka... Enfim, achamos que ela poderia ter se fantasiado para poder te ver... Já que havia guarda constante ao seu redor. A questão é por que ela teria todo esse trabalho apenas para te ver.
-Oras... Ela disse, não lembra? Ela queria saber como eu estava...
-Não se iluda com isso, já conversamos. Pandora nunca nutriu nenhum sentimento por você que não o de conveniência.
-Ela se arriscou para vir me ver. Quem mais fez isso?
Saga me encarou de súbito com uma expressão colérica.
-Realmente. Ela veio te ver, para saber se você daria com a língua nos dentes sobre o crime que foi cúmplice. Ela veio foi para matar você, seu idiota.
Arregalei os olhos, incrédulo com a mudança abrupta no tom e na personalidade de Saga.
-E sabe o que foi mais curioso? Dentro das nossas suposições, repassamos nossos passos nos últimos instantes em sua companhia. Shun disse que vocês deram um passeio a tarde, e a enfermeira loira esteve com vocês.
-Sim, mas...
-Escute. Ela dormia enquanto você contou a Shun detalhes das suas experiências, correto?
-Foi. Mas eu...
-E coincidentemente, a noite a enfermeira loira cuidou de você. Então, nós encontramos você em uma situação tenebrosa. E descobrimos uma droga super potente circulando no seu corpo. Uma droga que faria qualquer um obedecer a qualquer comando sem reter memória ou consciência alguma depois que o efeito acabasse.
Saga me encarava com raiva no olhar.
-Isso... Pandora não...
A porta se abriu antes da réplica de Saga. Saori pareceu surpresa ao me encontrar acordado.
-Ikki. Que alívio, está acordado. Como...
-Saori. Agora não é hora. Estou tendo uma conversa com Ikki.
Ela pareceu confusa por um instante.
-Saga? Mas...
-Já conversamos sobre isso.
Não entendi por que ela pareceu tensa. Sem pressa ela atravessou o quarto e se aproximou da janela.
-Desculpe. Podem continuar.
Saga aguardou até que ela nos desse as costas e me encarou uma vez mais.
-Pandora te drogou. Na Colômbia alguns criminosos fazem uso de uma droga conhecida por “droga zumbi” ou Burundanga, que deixa a pessoa drogada suscetível a qualquer ordem dada. Por ser matéria prima de um remédio abdominal comum, ela deve ter achado que seria muito mais fácil alegar um erro na dosagem da sua medicação e ainda poderia deixar a culpa cair nas costas do hospital do que te forçar a ingerir algo suspeito. Quando você alegou dor na barriga, pelo que contou ela insistiu em te medicar. Os efeitos da Burundanga mais conhecidos são pela via oral. Mas ela foi além... E aplicou a droga via intravenosa. Consegue imaginar o resultado disso?
Uma tensão estranha me tomou da cabeça aos pés. Cheguei a tremer um pouco.
-Eu fiquei vulnerável as vontades dela?
-Exato. E sinto dizer que ela te forçou a fazer algo que... Mesmo sabendo que você jamais faria isso de forma consciente, a forma como ela conduziu tudo foi realmente fantástica.
-Saga, não estou gostando dessa conversa. O que foi que...
-Você matou Shina.
Saori sufocou um soluço involuntário, os olhos marejando automaticamente. Ela me deu as costas. Encarei Saga, esperando que ele continuasse e falasse que aquilo era uma mentira.
-Nunca. Eu não... Não sou um assassino. Não faria nenhum mal a Shina, eu...
-Você matou a Shina. Pandora fez você fazer isso. Mas não bastasse essa... Covardia, esse ato doentio... Ela armou para que você acabasse preso. E claro que ela deveria ter alguém para terminar com você na prisão. Não consigo imaginar outro motivo para tanto trabalho.
Meu cérebro parecia estar derretendo. Minha cabeça doía intensamente e algumas imagens passavam rapidamente diante de mim. Imagens mórbidas, surreais... Só podia ser um pesadelo.
-Não... A Shina não... Isso não é... Não...
Lembro como as lágrimas queimaram minha vista. Eu não era um assassino, eu jamais machucaria uma amiga. Shina era querida, do nosso jeito nós nos dávamos bem, ela era tão cabeça dura e esquentada quanto eu. Sabíamos nos entender.
Eu nunca seria responsável pela morte dela.
-Saga, diga que isso...
Mas Saga estava sendo qualquer coisa menos piedoso naquele instante.
-Ela transmitiu a cena ao vivo na internet. O vídeo do assassinato viralizou. Por mais que tenhamos pedido a retirada de tal conteúdo da web, sabe que isso é muito difícil de acontecer. No enterro da Shina uma multidão se colocou a porta do cemitério berrando por justiça. Todas as categorias possíveis que conseguir imaginar estão te atacando.
Levei às mãos a cabeça.
-Não... Não pode ser...
Tentei me levantar, cambaleando. Nem Saori nem Saga tentaram me deter.
-Não... Shina morreu e nem pude ir ao enterro. Não pude me despedir. Não acredito, eu não sou culpado disso, como...
-Fiz uma nota a imprensa esclarecendo em nome do hospital que o ocorrido fora um grave incidente, uma armação contra a sua pessoa por forma de vingança. Não tive provas para acusar formalmente a Pandora, mas as investigações finais precisam provar que ela é culpada. Não a toa ela desapareceu do mapa nos últimos dias. As imagens das câmeras de segurança estão ao seu lado, sendo analisadas pela equipe científica da polícia. Shaka está fazendo de tudo para que sua inocência seja provada, assim como eu e Saori.
-Mas... Se eu matei mesmo a Shina...
-Você foi forçado a fazê-lo. Agora, eu sentaria se fosse você, pois essa ainda não é a pior parte para.
Incrédulo, mirei Saga.
-Você me fala que eu matei uma amiga e essa ainda...
-Seiya descobriu tudo.
Pisquei algumas vezes. O mundo pareceu parar naquele instante.
-Como é?
-Você ainda estava sobre efeito da droga e enquanto a polícia e Shaka colhiam seu depoimento, Seiya perguntou... Algumas coisas. Você se declarou. Ele sabe de tudo. Todo mundo sabe.
Acreditem quando eu digo: de todas as coisas ruins que eu já vivera - e vocês souberam das piores – aquela fora a que mais me machucou. Lembro que acabei caindo sentado, meu corpo todo tremia. Tanto cuidado para não revelar nada e não deixar nenhum rastro para que ao menos eu pudesse mantê-lo próximo, ainda que nunca tivesse a chance de tocá-lo...
Não valeu de nada no final.
-Seiya... Todos sabem...
Saga se ajoelhou diante de mim e segurou minhas mãos de maneira gentil.
-Ikki, olhe para mim. Calma. Nem tudo está perdido, nós iremos te inocentar. Será provado em breve, os exames comprovarão que você estava fora de si, segundo Frei a própria justiça não te considera culpado. O depoimento de um policial como ele já irá pesar muito a seu favor e...
-Eu não ligo pra isso Saga. Nada disso. O problema não é esse. Eu... Eu perdi toda a esperança então. É o fim...
As lágrimas mais doloridas que já senti escorrerem pelo meu rosto foram as daquele momento. Eu me senti sem chão, sem pouso, sem ar, sem nada.
Se eu disser que naquele momento o que pesava era a responsabilidade de uma morte eu estarei mentindo. Naquela hora apenas Seiya me importava. Enquanto eu estava ocultando meus sentimentos, eu o tinha por perto. Eu poderia olhá-lo. Contentar-me com um toque, um abraço, uma amizade simples mas acessível.
Mas agora, com tudo as claras eu não conseguia imaginar um futuro em que ele quisesse fazer parte da minha vida. Eu não conseguiria olhar para alguém que tivesse matado uma amiga e ainda dissesse que me amava, independente das condições apresentadas. E eu me considerava muito mais forte do que ele em alguns aspectos, portanto já tinha tudo traçado na cabeça assim que Saga me contou o que ocorrera.
Era o fim.
-Ikki, acalme-se. Nem tudo é tão ruim quanto parece.
Um ódio inumano começou a percorrer meu corpo no lugar da tristeza e da dor. Afastei as mãos de Saga com um empurrão forte.
-Não é ruim? O segredo que lutei de todas as formas que sabia para manter foi revelado e você vem me dizer que isso não é ruim?
-Se você se acalmar e me escutar...
-Não. Eu não vou fazer isso. Você me deu esperança Saga. Eu não queria, você me prometeu...
Saori se aproximou, se ajoelhando ao meu lado e pousando uma mão no meu ombro.
-Ikki, olhe para mim.
Os olhos castanhos dela pareciam um poço de compreensão e doçura. Era como se ela estivesse envolvida por uma aura angelical, foi um momento estranho.
-Saga diz a verdade. Há esperança, mas para te contar o que está acontecendo, preciso que nos ouça. Seiya não vai sair da sua vida, isso eu posso garantir.
Eu tremia de ódio do Saga ainda, mas aquelas palavras diminuíram a intensidade da avalanche de emoções que se misturavam no meu interior. Os dois me levaram de volta a cama.
-Muito bem. Agora nos ouça, o que faremos a seguir será...
Ela foi interrompida por algumas batidas na porta. Irritado, Saga falou alto para que entrassem. Qual não foi a surpresa de todos ao vermos Shaka adentrar ao recinto na companhia de Frei.
-Shaka? Frei? O que fazem aqui?
Frei pareceu incomodado com algo. Ele foi polido, coisa que mesmo tendo nos encontrado poucas vezes me pareceu estranho. Eu o achava simpático até.
-Não esperava vê-lo aqui Dr. Saga.
-Ikki é meu paciente e hoje que recobrou os sentidos. Claro que eu estaria por aqui, estou monitorando tudo de perto desde o incidente com Pandora. Aliás, diga-me que veio aqui nos informar que a encontraram e ela já está presa.
Frei olhou para Shaka, visivelmente constrangido. O advogado mirou Saga com certo desprezo. Retirou um papel do bolso do paletó escuro que usava e entregou a Saori.
-Senhorita, por favor. Leia isso.
Saori exibia uma expressão confusa. Ela pegou o papel e mudou de cor subitamente, ficando pálida.
-Isso não pode ser verdade.
-Mas é.
Saga ergueu uma sobrancelha.
-O que está havendo? O que é isso?
Shaka anunciou com desprezo e deboche na voz:
-Isso é um mandato de prisão para Ikki. Estávamos apenas aguardando que ele acordasse. E se observar atentamente o documento, verá que essa é a única exigência desta petição.
-Impossível!
Saga pegou o documento das mãos de Saori. Ele correu os olhos, incrédulo com aquilo.
-Como... Não me diga que a polícia ouviu aqueles desocupados que insistem em acusar o Ikki. Isso só pode ser uma brincadeira de mau gosto.
-Não creio que eu ou Frei tenhamos tempo para perder com brincadeiras de gosto duvidoso. Já não posso dizer o mesmo de você, não é? Termine de ler o documento para ver o pedido do juiz.
Frei se aproximou, me olhando com certa piedade.
-Sinto muito, mas se estiver em condições de andar e estiver pleno de suas faculdades mentais... Terei que levá-lo em custódia.
O silêncio tomou conta do ambiente.
-Não podem fazer isso! Como sequer poderiam saber que Ikki acordou há pouco?
Frei se virou para Saga exibindo certa hesitação e disse em tom formal:
-Shaka deixou a equipe de alerta para avisá-lo sobre qualquer movimentação que indicasse o despertar de Ikki. Dr. Saga, após a divulgação do vídeo na internet, foram feitas inúmeras ligações a delegacia da cidade. Muitos civis pediram que o assassino fosse detido.
-Mas Frei, está mais do que claro que ele foi drogado. Eu tenho os resultados dos exames que comprovam isso.
-Você tem os resultados, e eu os manteria a mão se fosse você. Mas a justiça não os tem e precisa deles para poder permitir a liberdade de Ikki. Mas mesmo que eu não o levasse preso por conta do episódio recente em que ele foi envolvido, eu teria que levá-lo por conta do seu envolvimento no caso dos manequins.
Saga ficou lívido.
-Mas Ikki não tem nada a ver com isso.
Frei baixou os olhos, exibindo um misto de confusão e pena.
-Recebemos uma gravação em que ele confessa a você o envolvimento no caso, e confessa de forma inquestionável.
Shaka interviu, exibindo um sorriso tranquilo e ligeiramente arrogante.
-Mas isso poderia ser contestado, não policial? Afinal, se Ikki confessou a Saga algo relacionado a essa situação como você diz, seria necessário que o próprio Saga fosse depor contra Ikki. E ele jamais faria algo assim, não é verdade?
Frei parecia mais confuso ainda.
-A gravação é de Saga e Ikki.
Todos olhavam para Saga. Shaka parecia incrivelmente satisfeito com algo.
-Mas isso seria uma atitude realmente absurda. Mesmo sabendo que Saga discorda abertamente do posicionamento da Srta. Kido em relação ao sócio e já quis agir de forma diferente em uma situação anterior, isso seria totalmente fora do padrão ético da profissão.
Frei se virou para Shaka.
-O que quer dizer?
-Eu conversei com ambos e sei que as posições deles são opostas. Saga queria que Ikki fosse de imediato prestar depoimento quando soube do caso dos manequins, mas Saori exigiu que ele cumprisse o protocolo de sigilo médico-paciente. Ela quis aguardar para avaliar o caso e ver como poderia ajudar a inocentar Ikki, mas Saga apenas concordou, ou fingiu concordar por conta de uma dívida moral que possui com ela. Assim que teve a oportunidade, ele resolveu agir por conta e agora... Virou-se contra o próprio paciente que prometeu cuidar com todo empenho. Minha pergunta é apenas uma: por que isso?
Saga parecia um fantasma. Frei declarou de maneira séria:
-Isso é muito estranho. Mas estou aqui para cumprir ordens, portanto...
-Mas... Impossível, além do que, é claro que alguém teria que pedir a prisão de Ikki. Isso está...
-Mas a prisão foi pedida, Dr. Saga. E foi dito ao juiz que com certa urgência, pois Ikki representa um perigo a sociedade. Isso que não entendo. Por que o próprio psiquiatra dele faria isso.
Todos se viraram para Saga, exibindo surpresa no olhar.
-Eu? Mas que sandice é essa?
-Dr. Saga, não sei o que pretende com essa encenação. Mas está mais do que claro e todos na delegacia podem testemunhar que há três noites o senhor se dirigiu a delegacia e prestou depoimento após solicitar a prisão do senhor Ikki. Além de ressaltar dos perigos que ele pode provocar, alegou que o vídeo não foi feito com ele sob efeito de nenhum remédio e muito menos inconsciente. E ainda entregou a gravação aonde ele confessa que foi testemunha e cúmplice do assassinato de um homem. Não venha me dizer que não se lembra disso, pois eu estava lá.
-Isso é impossível. Eu estava aqui no hospital. Todo o corpo clínico pode provar. E se quiserem, recorram mais uma vez as câmeras de segurança.
Frei pareceu desconfortável. Trocou o peso do corpo de uma perna a outra e mirou Shaka, confuso.
-A não ser que fosse um clone então, quem mais faria isso? Eu acompanhei todo o depoimento e você sequer me cumprimentou. Sua assinatura consta na petição, você fez isso.
Saga perdeu a cor e bambeou por um instante.
-Não pode ser. Ele não faria isso. Não iria tão longe a troco de nada...
-Saga, o que...
Saori o amparou antes que ele caísse próximo a parede. Saga estava em estado de choque.
-Meu irmão. Frei, eu tenho um irmão gêmeo.
O policial arregalou os olhos.
-Gêmeo? Mas isso... Não é possível. Dr. Shaka?
Shaka parecia tão surpreso quanto os outros.
-Irmão gêmeo?
-Kanon, meu irmão gêmeo é vice-presidente das empresas Solo. Eu descobri que ele estava envolvido em alguns negócios com Pandora recentemente, mas isso... Céus...
Todos entraram em uma espiral de surpresa e questionamentos, mas a mim nada daquilo interessava. Mesmo que aquilo fosse possível, como...?
Então eu me lembrei: no dia em que contei tudo a Saga, foi o dia em que ele foi trocar a camisa. Kanon deve ter se passado por ele naquele momento em que eu disse tudo e ele me pediu que falasse de forma que eu confessasse tudo.
Céus, como eu me senti idiota. Estava meio anestesiado quando Frei se aproximou sem graça.
-Desculpe mesmo por isso, mas até que provemos que foi uma armação, precisamos cumprir o mandato da justiça. Por favor, se vista e me acompanhe. Eu realmente não desejo ter que algemá-lo.
Eu nunca desejei tanto a morte quanto naquele momento.
Acho que foi a partir dali mesmo que tudo começou.
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