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História Evanescente - Dois


Escrita por: ACeridwen

Capítulo 2 - Dois


Quando saio de casa as bandeiras me saldam dos telhados cobertos de branco, azuis como o céu, representando nossa Casta. Meu pé afunda na neve macia e uma bola de neve acerta meu rosto. Duas crianças brincam no meio da rua, felizes, sobre a estrada de paralelepípedos coberta pelo lençol do Inverno.

As crianças estão mudando. Na minha infância o Cisma era assustador. Ele visitava meus sonhos sempre, e era como se eu estivesse lá. Um impuro correndo por sua vida.

Me lembro da vez em que um Olhos-Negros usou uma de suas máquinas, fazendo uma garotinha impura ser devorada por formigas vermelhas. Ela teve o corpo desmembrado por milhares de pinças pontiagudas, antes de ser levada para dentro do formigueiro como um pedaço de carne desprezível. A pobre coitada só morreu depois que elas entraram em seus olhos. Houve tanto sangue. Tanta gritaria. Eu fiquei uma semana sem dormir.

Fecho a porta e uma avalanche de neve cai em cima de mim, diretamente do telhado, onde a bandeira da minha família trêmula com o vento.

A neve se infiltra por minha roupa. Alcançando lugares onde neve nunca deveria chegar. Eu estremeço e xingo um palavrão. Me debato como um cachorro molhado e as crianças riem de mim. Eu sorrio de volta.

Crianças. Mesmo em meio a tanto frio, físico e metafórico, elas ainda conseguem sorrir.

Imagino o que o mundo seria sem crianças.

Meus pés se movem com rapidez pela calçada. As marcas do desfile já começaram a desaparecer debaixo dos novos flocos que caem do céu. As listras dos enormes tanques com rodas como lagartas de ferro gigantes, os cascos dos cavalos da guarda real, as botas com pinos dos soldados Olhos-Cinzas.

Todos os anos eles saem da Segunda Muralha e marcham em direção a Primeira para comemorar o Cisma, e lembrar ao povo de Einar que fazem 216 anos que nos recuperamos da Queda.

Ouço barulhos de choro. Soluços. Gemidos. E esse é o pouco que indica sinal de vida. Janelas fechadas, portas trancadas. Sons de dor das famílias que tiveram seus filhos etiquetados como impuros.

As lojas e academias estão fechadas. As academias se espalham por todas as calçadas. O forte da nossa Casta. O ponto de partida de todos os Olhos-Azuis.

Minha mão toca o frio gélido da maçaneta da porta do gabinete do Inspetor Copérnico. Eu entro quase que com desespero para dentro da sala com aquecedor.

Nossa Casta não é pobre. Nós temos aquecedores na maioria das casas. Temos ruas pavimentadas. Energia elétrica. Água encanada. Animais de estimação. Na maior parte do tempo.

Existem pessoas que estão em piores condições. Pessoas que caçam gatos para comer.

— Senhor Parker. Quanto tempo, filho — o Inspetor Copérnico me salda de detrás de sua mesa entulhada de papéis grampeados. A barriga grande de cerveja dobrada contra as bordas de mogno, com os botões da camisa esticados, prontos para disparar. — Entre, vamos. Tome uma bebida.

Eu não me movo. Há um pouco de aversão em relação a esse homem. Não que ele seja ruim. Não que eu o odeie. Na verdade é impossível odiar pessoas que passaram pelo que ele passou. Pessoas como meu pai e grande parte dos bêbados da Segunda Muralha. Mas pelo que ele já fez.

— Desculpe, Inspetor — digo, tentando evitar a voz seca. — Eu não bebo. E também não posso ficar muito tempo. O Senhor sabe. As Efemérides.

— Sim, sim — ele enche um copo em sua mão com o líquido azul claro da garrafa de cristal. Derramando boa parte sobre os papéis. — Uma lástima, de fato. Uma grande lástima. Considero o senhor um menino tão bom. Saudável. Por isso deixei que namorasse minha filha. 

Sinto um certo aperto no coração. Não algo ruim. Mas os grandes olhos cor do céu da primavera do Inspetor me lembram ela.

— A energia, Inspetor. A energia elétrica da minha casa caiu.

— Ah, sim. Muitos televisores e rádios ligados. Todas os anos são assim. Se você passou por todas as Efemérides sem ficar sem energia elétrica em nenhuma, nunca viveu realmente. É o que dizem. Eu vou ver o que posso fazer.

Aparentemente tudo o que pode fazer é entornar a bebida azul em sua garganta.

— Se o senhor disser como. Eu mesmo posso...

— É questão de ligações. Contatos. Coisas nas usinas elétricas. Etcetera — o Inspetor me corta. — Acho uma pena que você esteja com pressa. Minha filha ficaria feliz em te ver.

Arregalo os olhos.

— Ela está aqui?

O Inspetor ri pelo nariz com um som estranho, como desgosto.

— Crianças... o que o mundo seria sem vocês?

Outro copo vai enchendo-se rapidamente. O azul da bebida reflete piamente nas curvas do copo de cristal.

— Eu não entendi.

— Você concorda com esse sistema, senhor Parker?

Enxergo a armadilha, mas me acho esperto de mais para cair nela tão facilmente.

— Não acredito que seja questão de concordar ou não. As coisas são assim. É a ordem natural.

— De fato — o Inspetor acena na direção de uma porta na lateral destraidamente. Brincando com a bebida dentro do copo. — Biblioteca.


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