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História Evanescente - Cinco


Escrita por: ACeridwen

Capítulo 5 - Cinco


O dirigível plana suavemente, com a lentidão de quem tem o poder de dobrar o ar.

"O colar da rainha" foi o que o Olhos-Cinza disse. O colar da rainha. O que Effy deu para minha irmã.

A cabine onde estou é a designada à transferência de presidiários. Paredes grossas do que parece ser metal sólido e escuro como ônix.

Estou algemado e preso ao assento. O chão abaixo dos meus pés é feito de algum material transparente resistente. Eu consigo ver os campos que costumam ter a cor verde limão durante a Primavera, agora com o brilho branco perolado da neve.

As pequenas casinhas das famílias de lenhadores Olhos-Castanhos surgem aleatoriamente lá embaixo, minúsculas sob a sombra do dirigível, cuspindo nuvens gordas de fumaça de suas chaminés. As bandeiras cor de chocolate, que mais se parecem com trapos sujos, balançando a favor do pouco vento em seus telhados.

"Ela te traiu" digo a mim mesmo. "Effy te usou para atingir Topoline. Ela te usou."

Mas tento encontrar um motivo. Sei que há um. Effy jamais faria algo contra mim. Ou contra minha família. O Cisma não teria mudado sua mente tanto assim.

"Foi um engano."

Um som repulsivo me tira de meus devaneios. É uma risada de desgosto. Vem de um Olhos-Verdes. Ele também está algemado. Mas no assento da outra parede. Há alguns metros há minha frente.

Ele parece eufórico.

— Como consegue rir na situação em que estamos? — As palavras se formam em minha mente. Mas elas saem da boca de um Olhos-Castanhos de ombros largos e da pele escura como o metal de que as paredes são feitas. — Vamos morrer. Acha graça disso?

O Olhos-Verdes revira as iris dramaticamente em suas órbitas. Não sei bem porque, mas sinto uma vontade enorme de acertar meu punho em sua cara por isso.

— Casta inferior... — é sua respostas. Palavras seguidas de um longo suspiro falso. O tipo de suspiro que vemos em programas de TV, ou teatros. Não que hajam muitos onde eu moro, ou morava.

Olhos-Verdes são atores, modelos e nada mais. Me surpreende muito ver um deles aqui. A maioria se acha demais para fazer qualquer coisa relevante. São triviais. Passivos. Exceto claro, os seus quatro campeões. 

— Nossas Castas são diferentes até a Purificação começar — o Olhos-Castanhos diz com a voz assombrosamente fria. — Depois estaremos todos do mesmo lado. O lado que morre.

O dirigível balança levemente, pegando uma corrente de ar mais forte. Lá embaixo o Rio Tereza reflete nossa grande forma oval, enquanto briga contra o congelamento. Um gigante lutando contra algo maior que ele.

O Rio Tereza é um anel de água que envolve toda a Primeira Muralha, separando-a dos que estão dentro da Segunda. E também é onde os Olhos-Negros geram nossa energia.

Enquanto observo passamos por cima dos enormes muros de concreto da represa.

— Eu não vou morrer — o Olhos-Verdes diz, sua voz demora algum tempo para chegar até aqui. E ainda assim é baixa. Com medo. — Droga. Porcaria. O que estou fazendo aqui?

— O mesmo que todos nós — o homem de pele negra devolve. — Pagando por seus crimes.

"Menos eu" penso. "Eu sou inocente"

— Eu sou inocente — ele diz. Como se estivesse prevendo minhas palavras. 

É um homem jovem. Um pouco mais velho que eu. Carrega um par de mirantes cor de esmeraldas brilhantes e roupas lustrosas da moda, onde a cor verde limão é a predominante.

— Eu também sou — o Olhos-Castanhos sorri. Deixando à vista enormes dentes brancos esmaltados. — Coloquei fogo em minha casa enquanto minha família dormia. Morreram todos. Minhas filhas. Minha mulher. Minha mãe. Mas eu sou inocente. Todos somos.

Seu sorriso se transforma em uma gargalhada, que se perde sozinha na loucura. Ofuscada apenas pelo chiado da represa lá embaixo.

Estamos apenas nós três e mais um homem. Não sei de qual Casta é. Ele parece estar dormindo, com a cabeça baixa, uma franja negra oleosa caindo sobre o rosto. "Como consegue?". Pelas cores de suas roupas e a palidez de sua pele, diria que é um Olhos-Violeta. O que eu duvido muito.

Olhos-Violeta são pacifistas. Sequer tem campeões no Cisma.

Ficamos todos mergulhados em meio ao silêncio relativo. Pairando no meio do som dos motores e do Rio Tereza.

— Eu atropelei uma criança — o Olhos-Verdes revela por fim. — Não foi propositalmente. Eu juro.
Mas ninguém diz nada. Passamos por cima da Primeira Muralha. Sua extensão tão larga quanto as ruas lá de Tesla, o  lugar onde eu morava. E de onde minha família deve está sofrendo agora.

"O que aconteceu aqui?" me pergunto. Estávamos todos bem. Nos preparando para mais um Cisma que passaríamos intactos.

A imagem de meu pai sendo jogado no chão, Line com o rosto ferido pelo golpe do Olhos-Cinzentos, e o punho de um soldado acertando onde meu olho está roxo e inchado, vem à minha mente. E quanto mais penso, mais certeza tenho de que Effy não faria isso.

O dirigível pousa. Pelo chão de vidro consigo ver o solo plano pavimentado. Uma porta se abre e mais Olhos-Cinzas entram.

Retiram primeiro o de franja, o possível Olhos-Violeta. Ele segue com a cabeça baixa. Sua túnica manchada pelo que parece ser sangue seco.

O homem negro é levado sem qualquer problema. Ele não reage, apesar de ter músculos tão sólidos quanto as armaduras dos soldados.

O Olhos-Verdes se debate.

— Eu sou inocente — ele berra. Antes de ser silenciado com por golpe.

Dois soldados imensos me libertam, teoricamente, na verdade continuo preso, e me arrastam até uma plataforma com os outros detentos.

Fecho os olhos quando começamos a descer e quando abro já estamos do lado de fora. Sobre uma espécie de elevador. O vento úmido se choca contra meu rosto. O ar gelado entra em meus pulmões sem aviso prévio. É quase demais pensar que estou na Primeira Muralha.

Não tenho tempo para apreciar a vista, exceto os muitos dirigíveis negros que marcam o horizonte a nossa frente. Sou empurrado e meu corpo acerta o garoto magricela, pálido, de franjas e, olha só, Olhos-Violeta.

Ficamos menos de um segundo juntos, tempo suficiente para trocarmos um olhar que me parece ser muito significativo. Quase posso ver as palavras ocultas atrás dos mirantes cor de uva:

"Fique perto"

Ou talvez eu esteja ficando louco e seja na verdade:

"Morra antes de mim"


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