História Evanescente - Parte II - Através das Janelas

Não haveria outra noite de sono para ela.

Naquele dia a Princesa sem Coroa acordou cedo, quando a luz da alvorada ainda estava contida pelas enormes cortinas escuras de seu quarto.

Ela sempre levantava cedo, antes das outras damas, antes dos soldados e antes da Princesa de verdade, a que usava coroa. Acordava com os primeiros raios de sol e vestia-se sozinha, sem a ajuda das vinte criadas Olhos-Castanhos que lhe foram designadas desde seus oito anos de idade.

Eles apreenderam a se acostumar com isso, uma das damas da princesa que não havia sido completamente polida.

Ela havia nascido uma pedra rústica e sem cor; filha de dois Olhos-Azuis de Devoir, a capital do Reino de Einar; mas a corte a lapidou, a limpou e a banhou nas águas da delicadeza e da soberba. Foi transformada em uma jóia azul perfeita, a mais fina entre as damas, abaixo apenas da Princesa e da Rainha.

Mas não conseguiram tirar dela o amor pela manhã, a atração que sentia pela alvorada.

Ela colocou um vestido leve e sandálias. E saiu nas pontas dos pés do quarto, para não acordar as outras damas. Os pelos castanhos de sua nuca se arrepiaram, correspondendo ao sussurro do primeiro sopro frio do Inverno.

Os flocos começariam a cair em poucas horas, os criados parariam de trazer sorvete a tarde, os vestidos finos se tornariam roupas quentes e as pessoas mudariam.

Elas sempre mudavam.

Era a maldição do Inverno. O sopro do vento não trazia apenas o frio, trazia também uma grande agitação. Porque agora restavam apenas mais quatro dias para o início do Cisma.

Não que ela soubesse o que era o Cisma para o resto do mundo. Ela vivia entre as paredes do palácio, e alí todos recebiam a matança de braços abertos e sorrisinhos. Mas qualquer um poderia ver, os criados e as criadas Olhos-Castanhos que vinham de fora da Primeira Muralha não compartilhavam da mesma alegria radiante.

Ela só não sabia porque. O Cisma era a execução de bandidos, assassinos, terroristas, pessoas que mereciam morrer. Não havia sentido em se entristece pela morte da escória. Era bom. Era ótimo!

Passou a passos ligeiros por um corredor repleto de janelas gigantes, onde criados começavam a abrir as cortinas vermelhas, e observou ao longe, pelo vidro, a cidade que parecia minúscula em comparação ao palácio. Os prédios e as casas brilhando como cristais sobre os raios de sol esbranquiçados, e sua amiga sorriu para ela "Oi", com uma cortesia que apenas a alvorada conseguia irradiar.

E a garota se lembrou da primeira vez em que conversou com a manhã. A primeira vez que também conversou com a Princesa.

Lembrou de seus pés de criança correndo pelo chão, e de dois homens com os olhos cor de pedra correndo atrás dela para pegá-la.

“Vocês não vão me pegar. Eu sou uma Olhos-Azul. Uma corredora.”

E então viu a forma não muito maior que a sua, com a pele pálida brilhando tanto que parecia ser feita de diamantes, observado indiferente o mundo através da janela.

“Não se aproxime”

Os guardas que a rodeavam lhe disseram. Rudes. Ela era pequena, mas não era nada além do que a filha de dois Olhos-Azuis mais ou menos ricos que conseguiram por sorte o privilégio de cuidar da saúde física da Rainha e do Rei.

Nada mais que a filha de criados.

“Deixem” a pequena princesa de diamante havia dito. Sua voz um tilintar suave e frio, um raio de sol da manhã.

E ela se aproximou. Não houveram mais palavras. Exceto a da alvorada, que subia por detrás da Primeira Muralha. Lá, onde os assassinos moravam. O primeiro de muitos “Ois”

E o silêncio foi se alongando, a esfera de fogo branca tomando seu lugar no céu, o calor radiante marcando o início da amizades entre as duas princesas. Uma delas com coroa e a outra sem. Uma Olhos-Azuis, outra Olhos-Dourados