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História Entre Sem Bater - Capítulo 09 - Mesmo quando bate a revolta?


Escrita por: andreiakennen

Capítulo 9 - Capítulo 09 - Mesmo quando bate a revolta?


Entre Sem Bater

Por Andréia Kennen

Capítulo 09

Mesmo quando bate a revolta?

 

Eu nunca tinha sentido tanto medo na minha vida.

Estava escuro, eu estava com frio e... sozinho.

Senti quando uma mão deslizou pelo meu braço e, em um gesto de repulsa, eu o recolhi, o que despertou a raiva do agressor que o agarrou de volta e com força.

— Além de bicha, é fresco, é? — o cara gritou no pé do meu ouvido e na sequência recebi uma bofetada na cara.

— M- me d- deixem em paz — pedi em um tom gaguejante, sentindo que as lágrimas queriam vir, o que me deixou com mais raiva de mim mesmo, por estar com tanto medo a ponto de querer chorar e não ter controle sobre aquele sentimento que me fazia tremer dos pés a cabeça.

Não era apenas medo de apanhar e ser violentado, mas de ser morto.

Eram tantas notícias trágicas relatadas pelas mídias de situações parecidas, caras que atacavam homossexuais, faziam o que bem entendiam e no fim matavam, por pura maldade.

Eu era homem também, não deveria ser subjugado facilmente, mas mesmo sendo homem, eu sou um ser humano como qualquer outro e tenho medo de morrer sim.

Não conseguia entender como a minha noite de amor perfeita estava terminando daquele jeito. Eu tudo que eu mais queria saber onde estava o Thiago.

— Tá chorando, é, meu irmão? Não é homem, não, seu merda?

Fui puxado pelos cabelos e quando a mão que apertava meu braço se soltou eu agi por impulso e tentei correr; escapar.

Corri sem rumo em meio ao escuro, acabei tropeçando em outro cara, que me agarrou com força. Na sequência fui derrubado por ele e todos os outros se movimentaram para me imobilizar. Senti meus braços e pernas serem segurados. A sensação era de terror. Senti o peso de um deles sentando-se sobre meu ventre e comecei a gritar.

— Parem com isso, merda! Parem! Não façam isso, por favor! — pedia aos gritos, e após juntar o máximo de ar nos pulmões, vocalizei com toda força um pedido de ajuda. — Socorroooo!

Levei um soco perto do olho esquerdo por fazer isso e, para que eu me calasse de vez, duas mãos abafaram minha boca.

O golpe me deixou tonto. 

— Cale a boca, véi, ou o bagulho vai ficar cabuloso pro seu lado.

Era o fim.

Comecei a hiperventilar, tremer e a chorar.

Não conseguia evitar o pânico. O tremor e o choro faziam meu corpo convulsionar. Eu estava perdido. Seria estuprado e morto, mesmo tendo uma vida inteira pela frente.

Eu pensei em lutar, revidar, mas tudo o que eu fizesse seria em vão contra todos tantos caras. Na pior das hipóteses passou pela minha cabeça que, talvez, se eu não resistisse, se fosse bonzinho, e implorasse no final, pudesse sair vivo.

— Véi, que pele macia que esse desgraçado tem, hein?

— Verdade, cara! Macia pra caralho — o outro que segurava meus braços confirmou, ao passear um das mãos sobre meu peito. — A pele dele e toda peladinha, ele se depila com certeza, não tem pêlos em nada. Nem aqui embaixo, olha só, que delícia — disse ele confirmando ao tocar no meu pênis e escorrer a mão para baixo, dedilhando minha entrada. — Até o buraquinho é peladinho e lisinho, lisinho, véi. Esse desgraçado tava fodendo mesmo, ainda tá meladinho aqui embaixo.

Ouvi risos, outros repugnarem dizendo “que nojo”, mas o cara em cima de mim não dava a entender que iria recuar. Ele começava a ofegar, parecia realmente excitado.

— Ele está tremendo todo. Nossa, que delícia — disse ele, acrescentando aquele chiado nojento com a boca, começando a se esfregar em cima de mim.  — Meu pau tá ficando duro. Porra! Vou tirar para fora e colocar na boca dele.

— Vai logo, besta! Veado adora chupar rola.

— Ele deve chupar para caralho, né?

— Eu quero é terminar de arrombar o cuzinho — falou o que estava em cima, fazendo meu estômago contrair. — Vamos por ele de quatro, vai ficar mais fácil, um fode a boca dele, enquanto eu como atrás. Depois a gente reveza.

— Eu já disse que tô fora.

— Você é cagão demais, Ale-...

— Fala meu nome não, sua desgraça! — O pedido foi acompanhado de um safanão na cabeça do que estava na minha frente.

— Ele vai lá saber quem você é, ô, retardado? Existe só você de “Alexandre” no mundo?!  

— Mas não é pra falar. E eu não gosto de homem, ok? Tô fora e pronto.

— Deixa esse corno pra lá, Mauri. Vamos logo!   

— Se ficar bonzinho e não gritar — esse tal de “Mauri” falou, alisando minhas coxas, o que causou novos arrepios de repulsa. — A gente vai deixar você vivo. E aí é só esquecer o que houve aqui, tá certo?

Eu balancei a cabeça positivamente.

— Esse vadio vai é denunciar a gente para polícia.

Eu tentei balançar a cabeça em negação para contradizer o outro.

Eles riram e debocharam ainda mais. Mas era tudo que eu podia fazer, negociar e implorar pela minha vida da forma mais humilhante possível. Mesmo não tendo certeza de que eles iriam cumprir com o combinado no final. Ainda mais com aquele tal de “Alexandre” todo cheio de neuras. 

Respirei fundo, quando senti que me soltavam e o cara na minha frente pediu para eu ficar de quatro. Eu podia tentar correr naquele instante, mas o tal do Mauri teve o cuidado de continuar me segurando pelos cabelos.

Porém, assim que fiquei de quatro e senti o pênis do que queria ser chupado roçando na minha cara, houve um repentino som de pipocos que pareceram tiros. O barulho afugentou o grupo que saiu correndo aos atropelos. Aproveitei para fugir engatinhando, tentei levantar para correr, mas minhas pernas estavam tão trêmulas que não consegui ficar de pé de imediato. Tropecei e caí de cara no chão. Apenas recuperei a força quando ouvi a voz do Thiago me chamando.

— Caio, onde você está?!

— Thi, é você? Thi?! Pelo amor de Deus, me ajuda!

A minha voz estava embargada, mas senti quando os braços dele me envolveram de um jeito forte e eu desabei. O choro veio com mais vontade.

— Acalme-se, meu amor. Acalme-se — ele pediu, em um tom de voz bem baixa. — Precisamos ir. Fui pegar a moto, está ali embaixo.

— Mas e os tiros? E as minhas roupas?

— Esqueça tudo. O mais importante é dar o fora daqui agora e o mais rápido possível. Amanhã eu volto aqui e converso com o meu colega e tento achar suas coisas. Temos que ir antes que aqueles idiotas percebam que o barulho dos estouros veio da minha moto — ele me puxou pelo braço e me ajudou a ficar de pé, me abraçou pelos ombros e saímos correndo juntos.

Descemos a elevação escorregando pelo barranco de terra, o Thiago segurava minha mão firmemente.

Com o Thiago previu, os caras realmente apareceram de novo e um gritou para o outro.

— Ei, trouxas, fomos tapeados! É o outro veado!

— Peguem eles!

Alcançamos a moto. O Thiago tirou a jaqueta que estava vestindo e me entregou. Eu vesti de qualquer jeito. Assim que a coloquei, ele me entregou o capacete, mas as minhas mãos tremiam tanto que acabei deixando-o cair.

— Larga mão! — ele falou quando fiz menção de ir atrás do objeto. — Só sobe, Caio — o Thiago demandou, sentado no banco e ligando a moto.

Sentei atrás e o abracei com força. Finalmente começamos a nos movimentar e ganhar velocidade. Por estar sem capacete, ouvi perfeitamente os gritos e xingamentos dos agressores por um perímetro.  Pedras foram atiradas e senti quando algumas atingiram minhas costas, braços e cabeça. Apenas apertei mais meus braços em torno do corpo do Thiago, determinado a me manter firme.

A moto derrapava por causa da terra e da grama úmida, mas logo o Thiago conseguiu ganhar estabilidade e ultrapassamos o portão de entrada e saída do parque como se fôssemos uma bala.

Entramos direto na Afonso Pena. O Thi pilotava como um louco. Fez a conversão em uma rua pouca movimentada inclinando a moto de um jeito que quase encostamos nossos joelhos no asfalto. Saímos da avenida que beirava o córrego mais embaixo, era uma ótima rota, por ser menos agitada.

Eu senti o vento gelado da madrugada cortando a pele do meu rosto. Mas a única coisa que eu desejava era chegar em casa de uma vez, enquanto torcia para não encontrarmos com nenhuma viatura no caminho, por eu estar sem nada na parte debaixo.

Graças a Deus, não houve novos contratempos, e quando pisei os pés dentro de casa, eu agachei ao lado da porta, encostei na parede, escondi o rosto entre os braços e chorei. Chorei muito.

Meu celular, minha carteira, meus documentos, tudo havia ficado com as roupas.

— Caio...

O Thiago ascendeu a luz, agachou-se diante de mim e quando eu encarei pude perceber o quanto ele parecia transtornado.

Fui puxado para um abraço e então o ouvi se lamentar.

— Perdão. Foi tudo minha culpa. Se eu não tivesse inventado nada de anormal. Se eu tivesse apenas te levado em um motel ou algo do tipo. Desculpe-me, Caio? Perdoe-me? Você se machucou? Eles te machucaram? Chegaram a fazer alguma coisa com você? A minha vontade é de voltar lá e... Você está sangrando — ele ergueu meu rosto e passou a mão no ferimento causado por uma das pedradas.

Eu nem tinha sentido que estava sangrando.

— Estou bem. Eles não chegaram a fazer nada comigo — garanti, ainda trêmulo, esfregando os punhos fechados sobre meus olhos, tentando controlar o choro. — V- você não teve culpa, Thi. E- eu só não entendi onde você foi parar. Fiquei com tanto medo que estivesse envolvido naquilo.

— Puta que pariu, Caio! Como pode pensar algo tão sujo de mim? Como pode pensar que eu planejaria algo absurdo como aquilo?

— Eu não sei, bosta! — rebati furioso. — Eu quase fui violentado por uma meia dúzia de caras que surgiram do nada! Você queria que eu ainda tivesse capacidade de raciocinar logicamente?

O Thiago pareceu sentir o peso das minhas palavras e seus ombros pesaram.

— De certa forma eu tive culpa.

Meus olhos arregalaram e encararam o Thiago, que fitava o chão. Meu coração acelerou enquanto esperava pelo restante da resposta.   

— Aqueles caras eram milicos — a explicação veio. — Eu sabia que aquela reserva era usada pelo exército para teste de campo de novos soldados. Mas jamais imaginei que eles apareceriam. Eu estava apertado e fui procurar um lugar para descarregar e quando estava voltando ouvi a algazarra que eles faziam e a conversa alta de que haviam encontrado um cara dormindo sem roupas. Eu fiquei apavorado porque eu sabia que era você de que eles falavam. Como eu vi que eram muitos, eu tive certeza que não conseguiria lidar com todos eles. Então achei melhor ir atrás da moto e... — ele parou, massageou a nuca. Dava para notar todo o peso da culpa nos ombros dele. — Perdoe-me por ter te deixado sozinho, Caio? Cara... Eu estou me sentindo um lixo por ter deixado você passar pelo que passou. — O Thi veio ao meu encontro e me abraçou novamente. — Perdoe-me por ser um bosta, Caio. Por ser um covarde que não é forte suficiente para ter encarado e espancado aqueles babacas, filhos da puta, e defender sua honra.  

Eu fiquei um tempo parado, me permitindo apenas aproveitar o abraço aconchegante do Thiago, eu entendia que ele não podia ter feito muita coisa, apesar de ter feito, pois no fim ele voltou para me salvar. Por isso me senti um saco de lixo, por não conseguir me livrar daquela sensação angustiante de frustração.

Havia passado, estava tudo bem. Era o que eu queria falar para o Thiago, me confortar e ao mesmo tempo confortá-lo, mas eu não consegui. Fiquei em silêncio. Eu quase havia sido violentado. Só em pensar que o ato poderia ter se concretizado eu sentia meu estômago revirar.

A verdade era que eu queria ir a polícia, denunciar aqueles desgraçados, recuperar meu celular, minhas roupas, meus documentos, minha dignidade. Mas eu não podia. Como eu iria à polícia e dizer que quase fui violentado por uma dúzia de caras por estar dormindo sem roupa em uma área militar?

Era capaz de eu apanhar de novo.

É. Essa é a dura realidade dessa merda de país. Apesar de achar que o mundo lá fora está todo errado de alguma forma. Em todo lugar existem pessoas ruins, que se dizem boas e corretas, se achando deuses e julgando os que são diferentes.

De alguma forma, eu tenho um pouco de sorte de não viver em um país, por exemplo, que considera a homossexualidade crime passível de pena de morte.

Eu iria me recuperar. Não naquele exato instante, mais iria. Como me recuperei de todas as coisas ruins que aconteceram na minha vida.  

...

No dia seguinte eu não consegui ir trabalhar.

Fui ao Posto de Saúde mais próximo da minha casa e inventei para o médico que me atendeu que eu havia caído de moto. Depois de tirar Raio-X, fazer alguns exames, ele me deixou tomando soro e me liberou no começo da tarde, dizendo que não tive nenhuma sequela mais grave, mas que me daria três dias de repouso e anti-inflamatórios.

Thiago voltou até a reserva para ver se encontrava minhas coisas, obviamente ele não achou nada. Então, tive que ir fazer o Boletim de Ocorrência e repetir, desta vez para o policial, que eu tinha caído e na queda perdi meu celular e a carteira.  

O meu olho esquerdo estava inchado, a bolsa embaixo dele arroxeada, e tinha um curativo no corte do supercílio. A lateral do rosto onde eu havia levado a pedrada estava ralado e vermelho.

O policial que me atendeu ficou me encarando desconfiado enquanto redigia o Boletim. Certamente, devido a sua experiência como policial, ele não acreditou na minha desculpa de ter caído de moto. Era quase certeza que ele achava que eu tinha me envolvido em alguma briga feia e não queria falar.

Eu não estava me importando, estava emburrado. Claro que depois do que passei não estaria de bom-humor, então não estava preocupado se ele iria ou não acreditar na minha história. Meu celular não era dos mais novos, mas tinha muita informação nele. Além disso, o chip era antigo, tinha vários benefícios. Ainda por cima teria que desembolsar grana para tirar as segundas vias de todos meus documentos. Não tinha como melhorar minha expressão.

— Você ligou para ele? — ouvi o policial falando e meio que fui obrigado a olhá-lo.

— Desculpa, liguei para quem?

— Para o seu celular.

— E precisa? Hoje em dia do jeito que as coisas são...

— Vai que quem achou tem bom coração e quer devolvê-lo? Acredite, isso acontece de vez em quando.

— Ah, sim... — Eu tive que dar uma risadinha debochada. — Não com alguém azarado como eu.

Achei estranho quando vi aquele telefone ser estendido na minha direção. Encarei o aparelho e só então ergui meus olhos e notei que o policial era moreno e tinha uns lábios bonitos, daqueles bem carnudos.

— Tente — ele meio que ordenou, diante da minha expressão de desentendimento. — Vamos, rapaz. Não custa.

— Deve ter descarregado.

— Estou falando pra tentar.

Suspirei fundo e apanhei o aparelho. Parecia ser o celular particular dele, pois tinha a foto de uma criança pequena como papel de parede, provavelmente era o filho. Era bem branquinho, isso me fez pensar que a mãe deveria ser loira. Pelo menos rege a lenda que loiras se sentem atraídas por homens negros e vice-versa.

Fiz uma tentativa e, como eu imaginava, caiu na caixa de mensagem.

Devolvi.

— Caixa de mensagem.

Ele pegou o celular de volta e guardou no bolso.

— Pelo menos você tentou.

— Só para confirmar que eu estava certo. Não existem pessoas boas nesse nosso país.

— Não desacredite nas pessoas, rapaz — ele sorriu, e foi impossível não ser hipnotizado por aqueles dentes brancos e reluzentes. Em seguida o policial apanhou o boletim na impressora e me entregou. — Assine em cima do seu nome e eu vou levar para pegar assinatura do delegado.

— Tá — assenti, e depois de assinar estendi o papel para ele, não sei o porquê eu dei um sorriso besta, daqueles que você não quer dá, mas a sensação simplesmente o obriga.

Ele se levantou e aproveitei para olhar o nome bordado na farda: “Sérgio”.

— Viu, pelo menos ganhei um sorriso — ele piscou um dos olhos e saiu.

Eu deveria estar louco, mas tive a impressão que estava sendo cantado. O que definitivamente me irritou, pois o policial era casado e tinha uma criança pequena.

Caramba!

Aquilo me fez pensar que eram tipos enrustidos como ele é que eram capazes de atrocidades como as dos idiotas do parque. Caras que, por reprimirem seus desejos e acharem que a culpa era daqueles que se assumiam, descontavam suas frustrações em gays inocentes como eu.

Não demorou e o Sérgio voltou. Aproveitei para tirar minha dúvida sobre ele ser casado. Discretamente, é claro. E, assim que ele me devolveu a via do Boletim assinada pelo delegado, prestei atenção em suas mãos, a procura da aliança, ou marca dela, mas não encontrei nenhuma das duas.

— Obrigado — eu disse.

Ele sorriu de lado novamente, e me estendeu a mão.

— Boa sorte, Caio Henrique.

— É só “Caio”, por favor — resmunguei e correspondi ao cumprimento.

Ele apertou minha mão firme na dele, mantendo aquele sorriso bonito no rosto.  

— Tome cuidado, Caio. Se tivermos alguma novidade deixo recado naquele celular alternativo que deixou.

— Certo.

A mão dele continuou apertando a minha por um tempo, até que o meu olhar sério deve tê-lo feito se tocar que não estava sendo muito ético e então ele soltou e acenou com a cabeça.

Eu saí da delegacia mais atordoado de quando entrei.

...

Pelo menos, algo bom veio com toda essa confusão, estava sendo mimado pelo namorado de uma forma até enjoativa. O Thiago estava cozinhando, limpando, e até levando comida na cama para mim.   

— Eu não estou doente, sabia — reclamei, quando ele me mandou voltar para cama assim que me viu na cozinha, de pé, atrás dele, olhando o que estava fazendo.

— Mas está machucado — contrapôs, enquanto continuava picando os condimentos para o molho da lasanha a bolonhesa que ele iria fazer de almoço.

Era uma “gordice” bem-vinda, depois de todo o estresse que passei, mas não conseguia parar de pensar nas quinhentas mil calorias que iria ganhar de novo, e logo após eu ter lutado tanto para perder os quilos que ganhei quando fiquei com a perna engessada.

— O cheiro está bom — confirmei, farejando o ar. — Mas essa porção não está meio grande só para duas pessoas, não? — observei a quantidade de ingredientes, todos organizados em seus respectivos refratários sobre a bancada de mármore.  

— Sim.

— Então?

— É que não vai ser um almoço só para duas pessoas. Aliás, acho que estão chegando.

— Quem está chegando?

Eu mal tive tempo de perguntar quem viria para almoçar e a campanhinha tocou.  

— Pode atender, por favor.

— Quem você convidou, Thi?

— Não fui eu quem convidou, simplesmente se convidaram porque querem ver como você está. Essa história que caiu de moto foi para o Facebook, aí, já sabe.

— Ai, ai... — suspirei, ficando cansado só de imaginar.

Apesar de que seria bom rever a Fran e os outros.   

— Thiago? — a campanhinha continuou soando, acompanhada daquele chamado. — Meu filho, você está aí?

— Thiiiii — uma voz infantil e estridente irrompeu, ao auxílio da mãe.  

Eu abri um grande sorriso, aquilo eu não esperava, era a minha sogra?  

— Sua mãe, Thi?

— E a Vitória.

Eu fui para porta, passando pelo espelho para dar aquela ajeitada básica no visual. Atendi e a dona Helena, que rapidamente largou da mão da filha, e colocou a bolsa e as sacolas no chão, então ela apanhou meu rosto entre suas mãos.

— Meu Deus, meu filho, olha como ficou seu rosto. Você está tão amarelo. Está mesmo bem, Caio? Como o Thiago foi tão irresponsável ao ponto de deixar você pilotar sozinho, se nem tem experiência? Meu filho foi muito errado! Por que está de pé?

Fiquei constrangido, claro. Mas era um constrangimento bom ser repreendido por aquele gesto que era puramente maternal.  

— Eu estou bem, D. Helena. Juro. Eu passei pelo médico, só tive escoriações leves.

Ela me olhou com aquele ar que parece de pena, mas que ao mesmo tempo é de repreensão e decidi me render por hora.

— Ok. Estou voltando para cama.

— Isso mesmo — ela se abaixou para apanhar as sacolas, fechar ela mesma a porta e seguir em direção da cozinha.

A Vitória estava lá, agarrada a perna do irmão mais velho, querendo que ele olhasse o brinquedo novo que ela tinha nas mãos, um mini-celular de plástico que fazia uns sons engraçados e diferenciados quando tocava nas teclas.

— Eu falei para ele ficar deitado, mãe. Mas ele não me ouve.

— Tem que ser mais firme, Thiago — ela bronqueou com o filho também. — Nem sempre o doente quer estar doente. E é responsabilidade de quem está cuidando conscientizá-lo. Você sabe muito bem disso.

— Pô, mãe.

— “Pô, mãe” nada, menino. Fale direito comigo.

— Olha aqui, maninho, olha aqui! Maninho!

— Vitória, seu irmão e a mamãe vão cozinhar. Aqui não é lugar de brincar. Vai ficar na sala com o tio Caio.

A menina fez um bico.  

— Sem bicos. Vai cuidar do tio que ele ‘tá doente, você nem cumprimentou ele ainda.

— Mostra para ele seu celular novo, Vick. Depois o maninho brinca com você.

Ela abriu um sorriso, concordou ao balançar a cabeça e correu ao meu encontro.

— Tio Caio, Tio Caio, olha!

Ela parou na minha frente apontando o brinquedo, com aquele sorriso aberto e os olhos brilhando.

A Vick estava graciosa. Os cabelos crespos todo para o alto, com pequenos laços coloridos prendendo algumas mechas. A irmãzinha caçula do Thiago tinha aquela linda pele morena, muito mais que ele, provavelmente o pai dela era negro, os lábios eram rosados e carnudos, pareciam um moranguinho e seus olhos amendoados eram alegres e espertos como a própria.

— Ó! Que bonito, hein? — eu admirei, apanhando-a e colocando-a no meu colo. — É um dos modelos mais novos, né? — observei. — Quem te deu?

— A mamãe — ela confirmou orgulhosa, balançando os pesinhos para fora do meu colo.

— Muito bonito.

— Né? Agora vou adicionar o tio no Zap-Zap.

— Isso mesmo. E a gente vai poder trocar mensagens.

— Mas eu ainda não sei escrever. A professora da escolinha tá me ensinando!

— Certo, então o tio vai esperar você aprender.

— Mas, tio, pode me mandar figurinhas e vídeos de criança, tá?

— Opa. Combinado.  

Ela riu gostoso. Era tão bom.

Aquela sensação de família era tão reconfortante que chegava a me emocionar. Ser chamado de “tio” por uma pequena tão inocente, que sequer imaginava que não era nada comum ter um “tio” quando se tem apenas um irmão mais velho.

A própria dona Helena era um exemplo de pessoa. Ensinando a filha a chamar o namorado do irmão de tio. Aquilo era tão lindo. Tanto, que fazia doer. Doer por me recordar à ignorância dos meus próprios pais, que não aceitaram de forma alguma minha opção. Ainda agiram como se eu fosse um tipo de doente. Drogado, viciado, que havia renunciado a Deus e que não aceitava ser tratado.

O mau-humor acumulado pelas coisas ruins que me aconteceram se esvaiu rapidamente, mas não consegui evitar a emoção ao me recordar da minha família. Porém, do nada, senti aquele abraço gostoso vindo da Vitória. Na cozinha a D. Helena e o Thiago discutiam, porque ele não aceitava que ela, que era uma visita, o ajudasse, enquanto ela respondia divertida:

— Você não manda em mim, e eu vou ajudar sim.

— Olha, olha, D. Helena. Quem está ensinando a senhora ser malcriada desse jeito, hein?

— Cale a boca, menino! Essa fala é minha.

Eles riram com vontade e eu olhei para Vitória e acariciei seus cabelos.

— O que foi, Vick?

— Tio, não chora. Os dodói estão doendo, né? Mas vai passar. A mamãe disse que abraço e carinho cura todas as feridas.

Só então eu senti que as lágrimas haviam descido pelo meu rosto sem que eu percebesse. Tratei rapidamente de afastá-las. Olha o que eu estava fazendo, preocupando até uma criança.

— Obrigado, Vick. O Tio já está se sentindo melhor. Agora que tal a gente brincar!

— Vamos? — Os olhos dela brilharam.

— Sim. Vamos!

Foi uma tarde de domingo muitíssimo agradável. Comemos muito.

A lasanha do Thiago com o toque da mãe estava simplesmente maravilhosa.

A D. Helena e a Vitória se arrumaram para ir embora no meio da tarde. Ela queria ir cedo, justificando que os ônibus demoravam a passar no domingo e ela não queria chegar de noite em casa.

— Fiquem com Deus — ela desejou ao se despedir, beijando eu e o Thiago no rosto.  

— Obrigado por vir, mãe.

— Você não vai, maninho? — a Vitória perguntou, abrindo a boca e esfregando os olhinhos de sono.

O Thiago a apanhou e ergueu no alto, fazendo-a despertar.

— Ai, ai, maninho. Muito alto! Tenho medo! — Então ele a abraçou e a encheu de beijos e fungadas no rosto enquanto a apertava nos braços. — Ai, ai, maninhoooo!

— O maninho vai ficar cuidando do tio Caio que tá doente, amanhã eu volto para casa, tá? Seja obediente com a mãe.

— Tá. O tio também vai amanhã, né?

Eu sorri.

— O tio vai visitar vocês um dia — prometi, fazendo um afago na cabeça dela e depositando um beijo em sua bochecha.

— Tá bom — ela concordou, retribuindo em mim o beijo na bochecha, depois depositando um beijo no rosto do irmão também.

O Thiago a colocou no chão e as duas partiram.  Depois disso ele foi escovar os dentes e eu sentei na cama, diante da televisão ligada que fazia a chamada para o jogo de futebol. O meu humor estava recuperado ao ponto de eu querer dormir ao lado do Thiago o restante da tarde, apesar do calor infernal que estava fazendo naquele domingo e do nosso ventiladorzinho não dar conta. Porém, o celular do Thiago começou a tocar de repente.

— Posso atender? — perguntei para ele que ainda estava no banheiro.

— Podesh — ele respondeu, certamente com a boca cheia de espuma.

Eu havia escovados os meus dentes primeiro. Faço sempre quando termino de comer, mas ele tinha a mania de escovar só depois de limpar tudo e se preparar para deitar.

A ligação não estava nos contatos dele, pois aparecia só o número na tela.

— Alô?

— Oi, por favor. Eu consigo falar com o Caio Henrique nesse número?

— É ele.

— Oi, Caio. Sou o policial Sérgio, que fez seu Boletim de Ocorrência, na Vigésima DP, tá lembrado?

— Ah, sim. Claro. Tudo bem?

— Sim, e com você?

— Estou melhor.

— Que ótimo. Então, tenho boas notícias. Encontraram seu celular. Você pode vir retirar comigo?

— Jura?

— Sim. Juro. Sou um policial. Não brinco com coisas sérias.

Eu dei uma grande risada de alegria.

— Muito obrigado. Nem estou acreditando. Que horas posso pegar?

— Se quiser, agora mesmo. Meu plantão acaba às dezenove. Digo, para retirada de objetos encontrados é até a dezenove. Na verdade, fazemos isso só dia de semana. Mas vou abrir uma exceção para você.

Eu senti uma pontada no estômago quando ele disse isso e fiquei sério. Eu estava sendo cantado de novo, não estava?

— Hm. Certo.

— Posso te esperar?

Agora era certo, eu estava sendo cantado.

— Sim, devo ir um pouco mais tarde. Que vai estar mais fresco.

— Certo, te aguardo. Abraços.

— Hm.

A ligação foi encerrada e o Thiago saiu do banho me olhando.

— Acharam seu celular?

— Pois é.

— E você não parece contente, o que foi?

Óbvio que eu não iria falar o motivo para o Thiago, que era extremamente ciumento. Mas decidi que iria fazer uma surpresa para aquele policial assanhado.  Então tentei abrir o meu melhor sorriso para o Thi.

— Claro que estou feliz. Você me leva lá mais tarde para pegar o celular?

— Não precisa nem perguntar, meu amor. É claro que vou com você — ele rebateu rapidamente.

— Obrigado.

Aquele policial assanhado teria uma bela surpresa ao me ver com meu namorado.

— Vem, vamos deitar um pouco — o Thi me chamou.

— Sim, vamos.

Continua...


Notas Finais


Como vocês estão nesse feriadão bem no meio da semana?
Eu aproveitei para fazer atualização de ESB. Espero que tenham gostado. 
Como já sabem, comentem sempre que puder! É o incentivo para nós autores continuarmos com nosso trabalho.
Beijão, bom fim de semana! o/


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