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História FateDark Soul - Debate dos Cavaleiros - parte III


Escrita por: vccotrim

Notas do Autor


Boa noite.
Não sei se tenho algo a dizer sobre este capítulo, só que estou amando o rumo que a história tá tomando e também toda interação dos personagens.
Espero que gostem. Boa leitura.

Capítulo 11 - Debate dos Cavaleiros - parte III


Enquanto os Servos se reuniam na terma, os dois Mestres, Íris e Heiko, ficaram na sala de estar desfrutando de um pequeno desjejum preparado por Assassin Carmesim com a ajuda de alguns empregados. Como fora mãe solteira e dona de casa sabia a maneira correta de preparar as coisas, podendo-se dizer que tinha uma mão de fada para o ofício. Os biscoitinhos não saíram sem gosto e nem secos, o gosto amanteigado junto com a maciez da massa. O chá era perfumado, estava quente na medida certa, sem queimar a língua e nem faltando, e ficava perfeito com o creme e o leite que foram colocados para complementar a bebida. E nem se podia deixar de comentar sobre os pires e a prataria, era um jogo perfeito e sutil, tudo combinando para encantar os olhos e exibir com elegância ao convidado o que tinham para oferecer. 

Podia-se dizer que era uma situação engraçada, mas ninguém era contra a confraternização dos magos, principalmente a Serva que parecia incentivar a aproximação dos dois. Por um tempo ela ficará conversando junto com eles comentando alguns fatos sobre Íris que se sentiu envergonhada, como quando a mãe mostra fotos do filho ainda bebê usando a privada pela primeira vez ou tomando banho. Basicamente vendera a imagem da garota como uma boa moça para casar, comentando sobre sua relação com o pequeno Lewis e como cuidava bem dele, uma boa irmã mais velha, e do seu dote como maga, do talento que mostrou na batalha, da sua dedicação à família.  

Depois de acabar com seu trabalho de cupido decidiu deixar os dois sozinhos para que seguissem com as próprias pernas, não sem antes lançar uma piscadinha de “boa sorte” para a garota enquanto fechava a porta. 

Íris, ao contrário do que Mata Hari planejara, não tinha mais coragem para encarar Heiko, tinha a cabeça baixa e o rosto coberto pelo cabelo, como um palco sendo fechado pela cortina ao fim do espetáculo, e com a mão livre procurava esconder ainda mais seu rosto tomado pelo rubor da vergonha. 

- Des-... Desculpa... – gaguejou sem saber o que poderia falar além. 

- Por quê? – Heiko respondeu tentando esconder o sorriso levando a xícara para o último gole de chá, mas levando um tempo maior que o necessário. 

- Não se sentiu incomodado? 

- Pelo quê? Foi engraçado. 

Heiko não mentiu, achou a situação mais engraçada que constrangedora, a Serva estava apenas tentando descontrair o ambiente com seu jeito brincalhão e até inocente. Foi uma sensação estranha, mas gostara, nunca vivera uma situação assim no seu castelo, sua família era bem mais rígida e quando alguém estava presente, ou eram conversas desinteressantes sobre alguma pesquisa mágica, ou para os treinamentos. 

Nunca houve um momento em que fosse descontraído, onde as pessoas só sentavam para conversarem besteiras e rirem. Não havia alegria. Não havia amor. Era uma grande fortaleza fria e escura de pedra, se tornando ainda mais sombria cercada pela neve do inverno. Desprovida de calor e família, somente um lugar de tortura e escuridão. 

“Por que eram assim?” – se perguntava. 

Sua pele pálida era coberta por marcas irregulares que sempre lhe atormentavam toda noite com as lembranças que deixavam, com a dor que marcavam em sua mente. Mesmo sua magia era um doloroso registro do que havia passado, sempre que usava as runas sentia todo o peso do preço que foi conquistá-la. 

- ...-ko... 

“Não era para ser assim em uma família...” 

- Heiko! 

“Eu não queria isso...!” 

- Ahn? 

O que acordou o garoto dos seus pensamentos foi uma explosão gerada na sua mão. A xícara de porcelana delicada arrebentou em diversos cacos que arranharam seus dedos, e mesmo o impacto da magia lhe causou dor pelo choque, foi como se milhares de abelhas picassem sua mão e então fossem subindo pelo braço comendo cada centímetro de pele. 

Íris largou sua xícara sobre o pires na mesa de centro e foi até o garoto amparando sua mão machucada. Os cortes não eram sérios, mas o que lhe incomodou foi a marca de queimadura na palma, o cheiro de pele queimada invadia suas narinas deixando-a levemente enjoada. O que mais lhe espantou, no entanto, foi a falta de reação dele. Normalmente uma pessoa gritaria e choraria de dor, reclamaria, espernearia, rolaria no chão, faria qualquer coisa para reclamar da dor, mas ele simplesmente ficou parado encarando-a sem entender o que estava fazendo. 

- O que foi? – ele perguntou. 

Seu tom de voz foi o normal dele, neutro e passivo, sem qualquer alteração. Ele realmente não sentia nada ou de alguma forma conseguia ignorar a dor ao ponto de mascarar – ela não sabia dizer. De alguma forma isso a incomodou, não sabia como explicar, mas sentiu algo de estranho. 

- Não sente nada? – perguntou tentando esconder seu incomodo e evidenciar sua preocupação. 

- Sinto, mas não incomoda. Nem mesmo adianta me estressar por isso – ele respondeu desenhando uma runa sobre a palma da mão direita. 

Íris observou em silêncio enquanto a queimadura regredia e a pele ia se curando, retomando seu tom natural. Quando o processo foi completado Heiko mexeu os dedos abrindo e fechando, depois deixando a palma amostra para que ela pudesse observar melhor. 

- Viu? – o garoto falou achando que assim matara a curiosidade da menina. 

Íris não sabia o que falar, estava espantada ainda com a falta de reação do garoto, faltava calor, faltava algum sinal de vide como mostrado em batalha. Um boneco. Sim, talvez fosse a melhor forma de definir o comportamento dele agora, parecia um boneco que não sentia nada, somente passou pelo conserto para que continuasse sendo usável para brincar. 

- Bem... – tentou continuar a conversa, mas se engasgando com as palavras. O que deveria dizer? 

- Tudo bem – ele respondeu antes. – Acho que é uma reação normal. 

Se sentindo constrangida por não ter conseguido falar nada e o obrigar a perceber o incomodo que causou nela, Íris se recolheu de volta ao seu assento. As mãos nervosas pousaram sobre os joelhos contraídos e seu olhar se perdeu no tapete, não sabia o que fazer e nem o que dizer sobre. 

- Eu não quis te deixar desconfortável... – começou a falar, mas Heiko pediu para que parasse com um sinal de mão. 

- Sei disso. Sinceramente, até eu me surpreendo as vezes com o quão inumano posso ser – ele comentou com um sorriso entristecido. – É meu jeito de lidar com os problemas desde pequeno, em uma melhor maneira de definir. Não sei. Só aprendi que era melhor fazer isso ao invés de me deixar ser levado pelas emoções. 

- Mas... Mas não é isso que nos torna humano? – ela questionou um pouco hesitante ainda não sabendo quais palavras usar, até mesmo se arrependeu da sua pergunta. – Digo... – tentou continuar tentando consertar o erro. – Como que você consegue conviver com isso, com essa falta? É só que... Argh...! 

Era frustrante para Íris não saber o que falar, estava se sentindo extremamente culpada. Se ele preferia suprimir seus sentimentos talvez algo muito grave tenha lhe acontecido, não sabia nada sobre ele, não o conhecia, e o mesmo valia pra ele em relação à ela, então porque ele contaria sobre sua vida para uma completa estranha? 

Porém, diferente do que pensava, Heiko von Fagner não pareceu se importar. Tentando acalmá-la lançou um sorriso frouxo. Ele realmente não ligava para contar para outra pessoa sobre o que lhe aconteceu... 

- Foram problemas familiares – respondeu entrelaçando os dedos e esfregando um polegar contra o outro, um clássico sinal de nervosismo interno. 

...superficialmente, claro. 

Heiko realmente não se sentia bem em comentar isso com qualquer um, fossem os seus Servos ou Habermars e Gertrude, muito menos com uma completa estranha com quem trocou poucas palavras. Para ele, falar sobre isso era reviver os momentos, e revivê-los era um grande tormento. Se verbalizasse podia rever as imagens marcadas nas suas memórias. Imagens que adoraria apagar, mas não conseguia, parecia uma maldição que o perseguiria até o dia da sua morte. 

- Quer um bolinho...? – interrompeu Íris oferecendo um cupcake. 

Foi sua tentativa para mudar de assunto. O pequeno cupcake simbolizava um pedido de desculpas, Íris sabia que tinha sido intrusa e queria consertar, afinal ele era uma pessoa legal que a ajudou também durante a batalha e que permitira seus Servos aceitarem o convite de Ájax, além de todo tempo que passou ali como um verdadeiro convidado, não tentou um ataque surpresa na base inimiga. Para complementar, não gritou e nem demonstrou qualquer irritação com ela, agiu normalmente e tentou responder à sua maneira. 

Já estava sentindo o coração acelerar de nervosismo e sua garganta secar, a demora na resposta dele estava se tornando desconfortável apesar de se passar poucos segundos, para ela parecia uma eternidade, até esperou algum ataque de raiva da parte dele. 

- Obrigado – Heiko respondeu pegando o bolinho. 

Quando ele pegou o bolinho das suas mãos, sentiu um grande peso sendo tirado das suas costas, foi impossível soltar um curto suspiro de alívio e retomar o sorriso. Igualmente a atmosfera no local ficou mais leve, calma, voltando a ser fácil respirar. 

- Hmmmm!!! 

O olho de Heiko brilhou logo na primeira mordida. Estava delicioso! Mesmo querendo dizer que a comida preparada pelos empregados no seu castelo era melhor, não tinha como falar sinceramente, aquele doce estava divino! Assassin Âmbar realmente sabia como fazer as coisas, tendo ajuda das criadas e coordenando tudo na cozinha soube mostrar seu dom como dona de casa e toda dedicação que botou sobre este talento. 

- Ah! Heiko... – Íris chamou a atenção dele. 

- Hm? 

- Sua boca tá suja aqui – explicou ela apontando em seu rosto o local que Heiko deveria limpar nele. 

Se guiando pela garota, tentou limpar a região suja com a cobertura de chocolate do cupcake com o polegar, porém não acertava, e quando conseguiu, não tirou tudo. 

- Ainda falta um pouco. Espera. 

Íris pegou seu guardanapo e se inclinou na direção do garoto, limpando a cobertura. 

- Pronto! – ela falou feliz com o trabalho finalizado sentando-se novamente na sua poltrona. – O que foi? 

- Na-... Nada! 

Heiko tentou disfarçar, mas não dava, ela já tinha visto seu rosto tomado pelo rubor. De novo aquilo. Ele não entendia o que acontecia, mas não conseguia controlar. Não era doença e nem nada do gênero, logo o que podia ser? Jamais passar por isso, nunca sentiu seu rosto esquentar desse jeito. Já corou, obviamente, nos momentos em que Habermas e Gertrude faziam alguma fofura (quase sempre!), só que era completamente diferente de agora. 

“O que é isso?!” – ele se questionou tocando as bochechas quentes. 

- Des-... Desculpa... – balbuciou sem saber o que fazer. 

Íris ficou sem entender no começo ao que ele se referia, porém não demorou para raciocinar, e quando pensou sobre o que poderia ter causado o rubor nele, seu rosto esquentou igualmente, foi uma reação quase imediata. 

“Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!” – começou a gritar mentalmente. Mas logo outro pensamento veio a sua mente. – “Por que estou nervosa?!” 

Por quê?! Ela só limpou a boca dele, nada demais, não havia qualquer outra razão por trás da sua atitude. Na verdade, qual o motivo para ele ficar nervoso? Claro, ele pode ter ficado um pouco envergonhado com isso, possivelmente outra pessoa nunca fez isso nele, portanto era constrangimento por não saber como se comportar, mas o rubor dele passou disso, parecia que aconteceu algo mais dentro dele. E se estivesse, qual o problema? São completos estranhos, no máximo podia ser uma ligeira confusão da parte dele, e se fosse, ela não precisava ter reagido desse jeito. Então por quê?! 

Interrompendo ambos, Shakespeare entrou na sala voltando da terma carregando um Lewis adormecido no colo. Ao ver os dois fez um sinal pedindo silêncio colocando o indicador sobre os lábios, os Servos que seguiam atrás dele tomava cuidado no seu andar tentando não acordar a criança.  

Mata Hari veio logo em seguida ao escutar o abrir da porta, não precisando do recado de Caster Verde. Se aproximando com todo cuidado, esticou o braço para o dramaturgo que leu o recado sem precisar de mais e passou o garoto sonolento para ela, que o amparou em seus braços afagando suas costas e cantando uma música de ninar sussurrada. Shakespeare passou o braço por seus ombros, a puxando para perto e os dois saíram da sala de estar. Diarmuid, Archer Vermelho, Ájax e Sanson permaneceram no recinto. 

- Desculpe o incomodo. Interrompemos alguma coisa? – perguntou Assassin Negro. 

- Não – a Mestra respondeu. 

- Sim. Já está na hora de irmos também. Não queremos mais tomar o tempo deles, e todos precisam de um bom sono após todos estes acontecimentos. 

Heiko se pronunciou levantando e se espreguiçando para evidenciar seu cansaço. Claro, foi uma desculpa também para ir embora imediatamente sem causar mais desconforto. Sim, ele acreditava que estava incomodando, pois, diferente dele, Íris certamente não precisara se acostumar a passar noites em claro e sua primeira experiência de guerra fora exaustiva – dava para notar as olheiras se formando sob seus olhos. Mas também era bom encerrar a conversa visto que os dois não estavam sabendo como agir um com o outro. 

Íris não relutou. Lançou um sorriso gentil para ele e esticou a mão para ele. 

- Obrigada por tudo, mais uma vez – falou. 

De novo, Heiko ficou naquela situação em que não sabia o que fazer, encarou a mão estendida da garota com um grande ponto de interrogação na sua cabeça. Olhou para ela procurando uma resposta, mas desistiu sabendo que poderia gerar outro problema, portanto decidiu por imitar seu movimento. Estendeu a mão dele para próxima da dela, e quando Íris segurou sua mão, ficou ligeiramente petrificado. Aquilo o pegou completamente desprevenido, ainda mais quando sua mão foi movida pra cima e pra baixo. Era algum feitiço? Tinha certeza que não, Íris não era do tipo traiçoeiro, pelo que viu até agora poderia chamá-la de inocente. Seria alguma tradição de onde marava? 

- De nada – ele respondeu. – Obrigado também, por ter me ajudado. 

- Não há de quê. 

Soltando as mãos, Heiko não precisou chamar seus Servos que já se despediam de Ájax e Assassin Negro.  Desenhando uma runa no ar, a letra nórdica flutuou com seu brilho florescente se expandindo até forma um portal que ligava um ponto da residência dos Harrington à sua base, um casarão de verão dos von Fagner. Seguindo o Mestre, Diarmuid Ua Duibne e Archer Vermelho passaram pela passagem. Assim que os passageiros desembarcaram, a runa perdeu seu efeito, fechando a fissura. Íris encarou assustada e maravilhada, nunca tinha visto magia de runa de tão perto antes, era assustadora e encantadora, nunca pensou que símbolos tão simples fossem capazes de realizar um ato desses, simplesmente era como se a magia encarasse a realidade e ignorasse todas as regras. A runa que decidia como a realidade trabalharia. Rasgou o ar como se fosse nada e quebrou todo conceito de espaço tempo. 

Mas bem, ela não fizera o mesmo quando invocou seus Espíritos Heroicos os chamando de um outro tempo, uma outra realidade? E seus Selos de Comando podiam fazer o mesmo, se quisesse que um dos dois se materializasse no Japão, por exemplo, exatamente agora, o poderia fazer. 

- Senhorita – chamou a empregada que entrou no cômodo antes de uma rápida reverência. – Sua cama está pronta. 

Podendo finalmente relaxar, seu corpo permitiu que o cansaço lhe abatesse, arrancando um longo bocejo preguiçoso. 

 

Após a Mestra deixar o recinto, Charles-Henri Sanson sentiu mais liberdade para se mover pelo ambiente, indo checar alguns livros que estavam em uma das estantes e pegando um de capa de couro vermelho envelhecido. O título estava escrito em uma caligrafia cuidadosa e desenhada com tinta dourada, chamativo o suficiente para prender sua atneção e o levar a se sentar na poltrona em que Heiko von Fagner estava sentado, servindo-se uma xícara de chá complementado com creme. Diferente de Ájax, que na primeira oportunidade se atirou no sofá e se serviu de um dos cupcake. Não conseguia entender como um guerreiro podia ser tão folgado assim. Se bem que, observando a atitude dele em campo, mesmo passando a imagem de estar relaxado, sabia do nervosismo que o tomou na hora. 

- Ei, senhor Telamonian-... – começou a falar, porém fora interrompido pelo maior. 

- Já disse para me chamar de Ájax. 

Soltando um curto suspiro de irritação, Sanson continuou com seu tom neutro. 

- Ájax, como consegue ser tão preguiçoso e em batalha representar a imagem de um guerreiro perfeito? É quase como se existissem duas versões suas. 

- Quando não estou em batalha posso relaxar, não? – Ájax respondeu. 

- Claro – Sanson concordou. – Mas... É que sua atitude é completamente diferente de quando estava lutando. No campo agiu como um verdadeiro líder, soube comandar e conquistar a confiança de todos presentes, sabia o que precisávamos fazer e coordenou como nunca vi um general fazer. Agora, voltando para casa, virou um pervertido e um preguiçoso. É um contraste extremo. Ainda mais para alguém descrito como “o grego perfeito”. 

Arrumando sua posição no sofá, encarou o executor com um sorriso de compreensão. 

- Acho que não atendi suas expectativas. 

A afirmação pegou Assassin de surpresa, o deixando com a boca levemente aberta. Como ele lia as pessoas tão facilmente? Tentando se recompor o mais rápido possível, voltou a sua neutralidade e continuou. 

- Sim... – respondeu um pouco vacilante na voz. Não era isso que queria dizer, mas também não estava mentindo. Quando leu a história de Telamonian Ájax não conseguiu acreditar que eram a mesma pessoa à sua frente. – Desculpe, não quis ofender, mas esperava algo mais de alguém que foi até mesmo amigo do grande herói Hércules. 

- Saudades desse cara – Ájax comentou desconversando um pouco ao ouvir o nome de um velho amigo. – Mas eu quem peço desculpas. Realmente costumo decepcionar as pessoas no fim. 

Percebendo o tom amargurado no final da frase, tentou pensar sobre a quem ele estava se referindo. Talvez os gregos ficaram desapontados com o suicídio daquele que era considerado perfeito aos seus olhos, mas não parecia ser isso, era mais pessoal, Ájax não parecia o tipo que se deixa levar pelo julgamento da multidão. 

- Sobre o que falou com Páris – tentou mudar de assunto –, realmente pensa assim? 

- E porque eu mentira? O que ele falou foi a maior idiotice que pude ouvir. Pareceu uma criancinha quando brinca de cavaleiro. 

- Mas ele não seria um? 

- E desde quando há cavaleiros? 

- O que quer dizer com isso...? 

De repente o livro em suas mãos se tornou desinteressante e não conseguiu esconder o choque, mesmo tentando esconder ainda estava evidente em seu rosto o impacto das palavras de Ájax. 

- Me diga, de verdade, realmente acredita em heróis? Os honrados homens que iam ao campo de batalha montados em ilustres cavalos e guiando a esperança de seu povo? 

- Sim. Afinal é isso que fazem. Defendem e protegem seu país com toda garra que têm – Sanson respondeu sentindo um gosto amargo subindo pela garganta. Desde pequeno sempre enxergara os soldados como cavaleiros, defensores da paz e esperança. Se houvesse algum ataque inimigo eles estavam lá para defender todos e sacrificarem suas vidas para o bem do povo. 

“Gostaria de ter sido abençoado como eles” – pensou imediatamente irritadiço. 

Podia se lembrar da admiração que olhava para os soldados quando criança. Era reconfortante os ver tão imponentes em seus uniformes carregando o símbolo da pátria, o respeito que todos tinham por eles era admirável, podia-se dizer que eram os semideuses daquela época, bravos guerreiros que enfrentavam sem medo os monstros que atormentavam os inocentes e viviam aventuras que poucos teriam a honra. Ser um cavaleiro é o ápice para uma pessoa como ele, que antes de nascer já estava condenado a uma vida amargurada. 

- Não. Não acredita – respondeu Ájax se baseando na resposta de Sanson, que arregalou os olhos surpresos. – O que você também tem é o delírio de uma criança. 

- O quê?! 

- Exatamente. Páris acredita que seu nascimento é a causa de tudo, que se ele não existisse Tróia estaria salva das garras de Melenau e da ira das deusas, simplesmente ignorando todos os fatores envolvidos e assumindo uma responsabilidade que não é exclusiva dele. Como se Zeus fosse ter coragem para decidir ali mesmo quem era a mais bela e arcar com as consequências. E Charles-Henri Sanson, você é igual ele. Acredita em um sonho que não existe. Por acaso já esteve em uma guerra de verdade? 

-... 

Sanson não sabia o que responder. Não, nunca estivera em um campo de batalha, mas o que tinha a ver com o que achava ou não sobre os cavaleiros? 

- Pra você, os soldados franceses são cavaleiros, não? Eles foram defender a França dos inimigos, não? 

- Mas é claro! Se fossem fracos ao ponto de deixar seu lar ser invadido, do que seriam chamados?! 

- Agora me diga, e do lado inimigo? Os franceses são vistos como cavaleiros? 

- Claro que não – respondeu com toda certeza do mundo, ainda sem entender onde Ájax queria chegar com seu raciocínio, estava só repetindo coisas óbvias. 

Então veio o golpe do que ele estava falando. 

- Percebeu, não? Em um campo de batalha não há cavaleiros. Não há certo ou errado. Não é o bem contra o mal. O que há no campo de batalha é apenas sengue e morte, cada um lutando por um motivo egoísta. Claro, pode haver um louco que luta unicamente pela pátria, nunca se sabe, mas outros lutam para não morrerem, por quererem ver a luz do dia seguinte mais uma vez, para voltar para família, rever a esposa, não abandonar o filho. Para não permitirem que nenhum mal os aconteça, para proteger aquilo que lhes é querido. Ou mesmo somente pela fama, também há esses loucos espalhados pelo mundo, como Odisseu. 

- O que vocês conhecem como cavaleiros – continuou Ájax – são nada mais, nada menos, que figuras inventadas pelos seus líderes para alimentar o espírito patriota e justificar as baixas de seu exército, para que a dor da perda seja mais fácil de processar e que quem ficou para trás possa ter um último presente. Assim como você vê os inimigos da França que matou seus heróis, o outro lado tem a mesma visão, vocês são os monstros que mataram seus defensores. Entende agora? 

Sim, Sanson entendia agora. Mas para ele era como ter perdido o chão. Seus heróis eram assassinos também, assim como ele, mas diferente dele, foram tratados como heróis por causa de uma medalha. Seu mundo se tornou um grande vazio, não havia mais apoio e nem estrutura, e entender a verdade de Ájax era pior do que permanecer na ignorância, pelo menos tinha algo a que se agarrar, mesmo que fosse uma mentira. 

“Então por que só enxergo sangue nas minhas mãos?” – pensou encarando as mãos pálidas. 

Toda vez que olhava para si só conseguia ver o sangue de inocentes. Apesar de achar que sua justiça era um jeito de ajudar, não conseguia deixar de sentir este peso no coração, um grande nojo contra sua própria existência que não conseguia ignorar. E todos viam o mesmo. Então por quê? Se todos são assassinos no fim, porque só ele era renegado? Por que só ele teve que lidar com a solidão e um destino amaldiçoado? 

- Ei. 

Apesar de chamado, Sanson não deu atenção, estava perdido nos seus pensamentos. Logo, não percebeu o maior se aproximando e o puxando para um abraço. Os braços fortes e musculosos o envolveram com cuidado e carinho, e contra seu gosto, se sentiu amparado de verdade. 

- Não se sinta assim – Ájax falou. – Você é muito mais do que os outros falam, e o admiro por isso. 

Os olhos azuis lacrimejaram com a frase de Ájax, mas se segurou para não deixar nenhuma lágrima rolar. 

“Como pode admirar alguém como eu?” – foi tudo que conseguiu responder, mas sem coragem de verbalizar. 

Acariciando os cabelos brancos do menor, tirou os fios da testa onde deixou um beijo carinhoso, e o soltou do abraço. 

- Tente descansar – pediu com um sorriso doce que nem Sanson teria coragem de desfazer. – Foi uma noite longa. 

E assim, deixando-o sozinho por um tempo com seus pensamentos, o grego saiu do recinto indo para o quarto que dividiria com Sanson nos próximos dias. 


Notas Finais


Obrigado por ler.


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