“Devemos ter uma boa memória para sermos capazes de cumprir as promessas que fazemos.”
— Friedrich Nietzsche.
|x|
Risadas delicadas inundavam o campinho de futebol da cidade de Karakura. Toushirou perdera as contas de quanto tempo estava ali, no Mundo Real, jogando uma partida particular de futebol com sua amiga humana, sob o olhar atento de Haru-baa-chan.
Os olhos turquesa focaram na garota que lhe lançava insultos sobre sua estatura e se divertia às suas custas – Kurosaki maldita que sabia usar seus pontos fracos contra ele. Toushirou teria parado para revidar as provocações se não estivesse tão compenetrado no objeto circular sob seus pés. A sua adversária já havia desistido de jogar sério quando seu fôlego começou a se esvair e o Sol subiu nos céus de Karakura, tornando a manhã de clima morno num dia um tanto quanto quente.
A tensão da Guerra era palpável na Soul Society, todos estavam praticamente enlouquecendo com a calmaria antes da tempestade causada por Aizen e seus subordinados. Ele próprio estava tenso. Contudo, uma de suas ocasionais visitas ao lado de certa humana de cabelos negros sempre ajudara aliviar o peso da imensa carga em seus ombros – como se ele fosse um jovem normal.
Quando a bola atingiu a rede desprotegida, Hitsugaya se virou para ir de encontro a sua avó humana e Karin, que a essa altura do campeonato estava sentada ao lado da idosa, tomando um sorvete enquanto apreciava o Sol.
Ele não pode deixar de notar que a Kurosaki estava – aos poucos – se tornando uma verdadeira beldade. A jovem possuía certo tipo de esplendor único, e este a cada dia mais acabava por se revelar. Desde o feitiço que seus olhos possuíam por detrás da volumosa camada de pestanas ao movimento sinuoso de seus cabelos indubitavelmente negros, ela encantava-o secretamente.
Mas estas seriam observações exclusivas dele, é claro.
— Já cansado, aluno do ensino fundamental? — Ela perguntou para ele, debochada. — Achei que o todo poderoso e todo magnífico Hitsugaya-taichou aguentasse mais alguns minutos sob o Sol!
Toushirou sentiu uma das veias explodir na testa. Geralmente, ele ficaria agradecido se ela se referisse a ele com o devido respeito, entretanto, Karin pronunciava o título que acompanhava seu nome com tanto deboche que ele preferia que ela o chamasse até de aluno do ensino fundamental.
Embora esta outra observação também fosse particular. Se a Kurosaki soubesse o que se passava em sua cabeça, ela azucrinaria sua vida até em outras encarnações.
— Volta para sua cama, pirralha. — Rebateu enervado. — Ainda não está na hora de bebês se levantarem.
Porém, ao contrário do que ele esperava, a malícia natural dos olhos de Karin se intensificou, e ele se preparou uma ouvir mais uma das pérolas que a língua afiadíssima da garota soltaria.
— Bem, e você deveria preparar uma fuga, fugitivo de asilo. — Riu do albino, toda endiabrada. — Nunca se sabe quando sua cuidadora pode vir trocar suas fraldas!
Até mesmo a velha Haru, que nunca tomava lado na troca de palavras árduas de seus netos postiços, riu silenciosamente, observando o Shinigami assumir uma careta lívida antes de gritar um sonoro e bravo:
— Kurosaki!
|x|
O pôr do Sol havia caído sobre a cidade, Haru estava de volta em sua casa – já que a idade lhe impedia de se desgastar muito – e Toushirou e Karin estavam dando voltas por todo o bairro. Ambos sempre se distraiam em conversas curtas e silenciosas. Karin não era muito interessada nas coisas em seu quotidiano, enquanto Toushirou jamais interagia com o ambiente ao seu redor a menos que fosse estritamente necessário.
Embora a maioria das pessoas pensasse que ambos eram completos fracassos em relações humanas, eles não precisavam quebrar a serenidade em sua volta para trazer um ar agradável a presença do outro.
Ambos estavam imersos em seus próprios pensamentos e distraídos quando o pequeno aparelho no bolso de Hitsugaya tremulou, carregando uma mensagem de Matsumoto:
“Taichou, reunião de emergência agora.”
Toushirou soltou um suspiro, parando de andar e lançando um olhar significativo para Karin. Ambos não se despediam tradicionalmente com muita frequência. Eram criaturas de poucas palavras e muitas ações. Olhares e gestos leves bastavam para eles.
Karin apenas deu um de seus sorrisos que não eram contentes, mas não eram negativos. Era um daqueles sorrisos mistos de costume, nostalgia e esperança que só ela sabia dar.
Ele se virou, se encaminhando para a loja do Urahara, sentindo as responsabilidades como capitão pesarem em suas costas e aquele sentimento que deixava seu coração inabitável voltarem com força. Seu mundo o aguardava. E ele estava um caos – o completo oposto da harmonia que Kurosaki Karin lhe oferecia.
Quando estava a algumas quadras do loiro com chapéu esquisito e leque, ouviu passos apressados e, surpreendentemente, um par de braços alvos e finos envolveu seu corpo. O cheiro de sabão e sorvete lhe atingiu com força, fazendo seus olhos se arregalarem e uma corrente elétrica de mil volts percorrerem seu corpo. Apenas uma pessoa nos Mundos teria coragem para tal ato, e apenas uma tinha aquele cheiro.
— Prometa para mim e para a vovó que vai voltar. — A voz de Karin, mergulhada em sentimentos, atingiu sua nuca, arrepiando-o.
— Kurosaki... — Ele balbuciou incrédulo.
— Prometa! — A garota o apertou, sua voz – geralmente calma – forte e autoritária como um rugido.
Toushirou estava num impasse. Não poderia prometer nada. Não deveria. Mas Karin... Ele não conseguia resistir a ela. Não poderia.
— Prometo.
|x|
Atualmente:
A Sociedade das Almas era uma ditadura, regida pelas leis do Conselho, cujo juiz supremo era o possuidor do sobretudo do Capitão Comandante. Não existia liberdade para protestos, uma vez que uma alma ingressava no Gotei 13, aceitava automaticamente todas as regras.
Os afazeres eram cansativos, consumiam o lazer de muitos Shinigami's. No entanto, era possível um escape. Ser feliz na Soul Society não era um milagre, afinal, os humanos designavam-na como céu. Isto, desde que a felicidade de Shinigami, não fosse encontrada para além das suas fronteiras estabelecidas.
Havia duas formas de um Shinigami, mais propriamente um capitão, perder o prestígio que conquistara: ambição por um poder que não lhe competia, como o caso de Aizen Sousuke que ficara confinado de seus cinco sentidos na prisão, ou apaixonar-se por um mortal. O décimo bantai fora palco do caso peculiar de Isshin Shiba, pertencente a uma das cinco famílias mais nobres, que largou tudo para viver com uma Quincy no Mundo Real.
Traidores do mesmo nível. Era assim que o Gotei os teria de proclamar.
Envolver-se com humanos era perigoso, cair no seu charme era uma forte tentação… na qual, nem os capitães podem conseguir resistir.
— Capitão?
— Acabou a papelada, Matsumoto? — Toushirou ignorou a preocupação nas safiras azuladas de sua tenente. Sabia o que ela pensava, estava angustiada por vê-lo trabalhar sem cessar. Porém, esse era seu escape. Um refúgio para a o remorso que o vinha consumindo.
Ele não podia ir ao Mundo Real, não podia visitar Karin nem a avó Haru.
Perante o caos que alastrou-se nos assuntos internos, ele era forçado a manter-se no bantai em caso de ataque.
— Será que após sete anos, ela ainda me espera…? — Perguntou alto, sem esperar propriamente uma resposta. Mas Rangiku entendeu o receio implícito naquela questão.
— Não se preocupe, capitão, tenho a certeza que a Karin-chan se lembrará do senhor! Vocês são amigos!
“E se não for o mestre, quem ela irá pedir ajuda para os jogos de futebol?”
Por uns instantes, quase observou-se um requisito de um sorriso na face do capitão perante o comentário de Hyourinmaru.
As nuvens negras carregavam uma densidade fora do usual. O céu ainda celeste não estava completamente encoberto por elas, quando as primeiras gotas de água começaram a inundar a Seireitei. Pequenas ruas converteram-se em lagos, nem as crianças podiam brincar divertidas sujando-se de lama ao pisar as poças de água.
Matsumoto cruzou os braços, pousando a cabeça neles, contorcendo os lábios num beiço engraçado, enquanto assistia a chuva bater violentamente contra os frágeis vidros da janela. Planeava uma pequena fuga do trabalho, como era usual, contudo o tempo não colaborava consigo.
Para onde iria com aquela imensidão de água? Iria ficar encharcada para onde quer que fosse, mesmo usando shunpou e alguma roupa extra. Muito possivelmente, ficaria doente. E com quem iria? Ninguém ousaria acompanhá-la na sua doidice.
— Matsumoto, não tente escapar. Se não acabar todos os relatórios que lhe entreguei, esconderei todas as suas garrafas de saquê.
— Capitão! Não seja cruel!
Matsumoto juntou as mãos entre os generosos seios, praticamente escondendo-as entre eles, embora não fosse intencional. Apelar ao generosíssimo de alguém que estava de péssimo humor, era uma tentativa inútil.
A cabeça de Toushirou pendia quando assinava distraído algumas folhas. A tenente o encarou, preocupada. Assistia à acumulação do cansaço de várias semanas, talvez, até meses. Sempre impunha um esforço colossal ao seu corpo para este esquecer a carga que caía sobre si. Rangiku não sabia o que acontecera ao certo entre o seu capitão e a menina humana, mas algo o fazia sentir-se culpado diariamente.
Ela aproximou-se do albino, surpreendida por este não ter notado sua aproximação. Depositou uma mão em seu ombro, sorrindo atenciosa quando este a encara perplexo, como no mesmo dia em que se encontraram pela primeira vez.
“Torne-se um shinigami”
— Vá, capitão. Precisa de descansar.
— Matsumoto? O que está fazendo?
— Um Shinigami no seu estado é inútil. O descanso faz parte da luta, capitão.
Os olhos arregalados não eram suficientes para explicar a sua incompreensão e… empolgação. Durante sete anos esperou por aquela oportunidade. Não permitiu que ela visse um sorriso imperceptível em seu rosto, abandonando os relatórios e momentaneamente suas tarefas.
— Deixe o esquadrão com você.
— Pode contar comigo, capitão!
— Ah, e, Matsumoto — Ela gelou quando o albino a flagrou pronta a buscar uma das suas bebidas na sua mesa, riu enquanto coçava nervosa seu pescoço— Obrigado.
O vento açoitava os pingos do céu contra as vestes do capitão, como chicotadas. A natureza conseguia ser um fenômeno estranho e incrível. Provavelmente, por essa razão Zanpakutous com elementos naturais se tornassem as mais imprevisíveis. Como o gelo, e até mesmo a água. Um elemento que pode sarar machucados, porém, pode tornar-se terrivelmente perigoso se estiver descontrolada, ou simplesmente furiosa.
Avistou o símbolo do primeiro esquadrão no cimo do edifício, o capitão suspirou fundo tentando conter a ansiedade, antes de encontrar o Comandante.
— Capitão Hitsugaya! Uma emergência!
Toushirou não voltou o olhar turquesa para o seu serviçal que corria desesperado com o shunpou, não escutou sequer as informações de um novo ataque e que necessitavam da sua presença imediatamente. Apenas fechou os olhos e retomou ao seu esquadrão, preparando tudo o que poderia ser necessário para a missão.
“Mais um dia, Kurosaki, em que falhei minha promessa.”
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.