LETÍCIA
Espreguicei-me na cama e notei que estava sozinha. Não me importei, afinal, sabia exatamente onde Fernando havia ido. Desde que descobrimos da minha gravidez ele se encarrega de todas as minhas refeições e insisti para que eu coma por dois. Hoje será a minha primeira consulta e posso garantir que está muito mais nervoso do que eu.
Levantei-me e segui em direção ao banheiro lavando o rosto para que eu me despertasse, em seguida fui até a cozinha onde Fernando me aguardava em frente à mesa cheia de coisas para o café da manhã.
- Quem você está esperando? O prédio inteiro? – Brinquei.
- Engraçadinha. – Disse forçando uma risada. Fernando se levantou e puxou a cadeira para mim. – Você sabe muito bem que precisa se alimentar bem.
- Sim, mas isso não significa que eu precise digerir a metade da comida do mundo. – Falei ajeitando-me.
- Você sabe que a sua alimentação não é lá essas coisas, eu só estou sendo um pai preocupado. – Respondeu dando um beijo em minha mão.
- Guarde essas preocupações para quando ele ou ela for um adolescente...
- Lety, por favor. – Pediu interrompendo-me e colocando o dedo em meus lábios. – Eu já estou cheio de fios brancos se você continuar falando essas coisas antes mesmo do bebê nascer o meu cabelo vai estar igual o do meu pai.
- Você tem razão, mas devo confessar que amo esses fios grisalhos. – Falei passando a mão em seus cabelos. – Acho bem sexy. – Sussurrei em seu ouvido. Fernando fechou os olhos e suspirou.
- Se tivéssemos tempo eu iria mostrar a você o que é sexy, mas já estamos bem em cima da hora. – Resmungou.
Começamos a tomar o nosso café da manhã e como previsto não conseguimos comer nem se quer a metade das coisas que Fernando havia comprado.
- Você sabe que dia é hoje? – Perguntou enquanto terminava de beber o suco.
- 3 de dezembro. – Respondi.
- E o que tem esse dia? – Encarei Fernando por um tempo, mas logo entendi o que ele queria dizer.
- Hoje é o tal fim do mundo. E nós nem conseguimos riscar todas as coisas da lista! – Brinquei.
- Exato!
- Você ainda acredita nisso?
- Eu nunca acreditei, eu só estava fazendo hora com a sua cara. – Implicou, fazendo com que eu revirasse os olhos impaciente. – Xavier me mandou uma mensagem. – Continuou.
- Sério? E o que diz?
Fernando pegou o seu celular e procurou pela mensagem, assim que a encontrou começou a ler em voz alta.
“Querido Fernando.
Hoje é o grande dia, ou melhor, o ultimo dia. Sei que você não acreditou em tudo que eu contei, mesmo após ter visto meus infalíveis cálculos, mas espero que pelo menos o meu relato tenha servido para que você aproveitasse melhor a sua vida, algo, que você achava que estava fazendo, quando na verdade você passou dois anos fugindo da sua própria felicidade, pelo medo de encara-la.
Na ultima vez que conversamos você me disse que havia reencontrado Letícia e que a diria tudo o que sente. Espero que você tenha feito isso e tenha se divertido ao lado dela nesses últimos dias. Agora basta torcer para que realmente exista um céu e para que você vá para ele, já que Letícia deve ter a passagem garantida por ter te aguentado por tanto tempo.
Eu chamaria vocês para tomarem uma cerveja, mas não temos tempo para isso.
Um grande abraço do seu amigo Xavier.”
- Ele é definitivamente louco!
- Sim. – Respondeu sorridente. – Mas ao mesmo tempo é uma das pessoas mais incríveis que eu já conheci. Podíamos visita-lo algum dia, eu preciso zoar com a cara dele.
- Claro! Seria ótimo. – Respondi animada. Levantando-me e levando os copos para pia em seguida.
- Deixa comigo. – Disse Fernando tomando-os de mim.
- Por favor, Fernando. Eu não estou doente se você já me trata como uma invalida no inicio da gravidez imagina quando a barriga começar a crescer?
- Eu não estou fazendo isso, só estou ajudando. Enquanto eu lavo os copos você pode ir tomando um banho para irmos à consulta.
O olhei desconfiada e ergui as sobrancelhas, mas acabei fazendo o que ele sugeriu.
Apesar de estarmos em cima da hora me dei ao luxo de tomar um banho demorado, o qual foi interrompido pelas batidas brutas de Fernando na porta, enquanto gritava que iríamos nos atrasar.
Assim que sai do banheiro o vi andando impaciente de um lado para o outro, estava de calça jeans e uma camisa branca. O admirei por um tempo, ele conseguia ficar ainda mais lindo quando estava nervoso.
- Pronta? – Perguntou impaciente.
- Sim! – Falei já sendo praticamente arrastada por ele para fora do apartamento.
Só depois de ter entrado no carro entendi toda aquela pressa de Fernando, ele estava andando a 10Km/h.
- Dá para ir mais devagar? – Perguntei de forma irônica.
- Por quê? Está muito rápido? – Questionou parecendo preocupado.
- Fernando, até uma criança dirigindo um triciclo conseguiria ultrapassar a gente.
- Me desculpe por me preocupar com a sua segurança e a do nosso bebê.
- Eu amo saber que você se preocupa, mas isso já é exagero!
- Talvez seja um pouco. – Sorriu triste. – Mas você me conhece Lety, eu sou neurótico, dramático, ciumento. Eu sou muito intenso em tudo o que eu sinto, não consigo ter esse autocontrole que você tem.
- Sim, eu sei que você é assim. E eu amo isso. E quer saber? Eu não me importo. Por mim você pode dirigir ainda mais devagar. Desde que chegamos a tempo é claro. – Fernando sorriu olhando-me rapidamente e depois voltou a sua atenção para o transito. Estávamos quase chegando.
- Posso te pedir uma coisa? – Perguntou.
- Claro. O que é?
- Podemos não perguntar sobre o sexo do bebê?
- Bom, eu acho que está muito cedo para ver de todo jeito.
- Sim, mas eu queria que fosse surpresa, que só descobríssemos quando o bebê nascer. Você se importa?
- Oh! – Exclamei surpresa. – Não, eu não me importo, vai ser um pouco mais complicado para comprar as coisas e pensar no nome, mas por mim tudo bem.
- Tem certeza? Porque se for importante para você saber antes eu não me importo.
- Sim eu tenho. – Respondi tocando o seu rosto. – Afinal o sexo é o de menos, o que eu realmente quero saber é se ele está saudável.
...
Chegamos em cima da hora, mas isso não importou muito porque ficamos na sala de espera por um longo tempo. Fernando já estava nervoso e reclamava a todo momento. A secretaria da médica sorria e dizia que seriamos atendidos em breve, mas a nossa vez parecia nunca chegar.
- Ah, por favor, essa mulher chegou bem depois da gente. – Xingou Fernando batendo as mãos na mesa da secretaria.
- Sim, mas o caso dela é de urgência. – Explicou.
- Urgência? Por acaso ela já esta parindo?
- Fernando, por favor! – Pedi tocando em seu braço e o conduzindo até as cadeiras. Enchi um copo de água e dei a ele. – Tenta ficar calmo, porque te ver estressado me estressa, e você não quer isso, certo? – Ameacei.
- É claro que não! – Respondeu rapidamente. – Desculpa Lety. – Pediu segurando as minhas mãos. - É só que... Isso tudo é tão novo para mim. Eu só quero fazer tudo certo.
- Você vai não se preocupe. Só tente não pensar muito nisso. Está bem?
Fernando apenas assentiu.
...
FERNANDO
Depois de mais de 48 horas finalmente fomos atendidos. Tentei disfarçar o meu mau humor quando entrei no consultório, mas era quase impossível.
- Desculpe pela demora. Mas é que quando um paciente se atrasa o resto do dia fica atrasado. – Explicou e eu não consegui evitar em revirar os meus olhos, mas fui repreendido por um beliscão de Letícia.
- Tudo bem, nós entendemos. – Disse ela me olhando de forma ameaçadora, como se certificasse que eu não diria alguma besteira. Para o seu alivio eu apenas concordei.
- Ótimo. – Sorriu. – Venha Letícia, pode se deitar ali.
Lety deitou na alta cama branca e eu me posicionei ao seu lado. Em menos de cinco minutos já víamos imagens no monitor.
- Ok, tudo parece ótimo. – Disse a médica concentrada na tela. – Este é o seu útero. – Explicou. Ajeitei-me para mais próximo de Lety, no intuito de acompanhar tudo. – E, bem aqui... Esta o bebê. – Falou aproximando o seu dedo da tela.
Olhei para o monitor e em seguida para a Lety que estava chorando.
- O que foi meu amor? – Perguntei.
- Eu não estou vendo nada! – Falou entre soluços. – São só borrões e sombras escuras. Oh, meu Deus eu vou ser uma mãe terrível eu nem se quer consigo reconhecer o meu próprio filho.
A minha vontade era de rir, mas vendo que ela falava serio eu me contive, assim como a médica que mordia os lábios prendendo o riso.
- Ok. – Falei abaixando-me próximo a ela. – Está vendo aquela coisinha bem ali. – Apontei. – Que parece um amendoim? – Letícia assentiu encarando a tela. – Aquele é o nosso bebê.
- Mas isso eu já tinha visto. – Falou secando as lagrimas. – Pensei que as imagens fossem mais claras.
- Depende do tipo de ultrassom. – Explicou a médica.
- Somos professores, lembra? Pagamos pelo ultrassom mais simples. – Falei o que fez Letícia sorrir.
- Realmente não parece um bebê. Mas se vocês dois estão dizendo que é eu não vou discutir.
- Essa parte eu tenho certeza que vocês irão gostar. – Disse a médica. Ela passava o aparelho na barriga de Lety enquanto se concentrava nas imagens da tela, alguns segundos depois começamos a ouvir um barulho.
- Isso é... – Comecei, mas fui interrompido por sua resposta.
- Sim, é o coração do bebê batendo. – Confirmou. Lety apertou a minha mão com força e naquele momento eu senti os meus olhos se embaçarem devido às lagrimas, eu estava ouvindo o coração do meu filho. E aquela era provavelmente a melhor melodia que eu havia escutado em toda a minha vida.
...
Não eram nem três da tarde e o tempo já havia escurecido, prevendo a formação de uma grande tempestade. Após ligar para todo mundo e contar do ultrassom – omitindo sua crise de choro por não encontrar o bebê. – Letícia se juntou a mim no sofá da sala para assistir televisão com uma travessa de pipoca em suas mãos.
- O que vamos assistir? – Perguntou.
- Daqui a pouco vai começar um filme de comédia nesse canal. – Falei, no momento estava passando jornal e após as noticias sobre política o assunto seguinte chamou a nossa atenção.
“Foi detectado algo vindo em direção a terra, ainda não se sabe o seu tamanho, os estragos que poderão ser causados por ele e muito menos o seu destino.”
Letícia se ajeitou no sofá e me olhou assustada. Eu estava da mesma forma.
“O governo pede que não entrarmos em pânico e que isso é provavelmente apenas um meteoro que perderá a força assim que se aproximar do nosso planeta, mas existe um homem que tem uma teoria diferente quanto a isso.”
Xavier apareceu na tela da televisão e eu rapidamente dei um pulo do sofá.
- É ele! – Falei para Letícia que também se levantou.
“Eu mandei cartas para a NASA, contei isso a todos os meus amigos, mas ninguém me levou a serio. O fim é hoje. E não há nada que possamos fazer, por isso aconselho você a passar suas ultimas horas ao lado das pessoas que ama.”.
- Você realmente acha que isso vai acontecer? – Perguntou Letícia assustada. Antes que eu respondesse ela voltou a falar. – Talvez zombamos o tempo todo dele ser louco, quando na verdade nós apenas não conseguíamos enxergar que isso era real. Fernando eu não posso morrer, nós não podemos morrer. Vamos ter um filho, começaremos uma vida juntos...
A puxei para um beijo apaixonado, pois foi a primeira forma que encontrei para fazer com que ela se calasse.
- Vai ficar tudo bem, ok? O mundo não esta acabando. Essas coisas caem na terra todo ano. O máximo que deve causar é um terremoto. Ficaremos bem. Eu prometo. – Falei abraçando-a.
- Vamos viver muito não é? Vamos ver esse bebê crescer.
- Mais do que isso, vamos ver nossos netos e bisnetos também. – Letícia sorriu e me apertou contra o seu corpo, sua respiração começava a ficar calma novamente até que o apartamento todo escureceu.
- O QUE FOI ISSO? – Gritou Letícia. Antes que eu respondesse ouvimos um estouro. – AHHH. – Gritou novamente apertando a minha blusa. – Eu estou com medo Fernando. – Sussurrou.
- Calma, foi só a energia que acabou por causa da chuva. – Falei tranquilizando-a enquanto acariciava as suas costas.
- Eu só quero que esse dia acabe logo para termos certeza de que teremos um amanha.
Segurei em seu queixo e sorri fazendo com que ela me olhasse.
- Nada vai acontecer, ok? E eu acho que poderíamos aproveitar esse escuro para fazer outras coisas. O que acha? – Perguntei erguendo as sobrancelhas.
- Eu acho que essa é uma ideia de gênio. – Respondeu. Sorri pegando-a no colo e a conduzindo com cuidado até o seu quarto.
...
- Você viu? Já são onze da noite e o mundo ainda não acabou. – Falei enquanto brincava com seu cabelo. Estávamos deitados em sua cama após horas de sono profundo.
- Não comemore, muita coisa pode acontecer em uma hora. – Disse enquanto acariciava o meu peito.
- Tem razão. – Respondi beijando o topo da sua cabeça. – Esta com fome?
- Sim, mas eu não quero que você saia da cama. – Resmungou Letícia com a voz manhosa.
- Mas não temos ninguém para trazer nada para a gente, então a única solução é que eu me levante.
- Ok, promete que não demora?
- Prometo! Enquanto isso você pode ir tomando um banho, ok?
Ela assentiu. Levantei-me da cama e coloquei uma calça de moletom seguindo para a cozinha. Quando cheguei lá uma preguiça tomou conta de mim e decidi que ligaria para pedir comida. Encontrei um lugar que levaria o nosso jantar em menos de trinta minutos.
Assim que entrei no quarto vi Letícia saindo do banheiro enquanto penteava o cabelo.
- Já terminou?
- Na verdade, eu preferi pedir a fazer. – Falei sentando-me na pontinha da cama.
- Que namorado preguiçoso eu tenho.
- Mas eu pedi a sua pizza preferida. – Segurei a mão de Letícia e fiz com que ela se sentasse em meu colo.
- Então hoje estamos autorizados a comer pizza?
- Sim, mas não se acostume, porque a partir de amanhã voltaremos à dieta saudável. – Avisei. Letícia revirou os olhos, mas assentiu.
A pizza chegou na hora esperada e a devoramos enquanto assistíamos à televisão. A energia já tinha voltado há um bom tempo e as nuvens desapareceram dando espaço a um céu estrelado onde o único vestígio de chuva eram as ruas ainda molhadas.
Letícia pegou o seu celular e sorriu ao encarar a tela.
- É uma da manhã, nós sobrevivemos ao fim do mundo! – Falou animada.
- Definitivamente sim! – Respondi enquanto admirava o seu sorriso. Eu tinha sorte, muita sorte, e jamais permitiria que isso escapasse novamente.
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