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História Garota que vive no passado - Haja hoje para tanto ontem


Escrita por: raquelbiondi

Notas do Autor


Em dedicatória ao garoto que sempre estará no futuro.

Capítulo 1 - Haja hoje para tanto ontem


“O passado não reconhece o seu lugar, está sempre presente”, dizia Mário Quintana. 

O passado é contrastado com o presente. Está relacionado com um aglomerado de eventos que aconteceram num certo ponto do tempo, dentro do contínuo do espaço-tempo. A concepção acima descrita está relacionada com a teoria da relatividade de Albert Einstein. O passado é o objeto de vários campos como, por exemplo, a história, arqueologia, cronologia, geologia (geologia histórica), linguística histórica, direito, paleontologia e cosmologia. 

Os humanos gravaram o passado desde tempos longínquos e uma das características dos seres humanos é que eles conseguem gravar o passado, recordá-lo, mencioná-lo e confrontá-lo com o estado atual das coisas. Essa é a parte em que entro. 

Os anos de colégio, velhos amigos que não se falam mais, a saudade da simplicidade das coisas, essas são umas das coisas que me encarrego de o lembrar desde então. Uma das minhas maiores características é o extremo detalhismo que dou para tudo — definido como: cuidado ou preocupação exagerada com os detalhes ou minúcias. —, consigo descrever quase tudo, lembrar de coisas que sei que não se lembra sobre o passado. Isso é o que me torna diferente de você, o que sempre me tornou diferente. 

Duvido que saiba qual é o maior defeito de uma pessoa que se preocupa com detalhes, mas o direi, chama-se: desatenção. Enquanto estou prestando atenção em coisas pequenas, e aparentemente sem importância, estou perdendo milhares de outros acontecimentos. Para observar algo com destreza é preciso se desligar do resto ao seu redor. Isso me enlouquece completamente, olhe, perder tantos detalhes, eu poderia me lembrar de muitas outras coisas se não tivesse me perdido em pensamentos enquanto olhava para coisas sem importância. 

Uma semelhança entre nós dois: os óculos de grau. Se ainda não te disseram, com certeza irão dizer, eu nunca reconheço ninguém que esteja há mais de vinte metros de onde estou, talvez a culpa seja dos graus de astigmatismo em meus olhos, mas não os culpo, sou distraída por conta de outros motivos, talvez motivados pela deficiência em minha visão, mas sempre estou olhando para os meus pés ou procurando pintas novas em minhas mãos, talvez eu esteja olhando para o meu reflexo em alguma coisa que o reflita ou olhando um casal passar do outro lado da rua. Vai perceber que sempre estarei olhando para todas as coisas, menos para as que deveria olhar. 

Reclamei de muitas coisas durante todos esses anos, mas nunca dos meus óculos. Astigmatismo é um defeito óptico resultando de uma curvatura desigual da córnea, uma aberração geométrica de um sistema óptico de tal modo que a imagem de um ponto é igual a dois pequenos segmentos de reta perpendiculares que se formam a distâncias diferentes do sistema. Reclamar (Ah, reclamar, alguns dos sinônimos dessa palavra são: lamentar-se, lamuriar-se, criticar, opor-se, entre tantos outros); imagino você pensando “Ela finalmente vai começar a reclamar, estava demorando”, e eu digo “Sim, você já devia ter se acostumado” e dou aquela risada que sempre o fará repudiar, dizendo: “Você deve rir para fora, não para dentro”. No entanto, não pretendo reclamar nessa escrita, não depois de tantos anos o fazendo ouvir e ler minhas tristezas e decepções. 

Agora é o momento que chegamos ao ápice de meu despejo. Sou a pessoa que apesar de tudo ter acabado, que apesar dos anos terem passado, mesmo com pessoas novas chegando e momentos não deixando de passarem e apagarem pouco a pouco suas lembranças, eu sou a pessoa que será sempre o seu passado. Você não deve me olhar e me ver mais como uma de suas grandes amigas, muito menos deve pensar em me procurar para contar seus segredos ou coisas engraçadas, esse tempo já passou; estudamos durante oito anos na mesma sala, e não há um momento que você se lembre e possa dizer “Ela era minha amiga desde aquela época”, tudo porque nunca estive em seus grandes momentos, não estive presente em seus grandes triunfos, apenas o observei crescer e amadurecer enquanto coletava pequenos momentos nossos e os guardava com extremo carinho em minha memória. Esse é o meu papel agora, lembrá-lo que estive ao seu lado o tempo todo, mas não lembro de nada que possa dizer que estive lá. A verdade é que você esteve presente em minhas lembranças, você sempre estava em alguma delas, não efetivamente, mas sempre por perto. Minha cabeça me fez pensar durante tantos anos que éramos grandes amigos desde a primeira série, quando na verdade éramos apenas conhecidos que riam juntos em poucos momentos. Você  sempre foi amigo de todos os meus amigos, por isso sempre esteve presente, mas nem por isso deve se lembrar que estive ao seu lado naquela época. Afinal, eu sou a detalhista. 

“Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito.”, bem dizia Machado de Assis.  

No final da oitava série, no dia da formatura estávamos todos na mesma mesa conversando, lembro que estive gravando pequenos vídeos nossos durante a comemoração. Você nunca deve ter se tocado disso, mas sempre estou tirando fotografias ou gravando os momentos, não de mim, mas sim de todas as coisas e pessoas próximas, pois não posso deixar que eles sejam levados para o esquecimento. Vivo no meu passado, sou o meu passado sempre preso no presente, perdendo todos os momentos que, obviamente, reclamarei no futuro.  

Depois que o fundamental acabou, todas as suas conversas comigo foram sobre ele. Remoendo sempre os mesmos momentos e tentando rir deles todas as vezes que os contamos um ao outro. Como você diz: “Você sempre está com um pé lá, para me fazer recordar as origens”. Não posso deixá-lo esquecer, sou a garota que sempre o lembrará de quantos anos nos conhecemos, de quantos momentos passamos juntos, do quanto estive presente na sua vida em determinada época dela, tudo porque o tempo está passando e me deixando para trás. Se não for eu, quem irá lembrá-lo de tudo aquilo? Aqueles anos foram os piores da minha vida, foram os que me fizeram ser isso que sou agora, mas não os consigo deixar partir.  

Não posso.  

Não faço mais parte de suas lembranças atuais, nos vemos pouquíssimas vezes durante o ano, você encontrará novas pessoas por qualquer lugar que for, terá novas amizades com quem irá compartilhar momentos novos todos os dias. Nós estamos nos tornando adultos, nosso tempo está se esgotando e toda a nossa vida está sendo regrada por rotinas e agendas. Sei que iremos nos ver cada vez menos, até que eu me torne seu passado de uma vez por todas. 

A palavra presente deriva do termo em latim praesentia, que significa alguma coisa que está perto, ao alcance de alguém. Sou apenas uma chama que teima em se apagar, uma pequena chama que tenta reviver o seu passado, tudo porque quero estar presente no seu futuro. 

Não devo. 

O meu maior medo não seria o escuro, como você deve pensar, mas sim esquecer tudo. Acordar e não se lembrar de absolutamente nada. Esquecer como você falava sobre as coisas, sobre como me repreendia, de como achava o meu humor barato, esquecer todos os seus conselhos, esquecer que você é uma das peças que formavam o meu passado. 

Pode notar que sou a que o chama para conversar quase toda semana, era a que ia quase todos os sábados em sua casa, mas não posso mais ser. As nossas conversas que perduravam durante as madrugadas, agora não passam de pequenas horas durante alguns dias esparsos. Irá chegar uma época em que você cansará de ouvir sobre o passado. Eu sou o passado. 

Ninguém pode estar ao mesmo tempo no presente e no passado, não podemos ser eternamente meninos, adolescentes tardios, filhos que se sentem culpados ou rancorosos com os pais, amantes que revivem noite e dia uma ligação com quem já foi embora e não tem a menor intenção de voltar. Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. 

Fomos grandiosos amigos em dois mil e quatorze. Três anos se passaram e ainda vivo em dois mil e treze, presa nas correntes de minhas lembranças, temendo perdê-los. Tão tarde percebi que os perderei de qualquer modo, talvez o cansaço os tire de mim, talvez o desgosto ou a vida adulta. 

Você corrige os defeitos do presente, eu reluto em querer arrumar os defeitos do meu pretérito. Dá para saber quem irá viver mais tempo facilmente. 

Nunca imaginei-me passando dos trinta anos. 

Tentei mostrar-lhe um pouco do mundo que criei em minha cabeça, do mundo onde éramos amigos pela eternidade, mas como chamaria isso? Costumo chamar de saudade do que poderia ter sido. Saudade que é um sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas. 

Chegamos agora ao encerramento de minha escrita, onde finalmente acordei. Percebi que não fazia mais parte do seu presente quando fui em sua casa durante uma noite, eu costumava fazer isso inúmeras vezes, mas dessa vez não consegui. Não tinha forças para o chamar para fora, não tínhamos mais a intimidade e a confiança de anos atrás, minha visita não seria considerada algo normal. Foi naquela noite que tudo o que disse-me fez sentido. Como poderia o passado vir bater em sua porta e gritar por seu nome tão tarde da noite? Foi um tapa doloroso, mas que despertou-me para realidade. 

Você nunca disse que me amava, entendo claramente o porque, acredite, agora consigo entender. 

Quando ouvir falar o meu nome, lembrará das suas origens, espero que suas lembranças sejam boas, pois tentei guardar pequenos momentos em sua memória. Não espero que me carregue para todo o sempre como o fardo que sou. Espero que me ligue quando se formar na faculdade e queira falar comigo sobre seu presente. Espero que me ligue quando for se casar ou quando seu primogênito nascer. Espero que não se esqueça de mim, pois do contrário toda a minha luta em permanecer viva  terá sido em vão. 

 

 

Em consideração aos dez anos que apenas são dez grandes anos no meu ponto de vista. 

 

 

Cartas ao garoto que vive no futuro, 

Garota que vive no passado. 


Notas Finais


“A razão pela qual algumas pessoas acham tão difícil serem felizes é porque estão sempre a julgar o passado melhor do que foi, o presente pior do que é e o futuro melhor do que será.” — Marcel Pagnol


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