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História Green eyes - Fugere urbem


Escrita por: Serendipit29

Capítulo 47 - Fugere urbem


Fanfic / Fanfiction Green eyes - Fugere urbem

LAURA’S POV

A procura pela palavra que resumiria meu estado seria vã e, honestamente, uma definição era a última de minhas preocupações. Outra vez meu mundo se mostrou frágil, desmoronando feito um castelo de areia e, novamente, eu não tinha habilidade para lidar com aquele desmanche.

Não encontrei um filete de resiliência e o imaginado equilíbrio que eu havia construído, agora, parecia uma ilusão. Tudo pareceu fragilmente construído, inescapável da ruína que se tratava de uma questão de tempo. No entanto, eu era a única a ter acreditado num faz de conta.

A verdade, descoberta por acaso, latejava dentro de mim, forçando todos os meus limites, como se eu já não fosse suficiente para conter sua repercussão. Taylor havia mentido para mim. A Taylor com a qual passei a me importar, para a qual abri espaço em minha nova realidade... A Taylor que parecia tão de verdade, apesar da sombra de um enigma, revelou-se uma farsa. Como ela pôde? Por que havia feito aquilo? Essas perguntas me corroíam. 

Então este era o mistério que ela escondia: não fomos apenas amigas. Taylor e eu fomos um casal, mas a ideia soava inconcebível naquele momento. Estranhamente, a revelação fez tudo se encaixar e também se romper. Desfez-se o encanto e agora era compreensível o empenho dela em estar sempre por perto, o que a fez ser tão solícita para comigo.

A raiva ainda transbordava quando cheguei em casa, mas não era suficiente. Eu precisava descontar a ira em gestos, como se apenas o tato fosse capaz de aplacá-la. Arremessei o que pude contra as paredes e o chão, sabendo que nem mesmo todos os itens do apartamento destruídos superariam meu estado interior.

Eu não estava apenas aos cacos, eu estava vazia. O buraco da memória, ao qual eu tanto tentei me acostumar, naquela noite cresceu a ponto de me engolir. Era como ter sofrido um assalto: abrupto, violento e que havia me expropriado de meus bens mais valiosos.

Roubada pela vida, roubada por Taylor. A revelação daquela mentira foi a pior forma de cutucar uma ferida que obviamente não estaria cicatrizada. O agora era uma dor vertida em lágrimas. Caída no chão, rendida e encolhida, eu chorava com minhas últimas forças, sentindo-me frágil, injustiçada e violada.

Desejei profundamente que o esquecimento surgisse como alternativa e não imposição. Escolheria esquecer aquela noite, esquecer meu próprio esquecimento. Mas por que doía tanto? Esse algo, que eu nem sabia por qual nome chamá-lo, intangível, indefinível e invisível.

Doía apenas a mentira e a decepção para com alguém no qual eu havia confiado, ou também me afligia a incapacidade de recordar um mínimo momento de afeto?  O que teria feito Taylor me amar e vice versa? Como seria amá-la e deixar-me ser amada por ela? Mas aquela farsa... O fingimento dela me despertava ojeriza a qualquer tentativa de imaginar o passado.

Se realmente namoramos, seria difícil ter mantido a história apenas entre nós duas, embora fosse óbvio que a impressa não teve conhecimento do caso. Natasha a aconselhou a me contar logo a verdade, então quem mais estaria acobertando aquela mentira? Jodi – o nome surgiu em meus lábios com amargor – é claro que ela também sabia! Seria impossível esconder um relacionamento de minha melhor amiga e agente. 

Mais uma decepção, porém essa conseguia ser mais incômoda.  Jodi, a “minha Jodi”, minha melhor amiga, alguém que me conhecia há anos e em quem eu confiava plenamente... Cúmplice de uma mentira horrorosa.

Cravei as unhas na raiz dos cabelos como se quisesse alcançar meu cérebro. Queria arrancar meus pensamentos e emoções, mas eles pareciam inescapáveis. A sensação sem nome percorria cada parte do meu corpo e era insuportável estar em mim.

O cansaço avançou lentamente sem encontrar obstáculos. O sono seria um método paliativo para aplacar o caos que eu reencontraria ao amanhecer.

 

 

XXXX

 

 

 

 

Dois dias depois...

 

A agitação de Nova York era incompatível com minhas atuais necessidades. A mente acelerada, confusa e barulhenta, suscetível à influência do meio, precisava de tranquilidade. Os questionamentos e angústias eram uma bagagem inseparável, então, já que a fuga era impossível, decidi me retirar.

A familiaridade de Watchung foi uma alternativa, no entanto, eu precisava urgentemente ficar sozinha e desejava fazer isso num local desconhecido. Meu corpo clamava por natureza, ar puro, canto de pássaros, vento na relva, cheiro de mato.

Resignada a comunicar minha decisão a Jodi, orientei que ela cancelasse eventuais compromissos agendados e informei que faria uma viagem, ainda sem data precisa para retornar. Evitei me alongar na conversa e admitir o motivo de meu afastamento. Eu ainda não tinha disposição para indagá-la sobre sua cumplicidade com Taylor.

Certa de que teria minha privacidade assegurada, parti para um rancho em Montana. Paws Up oferecia contato com a beleza natural em meio a instalações de elegância rústica e conforto. Com opções de atividades de pesca, equestres, fora o SPA e a renomada gastronomia, a propriedade, rodeada por florestas, ficava próxima ao Rio Blackfoot. Seus 37 mil hectares prometiam uma imagem perfeita aninhada sob o maior céu que seus hóspedes poderiam ver. 

Logo na chegada comprovei que todas as informações do site eram condizentes com a infraestrutura e beleza do rancho. Devidamente instalada, pedi uma pequena refeição na “Meadow Home” em que me hospedei. Apesar do luxo e conforto, ela era espaçosa demais para uma pessoa, no entanto, não havia uma acomodação de menor porte.

Então, lá estava eu numa área 1.300 metros quadrados, com dois quartos enormes, dois banheiros completos, uma lavanderia, uma cozinha totalmente equipada, incluindo geladeira, microondas e máquina de lavar louça. Uma televisão de 70” que provavelmente não seria usada e uma banheira quente, localizada no deck, com capacidade para quatro pessoas, na qual eu certamente passaria muito tempo.  

Meu lado curioso queria conhecer cada parte do rancho, a fim de aproveitar ao máximo minha estadia. O centro equestre era minha prioridade. Não fosse o cansaço, eu já estaria passeando por lá. Meu sono nos últimos dias havia sido conturbado e escasso, sentia-me exausta, física e emocionalmente. Contendo o entusiasmo quanto aos cavalos, deitei-me com a esperança de um sono revigorante, o qual felizmente veio ao meu encontro.

Despreocupada com horário, despertei quando a lua já estava alta no céu. Naquela noite aconteceria um churrasco na área central do rancho, aberto a todos os hóspedes. Após uma ducha rápida, recusei-me a vestir qualquer peça que não fosse um conjunto leve de moletom.

Ao sair do chalé, deparei-me com o que eles, com toda razão, chamavam de o “maior céu”. Com um encantamento quase infantil flagrei-me espantanda pela quantidade de estrelas e seu brilho, parecendo uma pintura. O frescor da noite de verão parecia capaz de me revigorar e, esquecendo um pouco a fome, caminhei vagarosamente, despreocupada em me perder.

O evento organizado ao redor de uma grande fogueira ofereceu uma estimativa da quantidade de hóspedes que estavam ali. Embora o número fosse considerável, Paws Up ainda não estava operando em sua capacidade máxima.

Tive algumas conversas rápidas com os chefes responsáveis pelo banquete enquanto procurava opções de pratos vegetarianos. Soube que em algumas noites os hóspedes poderiam interagir com eles, auxiliando no preparo de refeições. Fiz uma pequena nota mental sobre a informação, quem sabe eu tentaria.

Desfrutei de meu pequeno prato sem ser importunada por ninguém. Eu parecia carregar um letreiro com “não incomode” na testa ou talvez os convivas só fossem discretos demais. De qualquer forma, ter minha privacidade plenamente respeitada era um presente.

Decidi não me prolongar ali e retornar ao chalé. No caminho, passei pelo estábulo, encontrando uma placa com informações quanto às atividades e seus respectivos horários. No dia seguinte, a parte da manhã seria dividida entre aulas de equitação para iniciantes e passeio para o púlbico infantil, enquanto o turno da tarde estava em branco.

Cogitei procurar informações adicionais em algum ramal telefônico, mas não foi preciso. Um funcionário acabara de aparecer e se prontificou a me orientar.

– Boa noite, senhora – saudou-me o rapaz com trajes de cowboy e barba estilo lenhador.

– Laura – apresentei-me e lhe estendi a mão. – Boa noite... – foi minha deixa para que ele se apresentasse.

– Dustin Call – respondeu com firmeza ao aperto de mão, sem desviar os olhos de mim –  gerente dos cavalos.

– Gerente dos cavalos – repeti, achando o termo engraçado – é assim que vocês chamam por aqui?

– A direção preferiu isso a “vaqueiro-chefe” – brincou, como se o nome do cargo não fosse culpa sua e sorrimos juntos. – Em que posso ajudá-la?

– Eu gostaria de saber quais seriam as opções de agendamento para amanhã à tarde. Pelo que consta aqui – apontei a placa – não há nenhuma atividade.

 – Bem, as atividades equestres mais procuradas são as aulas e as trilhas. Como amanhã não há nenhum passeio agendado, nós deixamos o turno da tarde em branco, caso alguém queira marcar alguma aula extra ou, quem sabe, se aventurar pastoreando o gado.

– Isso não parece muito aventureiro.

– Diga isso aos adultos que não são habituados a lidar com bovinos. Eles parecem crianças gritando com as vacas ­– riu abertamente, depois tentou se conter, como se estivesse caçoando indevidamente.

Não soube dizer se era bom humor, ou apenas um jeito de rir contagiante, mas o fato era que eu acabava me rendendo às suas pequenas brincadeiras.

 – Eu quero participar.

 – E a moça da cidade grande sabe montar a cavalo? – provocou.

– Dustin, Dustin... não me subestime, cowboy.

 – Está certo, Laura – estendeu-me a mão para um novo cumprimento. – Amanhã, às quatro.

 – Combinado, senhor gerente dos cavalos – correspondi ao aperto de mãos.

De volta ao chalé, aproveitei para agendar algumas atividades no SPA, incluindo uma aula de Yoga. Completamente sem sono, preparei uma caneca de chá e me acomodei sobre uma das espreguiçadeiras do deck, enrolada em uma coberta. A temperatura estava agradável, então eu poderia ficar completamente entretida admirando o céu noturno de Montana. 

Dispensei os fones de ouvido e qualquer playlist dos aparelhos eletrônicos. Concentrei-me no farfalhar das folhas, o cricrilar dos grilos, alternando ao som da minha própria respiração.  Eu precisava daquela demorada pausa, de pequenos e convidativos exercícios de mindfulness para desviar parcialmente os pensamentos do que havia ocorrido.

Acabei adormecendo e os primeiros raios de sol me despertaram. Isenta de picadas de inseto graças ao repelente, a dor nas costas, no entanto, foi inescapável. Os exercícios de yoga e a massagem no SPA foram providenciais, fora isso, a hidromassagem e o relaxante muscular se encarregaram de aliviar a coluna e também toda a tensão recentemente acumulada nos ombros.

Faltando meia hora para as quatro da tarde eu me apresentei no estábulo, devidamente trajada.

– Você é pior que os britânicos. – Dustin brincou assim que me viu.

– Eu estava ansiosa para conhecer os cavalos – admiti, feliz por estar realmente animada com alguma coisa.

– Pois bem, deixe-me apresentá-la a eles.

Dustin me mostrou todos os cavalos de Paws Up, sem exceção, fornecendo nome e informações sobre suas raças. O gerente dos cavalos não escondeu sua surpresa com a naturalidade com que eu interagia com os equinos.

– Nada mal para uma moça da cidade – provocou.

Dustin continuou me explicando sobre a variedade de raças quando um cavalo de pelagem marrom escura, quase negra, se aproximou para me farejar. Eu estava de costas para ele, que, inexplicavelmente, posicionou sua cabeça sobre meu ombro, como se fosse se recostar sobre mim para receber carinho.

– Olá, garotão.

– Acho que o Bruce gostou de você.

– O nome dele não tem nada a ver com o Batman, tem?

– Eu não batizo os cavalos – deu de ombros, como se não pudesse responder a perguntar.

– Pode ser ­– assenti. – Posso cavalgar com você? – solicitei ao cavalo, como se ele realmente pudesse me responder.

– Ele escolheu você, Laura. – Dustin afirmou. – Bruce é um Morgan.

– Ok. Além da estatura média, a força, o fácil trato devido à inteligência da raça e a adaptabilidade a qualquer clima e atividade – conforme o próprio cowboy havia me informado anteriormente – o que significa ser um Morgan?

– Essa é uma das raças mais antigas dos Estados Unidos. Os Morgans diferem dos outros cavalos não só pela aparência, mas também pela excelente visão. Por consequência, são mais corajosos e pacientes. Eles têm um temperamento ótimo e são muito leais – explicou enquanto acariciava o animal. – Para um Morgan, o homem nunca é um predador, mas sim um mestre, um companheiro. É comum que ao avistar seu dono ele se separe do resto do bando e vá em sua direção, por esse motivo a crença de que é o cavalo quem o escolhe e não o contrário.

Minha vontade foi de abraçar o cavalo como se ele fosse um bichinho de pelúcia naquele momento, mas me contive. Quando Bruce e a égua escolhida por Dustin, uma Paitin horse, estavam devidamente selados, cavalgamos até o pasto.

– Então, senhor vaqueiro-chefe, – chamei sua atenção – como você veio parar aqui?

– Eu monto desde os quatro anos de idade. Cresci fazendo isso na casa dos meus pais na Carolina do Norte. Eu não imaginava trabalhar com cavalos quando era criança, na verdade, eu cogitei ser arquiteto, depois arqueólogo, até ator... – riu de si mesmo – Arrumei um emprego de verão ainda na faculdade e acabei me apaixonando pelo “cowboy way of life” do oeste. Descobri que queria ser um cavaleiro profissional e dedicar a vida ao cuidado e adestramento de equinos, além de ensinar isso a outras pessoas. Muita gente não deve entender e achar até bobo, mas eu amo ajudar a estabelecer uma conexão entre o cavalo e quem está sobre a sela.

– Então você não é um autêntico cowboy do oeste? – fingi frustração.

– De tudo o que eu disse essa foi a única parte em que você prestou atenção? – devolveu.

– Não, mas não poderia deixar a oportunidade passar – caçoei. – A propósito, poderíamos ter sido colegas de profissão.

– Arqueóloga?

Talvez o esperado fosse que eu me sentisse frustrada por ele ignorar totalmente qual era a minha profissão, mas, na verdade, aquilo fez com que eu me sentisse confortável. Não estava sendo tratada como Laura Prepon, a atriz, o novo “ícone lésbico” graças à repercussão de Alex Vause.

– Não, Dustin, eu sou atriz – acabei admitindo, como quem se despedia do que a falta de conhecimento dele havia me proporcionado.

No entanto, nenhuma pergunta quanto à fama se seguiu. Absolutamente nada que envolvesse minha carreira.

– Soa irônico um sujeito que cogitou ser ator dedicar tão pouco tempo à TV? – foi sua única colocação quando nos aproximamos do pasto.

As informações que encontrei na Internet diziam que Montana era um lugar raro, onde era possível reduzir o ritmo e desfrutar a grandiosidade da natureza. Um dos apelidos do estado era “The Big Sky Country” (Os campos dos grandes céus). Porém, havia uma diferença considerável entre ler isso ou visitar uma galeria de imagens e realmente vivenciar a experiência de estar em uma de suas extensas e verdejantes planícies. O tal modo de vida que conquistou o cavaleiro da Carolina do Norte surgiu representado numa tela em tons de verde e azul.

– Acho que a televisão não tem feito falta, cowboy – pensei em voz alta.

Dustin me ensinou a tática do pastoreio e elogiou minha habilidade como amazona. Minha relação com os cavalos era antiga, embora New Jersey não fosse um estado de grandes áreas planas, tampouco caracterizado pela prática de equitação. O fato era que minha paixão por eles precedia qualquer justificativa racional e entendimento sobre a simbologia que os revestia.

Além de meio de transporte terreno, desde tempos remotos, os cavalos eram considerados responsáveis pela passagem das almas para o mundo dos mortos. Eles seriam filhos da noite e do mistério, ligados ao fogo e à água. Durante o dia, o cavaleiro enxerga e guia seu cavalo, mas à noite, o cavaleiro, cego, é guiado por ele em meio à escuridão. Os dois estão intimamente unidos, porém, se ambos brigarem pelo controle, o equilíbrio se rompe.

A tarde já estava caindo quando terminamos, mas Dustin atendeu ao meu pedido para que cavalgássemos mais um pouco. Seguimos lado a lado, em completo silêncio. Dustin parecia perdido em seus próprios pensamentos, distraído. De canto de olho o observei com mais atenção que na noite anterior.

As abundantes marcas de expressão provavelmente o faziam parecer mais velho. Os olhos eram clarividentes e de tom castanho claro, como os cabelos e a própria barba. Dustin exalava simplicidade, o que erroneamente poderia fazê-lo soar simplório, e ainda que o cowboy não fosse desprovido de complexidade, ingrediente, a meu ver, comum a todo ser humano, seu jeito simples significava espontaneidade, franqueza, ausência de pretensões e pompa desnecessárias.  

A brisa fresca orquestrava a relva oscilante. As mexas negras que não estavam presas pelo chapéu também balançavam pela ação do vento e pelos passos de Bruce. O sutil balanço amortecia a mente, antes, agitada. Dúvidas, mágoas... Paws Up vinha esvaziando-as.

Meus sentidos estavam apurados para absorver os estímulos do ambiente. O sol, já fraco, se punha ao longe; o cheiro da terra, misturado ao do mato, parecia mais pronunciado. Como se não houvesse uma sela entre nós, o cavalo e eu parecíamos um só corpo. O extenso verde planificado contrastava com alguns morros pouco acidentados no horizonte. Acima deles convergia uma adensada aquarela de tons azuis, junto a delicados raios solares decompostos em rosa - alaranjado. Uma revoada deu mais vida ao entardecer, despertando uma vontade pungente de acompanhar aqueles pássaros.

– Acho que o “cavalo-morcego” quer se exercitar... – Dustin sugeriu, removendo-me de um transe e fazendo Bruce relinchar.

– Ele não gostou do apelido – acariciei seu pelo como se o dissesse que estava tudo bem e que eu também achara o apelido péssimo.

– Enfim, desconfio que vocês estejam doidos pra sair correndo por aí. Desde que você se responsabilize por uma eventual queda, eu não pretendo impedir os dois.

Dustin fez sua colocação com naturalidade. No fundo, aquela não era uma autorização, era um discreto estímulo. Por Deus, como eu sentia falta da sensação de frio na barriga, de agir conforme minha vontade própria sem ouvir mil recomendações, afinal, aquilo também era parte de estar viva.

Bruce e eu éramos uma só expectativa, um só desejo de galopar, mas o Morgan era educado demais para avançar sem meu consentimento expresso. Ao mínimo comando ele ganharia velocidade. Contive aquela ansiedade por mais um instante, de certa forma, era saboroso senti-la.

Finalmente autorizei sua partida e no equilíbrio único entre cavalo e cavaleiro, feito crianças, brincamos de cortar o vento. Conforme a velocidade crescia, mais viva eu me sentia por dentro, como se já estivesse a ponto de transbordar. Era como estar no ar, em contato com um eu primitivo em sua melhor forma. A impressão de um vínculo e comunhão com o todo; uma mistura de sonho, memória e imaginação à realidade. Um momento no qual me senti tocada pelo fascínio de um mundo imenso e desconhecido, do qual eu só conseguiria extrair incompletas percepções.

Eu sabia que aquela sensação seria efêmera e seu impacto residia justamente em sua natureza, feita para não durar. No entanto, aquele pequeno instante de hierofania, a manifestação reveladora de algo sagrado, abasteceu-me de gratidão e de boas razões para existir.

O cair da noite nos obrigou a retornar à sede do rancho. Felizmente, uma agradável sensação de paz continuava circulando dentro de mim. Eu nem sequer precisei agradecer ou admitir que Dustin estava certo sobre seu palpite. Entendemo-nos apenas pelo sorriso trocado antes da despedida.

Após um demorado banho e uma refeição mais substancial feita no chalé, dormi pesadamente, decidida a dedicar algumas horas, nos próximos dias, ao cavalo que com tanta sensibilidade, intuição e sabedoria havia me escolhido.   

Os dias passaram na velocidade certa para que eu pudesse aproveitar ao máximo tudo o que Paws Up tinha de melhor para oferecer, sem abrir mão dos passeios diários com Bruce, por vezes na companhia de Dustin.

Agendei minha passagem para o domingo, partindo do aeroporto internacional de Missoula, o qual ficava a cerca de 40 minutos do resort, para o de Newark, próximo a Watchung.  Decidi que antes do inevitável retorno a Nova York faria uma visita à família, ainda sem estimativa de quanto tempo ficaria por lá. Após o necessário período sozinha, comecei a sentir saudade da velha casa, de Brad e minhas irmãs, mas, acima de tudo, do colo de dona Marjorie Prepon.

O sábado, meu último dia de hospedagem, havia começado cedo. Como os fins de semana eram mais movimentados, a oferta de atividades se diversificava. Pela manhã teria uma trilha a cavalo e, obviamente, eu iria participar. Quis aproveitar a oportunidade ao máximo para me despedir das belezas de Montana e de meu fiel companheiro de quatro patas.

Ao fim do passeio, enquanto todos foram embora, permaneci no estábulo, conversando com Bruce, o qual parecia me entender perfeitamente tendo em vista a forma como interagia comigo. Eu ainda não queria me separar dele, então decidi escovar seu pelo.

– Quer se candidatar a uma vaga? – Dustin provocou, assustando-me.

– Eu vou sentir falta daqui e dele – acariciei o cavalo.

– Nós também – acrescentou sinceramente. – Então você gostou de Montana?

– Se gostei? Eu amei! Pretendo voltar mais vezes e conhecer melhor as redondezas, afinal eu só fiquei no resort.

– Ainda dá tempo... – sugeriu.

– Honestamente, sozinha é um pouco desanimador – confessei.

– Isso é um convite indireto? – ele brincou, deixando-me vermelha, afinal, aquela não havia sido a intenção do meu comentário. – Porque eu não poderia convidá-la para sair – aproximou-se, como se fosse me contar um segredo. – É contra as regras.

– Sério?

– Regra de Paws Up. No geral, é fácil cumpri-la. Os hóspedes tendem a ser mais fechados e a interagir o mínimo necessário com funcionários como o gerente de cavalos – afirmou em tom divertido, como se não ligasse a mínima para aquilo. – Não é todo dia que recebemos alguém tão apaixonado por cavalos como você.

– Então, numa situação hipotética, o que faríamos caso você me convidasse para sair?

– A cidade mais próxima daqui é Missoula e embora não seja uma Nova York, não é tão pequena. A melhor oferta da noite são os bares com ótimas opções de cervejas e comidas, além da música ao vivo, geralmente, country. Basicamente, isso é a vida noturna da região

– E existe alguma regra que proíba o hóspede de convidar um funcionário para sair?  – perguntei, pois me flagrei realmente interessada em passar mais algum tempo com Dustin.

– Acredito que não – ele respondeu enquanto me auxiliava a escovar o pelo de Bruce. – Mas isso é só uma hipótese, não? – fitou-me.

– Claro, uma hipótese. Mas se eu quisesse muito conhecer um desses bares, já que eu estou sem carro, como eu poderia fazer isso?

– Táxi, talvez.

– Ah, não. Seria interessante sair com alguém que conhecesse os melhores lugares, os melhores caminhos, e que também não se importasse em me oferecer uma carona – tentei soar casual e despretensiosa.

– Conheço alguém que poderia ajudá-la.

– Hum... – demonstrei interesse.

– Você poderia encontrá-lo no estacionamento dos funcionários. Uma S10 preta modelo 2008.

– Então, hipoteticamente, eu posso passar por lá nesse horário – disse tentando conter o sorriso.

– Hipoteticamente, ele estaria a sua espera.

Após um banho rápido fui almoçar no restaurante do resort. Completamente exausta pela cavalgada matinal, não resisti e tirei um demorado cochilo. Acordei faltando cerca de uma hora e meia para as sete da noite.

Retornei ao chuveiro para me livrar da moleza.

– Ok, Laura, você não precisa ficar nervosa – comecei a conversar comigo mesma em voz alta. – Isso não é propriamente um encontro, é? – refleti enquanto me secava.

De certa forma aquilo seria contra o regulamento do resort, embora eu tivesse feito o convite. No fundo, era inegável o estimulante frio na barriga que a situação gerou. Era como voltar a ser adolescente e sair escondido dos pais, mesmo que eu não tivesse passado por isso quando ainda morava com minha mãe, afinal, nunca fora preciso esconder nada dela.

Com o secador em mãos, nem o barulho foi capaz de dissuadir meus pensamentos. Estaria eu interessada em Dustin? Bem, ele era um cara bonito e o estilo de cowboy tinha lá seu charme, não obstante, o “vaqueiro-chefe” era uma pessoa extremamente agradável e há muito eu não encontrava alguém com quem fosse tão simples conversar ou apenas ficar perto.

Feito uma armadilha mental, pensei em Taylor. Não estávamos plenamente a vontade nos primeiros contatos, mas não tardou até que ficássemos mais soltas. Eu precisava admitir que gostava da companhia dela, das nossas conversas, dos seus gestos e modo de sorrir. A mágoa não havia passado, nem toda a raiva, no entanto, lembrar dela não me deixou transtornada, o que já era um pequeno avanço.

Trouxe-me de volta ao presente, tentando focar na escolha da roupa. Eu já estava em cima da hora então precisava ser ágil. Coloquei uma calça leggin’ preta e coturnos cinza com um salto baixo.  Combinando com a cor dos sapatos, vesti uma blusa básica de manga comprida com um pequeno decote “V” devido aos botões abertos. Fiz uma máquina sutil e optei por um discreto par de brincos, pegando uma jaqueta preta antes de correr para o estacionamento dos funcionários.

O carro de Dustin felizmente ainda estava ali. Decidi aguardá-lo sentada em um dos bancos, aproveitando as folhagens para me “camuflar”.

–Você está atrasado – assustei-o.

– Desculpe, senhorita pior que os britânicos – devolveu enquanto eu o analisava fora dos trajes habituais.

Dustin estava sem chapéu, com os cabelos levemente molhados, e vestia calça jeans. A blusa era do mesmo tecido, porém com um tom mais escuro, e estava com as mangas dobradas, enquanto o cinto e o coturno tinham a mesma tonalidade de marrom.

– Pensou que eu fosse cowboy em tempo integral? – brincou, supondo o motivo que me fez analisá-lo.

– Achei que você e seu chapéu fossem inseparáveis.

– Lamento desapontá-la – respondeu.

Dustin olhou ao redor para se certificar que ninguém estivesse olhando e abriu a porta de trás.

– Prometo que quando já estivermos fora daqui eu deixo você passar para frente – brincou, dessa vez um pouco constrangido.

– Eu sei – assenti. – Regras são regras.

Cinco minutos depois de atravessar a guarita do resort, Dustin parou o carro para que eu fosse para o banco do carona.

– Então, aonde vamos?

– Imagino que você prefira um lugar não tão cheio, certo?

– Certíssimo.

– Tudo bem. Vou levá-la a um bar bem tradicional, mas ele fica um pouco longe. Não se assuste caso esteja demorando demais – avisou.

– Sem problemas.

Passamos boa parte do caminho conversando, ora em silêncio enquanto eu apreciava a desconhecida paisagem fora de Paws Up. Havia inúmeras fazendas por ali então Dustin me explicou que uma marca da região era a forte cultura agrícola e a preocupação em oferecer alimentos locais, muitas vezes orgânicos, para seus habitantes. Segundo ele, muitos restaurantes faziam parte do movimento “farm to table” e inclusive adequavam seus cardápios de acordo com as colheitas típicas de cada estação. Era uma maneira de privilegiar a compra de produtos locais e também de incentivo à agricultura familiar.

Aproximadamente uma hora depois, estávamos em Lolo, no condado de Missoula.

– Bem vinda ao Lumberjack Saloon – Dustin disse ao estacionar o carro.

O estabelecimento ficava numa extensa área, rodeada por coníferas.  Seus pilares eram de madeira e o teto parecia o de um grande chalé. Havia algumas mesas na varanda, mas optamos pela parte interna do salão. Como o esperado, a mobília também era de madeira, inclusive o balcão do bar, o qual ficava do lado direito. À esquerda, algumas mesas de sinuca e ao fundo um pequeno palco para apresentações ao vivo, próximo a uma jukebox.

O movimento era considerável, porém a casa não estava cheia. O cardápio oferecia uma grande variedade de sanduíches, carnes, hambúrgueres e muito mais. O bar era completo, incluindo vários drinks e diversas cervejas regionais e locais.

Sentamos numa mesa de canto, na linha imaginária que dividia o salão ao meio. Fugindo das opções que envolvessem carne, acabei escolhendo nachos, enquanto Dustin ficou com um sanduíche de bife Angus. A escolha da cerveja foi nosso único consenso.

A noite transcorreu com naturalidade, regada a cerveja, sinuca e música country, combinação típica de Montana. Dustin e eu percorremos vários assuntos, trocando-os de forma espontânea. Falamos sobre a infância, algumas parte da adolescência, as principais vantagens e desvantagens entre morar em cidades pequenas e metrópoles.

Era incrivelmente fácil e espontâneo estar na companhia dele. O tempo transcorria da forma como o retiro em Paws Up, em partes, havia me ensinado: atenta ao agora. Foi nostálgico, mas também feliz, constatar que eu não tinha pressa para que minhas últimas horas ali acabassem. Intimamente, eu estava feliz por ninguém ter demonstrado me conhecer. Naquele refúgio podia ser apenas Laura, sem a fama do sobrenome Prepon.

Uma banda se apresentou quando o movimento já estava mais acentuado e foi impossível ir embora sem dançar pelo menos uma música, no entanto, a ideia de que seria apenas uma acabou se prolongando. Para a minha surpresa, meu acompanhante não fazia o tipo duro, pelo contrário: Dustin mostrou-se um bom e divertido par, até arriscamos alguns giros.

Desde nosso primeiro contato, ele não havia forçado nada, agindo sempre de forma cordial, leve e engraçada. Talvez ele não tivesse outro interesse além de minha companhia, ou talvez fosse apenas discreto, quem sabe eu não estivesse ignorando alguma coisa... O fato era que, verbalmente, não houve nada explícito por parte dele, mas os outros sentidos... Eles pareciam se expressar de uma maneira tão clara. 

O toque quente não demonstrava ansiedade e nem imparcialidade. Sem ser invasivo, ao longo da dança, momento em que estivemos fisicamente mais próximos, era como se Dustin mostrasse que estava ali, mas sem querer me pressionar a nada, deixando qualquer decisão a meu cargo. Era estranho e peculiar como não existia a tensão sobre que escolha de gestos fazer ou se alguém tomaria alguma iniciativa mais ousada. Tudo estava simplesmente acontecendo.

Num momento em que meu desejo era ficar sozinha e isolada, sem paciência para interações forçadas e insubstanciais, Bruce e Dustin foram as melhores companhias que eu poderia ter encontrado, justamente pela espontaneidade, pela ausência de cobranças ou expectativas.

Com a proximidade da madrugada, pegamos o caminho de volta para o resort, desta vez, completamente imersos na voz de Iron & Wine. Eu continuava me despedindo de Montana, trocando o “adeus” por “até breve”.

Novamente, troquei o banco do carona pelo de trás quando estávamos perto da portaria. Dustin disse que não estava encontrando o celular e gostaria de procurar em seu armário. Não houve obstáculos para sua nova entrada, mesmo fora de seu expediente. Já no estacionamento dos funcionários, pedi que ele deixasse eu me despedir de Bruce mais uma vez.

– Está bem – ele assentiu e me acompanhou até o estábulo.

Passei alguns minutos acariciando o cavalo, tendo uma conversa baixa que só nós dois entendíamos. Sabia que não poderia demorar, provavelmente Dustin estava quebrando outra regra de Paws Up.

– Laura, – ele me chamou – precisamos ir.

– Até a volta, campeão – despedi-me com um último afago em Bruce.

– Promete que vai cuidar bem dele? – pedi a Dustin enquanto ele trancava o portão.

– Prometo ­ – verbalizou com um significativo olhar.

Estávamos próximos, sem mais uma desculpa que prorrogasse a despedida, mas assim parados, um em frente ao outro, olhando-nos.

O homem gentil, que contrapôs qualquer aspereza que se pudesse esperar de sua parte, indicava com sua presença o que não deixava de ser óbvio: estava ali. Fitei-o mais uma vez, prestando atenção em seus olhos, suas marcas de expressão, terminando nos lábios. Involuntariamente, mordi os meus de leve, tomando clara consciência de que queria me aproximar de seu peito arfante, o qual ele relutava em conter.

Também eu estava assim, tomada, de súbito, por uma expectativa, por um impulso que se precipitasse contra mais conjecturais mentais. E ele veio, lançando-me diretamente nos braços, e lábios, de Dustin.

Havia desejo na forma como ele me recebeu, mas não era só isso. O desapressado contato transmitia carinho, como se também tentasse curar algo que Dustin havia notado em mim, embora não soubesse exatamente o que. Suas mãos tinham um toque firme, porém não deslizaram por mim de maneira apressada, tampouco que soasse desrespeitosa.

As bocas que acabavam de se conhecer não se iludiam. Ambas tinham consciência de que não se tornariam familiares, íntimas, e que o gosto do beijo não passaria a ter sabor de lar. Se aquele estava sendo o melhor? Eu não poderia dizer que sim, nem ser injusta taxando-o como o pior. Talvez fosse pela própria falta de oportunidade de nos encaixarmos melhor ao longo de experiências anteriores. No entanto, eu o senti como necessário. Não só pela vontade, mas era como encerrar um ciclo. Era a maneira adequada de nos despedirmos, sem a ilusão de que ele fosse um prólogo.

– É hora de me despedir – Dustin afirmou, demonstrando estar em plena sintonia com meus pensamentos e tranquilo quanto a tudo o que havia acontecido entre nós.

– Acredito que seja – afirmei com um riso levemente constrangido.

– Laura, antes de partir, eu gostaria que você não se esquecesse de uma das maiores qualidades que os cavalos tem.

– Lealdade? – questionei.

– Também... – admitiu­ – Sabe, eu já lidei com alguns cavalos que tinham um comportamento bem inadequado, mas eles foram ensinados a agir daquela forma. Com paciência e determinação, tratando-os da maneira adequada, eles passam a confiar em você e a te amar como se fossem crianças. Os cavalos estão sempre prontos para o perdão e para nos oferecer uma segunda chance.

– Tentarei não esquecer, Dustin – afirmei com sinceridade, inegavelmente mexida com o que ele havia dito.

– Boa noite, moça da cidade grande – desejou quando dei os primeiros passos em direção ao chalé.

– Boa noite, vaqueiro-chefe. 

 

 


Notas Finais


Bonito!
Que bonito hein!
Que cena mais linda
Será que eu estou atrapalhando o casalzinho aí?
hahahaha

Falando um pouco mais sério, queria deixar duas indicações.
Primeiro, a do trabalho de um canto que mencionei aqui no cap: "Iron & Wine", para quem curtir um folk-rock
Depois, um texto que aborda o "Sentimento oceânico" e me ajudou a ilustrar melhor a sensação da Laura ao cavalgar:
http://obviousmag.org/a_delicadeza_do_tempo/2015/06/sentimento-oceanico.html

Assim que der responderei aos comentários do capítulo anterior.
Um beijo!


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