História Hades (Camren) - Um só Coração

Estava ficando difícil aguentar. Minha forma espiritual parecia se desintegrar, ansiosa para voltar ao meu corpo. Mas as palavras de Ally me faziam titubear. Seria a minha captura um sinal real de que algo terrível estava para acontecer? Ao contrário de Lauren, não culpei Normani por ter dito tudo aquilo. Ela estava apenas verbalizando o que via. Era verdade, eu aceitara o convite de MGK. Sem querer, claro, mas isso não parecia relevante. Sabia que Normani esperava que tudo terminasse bem, mas também era parte do seu trabalho considerar todas as possibilidades. Só achava que pudesse ser mais compreensível, pelo bem de Lauren. Mas minha irmã nunca se afastava da verdade. Estava muito comprometida com ela. Lauren não entendia isso, e notei que se frustrava, pois estava acostumada a sempre ouvir uma resposta das bocas de Ally e Normani, não importando qual fosse a questão. Mas daquela vez tudo era diferente, e a indecisão das minhas irmãs a assustou. Lauren estava ficando inquieta. Sentou-se e logo voltou a se levantar. Seu corpo estava tenso, e a energia que estava contida era palpável.

— Eu a vi — disse, após uma longa pausa, falando com calma intensidade. — Vocês não estavam lá, não viram a expressão no rosto de Camila ao perceber com quem estava. Ficou horrorizada ao ver o que acontecia. Eu queria ajudar, mas era tarde demais. Tentei salvá-la...

E a voz de Lauren falhou, embora ela continuasse agitando as mãos.

— Claro que sim — respondeu Ally, sempre mais atenta que Mani ao que dizia Lauren. — Nós conhecemos Camila. Confiamos nela. Sabemos que MGK empregou suas mais perversas táticas. Mas isso não importa agora. Ele ganhou... Ela está ao seu lado. A situação é delicada e a verdade é que não há maneira fácil de trazê-la de volta.

Normani estava menos inclinada a adoçar os fatos.

— Se existe uma maneira de entrar na dimensão conhecida como Inferno, não conheço. Nenhum anjo voltou desse lugar desde que Lúcifer foi preso por lá.

— Mas você comentou que deveríamos procurar um portal — disse Lauren, falando com dificuldade, tentando controlar suas emoções.

Vê-la daquela maneira fez os meus olhos arderem. Queria abraçá-la, murmurar que estava viva e que nem debaixo da Terra me esqueceria dela.

— Sim, eu disse isso — respondeu Normani. — No entanto, é mais fácil falar do que fazer.

O olhar de Normani era distante, e percebi que ela já não estava presente. Estava presa em seu próprio mundo de contemplação. Mesmo ouvindo-a expressar todas as suas dúvidas, eu confiava na minha irmã. Se havia uma maneira de me resgatar, ela a encontraria.

— Não entendo. Se MGK quebrou as regras, por que nós não podemos quebrar também? — insistiu Lauren.

— Se MGK enganou Camila, levando-a consigo, nenhuma regra foi quebrada — respondeu Ally. — Os demônios levam séculos manipulando almas e carregando-as ao Inferno.

— Por isso temos que jogar sujo — disse Lauren.

— Exatamente — respondeu Ally, pousando uma das mãos no seu ombro. — Mas por que você não para de se preocupar um pouco? Talvez essa viagem ao Tennessee nos dê alguma luz. O que aconteceu com Camila, uma criatura do Senhor sendo levada ao Inferno, é algo inédito. Não temos nenhuma regra escrita sobre o assunto. Está entendendo o que quero dizer?

— Acho que poderia ser um sinal — disse Normani, voltando à realidade.

— Que tipo de sinal? — perguntou Lauren.

— Os poderes de Lúcifer podem estar aumentando. Isso poderia ser o indício de uma força crescente, manifestada por meio de MGK. Temos que pensar com calma. Se nos apressarmos, as coisas podem piorar. Foi por isso que Miguel pediu que procurássemos essa fonte.

— Vejam bem. Ficar sentado tomando chá não vai resolver o problema da Camz. Vocês duas podem pensar no que quiserem, mas vou fazer o que for preciso para trazê-la de volta. Se não quiserem vir comigo, posso resolver sozinha.

Lauren se levantou, e fiquei em pânico, imaginando que ela poderia fazer algo sem sentido. Mas  Normani se moveu rapidamente, bloqueando o caminho.

— Você não vai resolver nada sozinha — advertiu Normani, num tom assustador. — Está entendido? Controle suas emoções por um momento e escute. Sei que você quer trazer Mila de volta, todas nós queremos, mas agir como um super-herói de história em quadrinhos não vai ajudar em nada.

— E ficar sentado como se não pudéssemos fazer nada também não. 

— Cuidado com o que diz — avisou Normani, com olhos fumegantes.

— Caso contrário...? — provocou Lauren, nervosa.

A qualquer momento, ela poderia fazer algo de que se arrependeria. Queria poder me aproximar de Lauren para dizer-lhe que Normani tinha razão. Por mais que eu adorasse sua lealdade e determinação, a verdade era que aquela situação não poderia ser resolvida apenas com bravura. Bem no fundo, sabia que Normani estava arquitetando um plano. Ou pelo menos era o que eu esperava. Tudo o que Lauren tinha que fazer era dar-lhe um pouco de tempo para pensar. Normani continuava bloqueando a passagem de Lauren, e seus olhos se encontraram, tensos. Foi Lauren quem deu o braço a torcer primeiro.

— Preciso sair daqui e refrescar a minha cabeça — disse, passando por Normani.

— Tudo bem — concordou Ally. — Vamos esperar por você.

Eu a segui, descendo os degraus que levavam à praia. Tentei enviar raios de energia tranquilizadora, esperando que ela os sentisse, e Lauren parecia um pouco mais relaxada ao chegar à praia. Ela respirou fundo algumas vezes, aliviando a tensão. Depois caminhou até o ponto em que as águas lambiam a areia, ficando de pé, com as mãos nos bolsos, olhando para o mar. Observei cada passo que ela deu, lutando para se acalmar. Caso Lauren conseguisse se concentrar um pouco, eu talvez tivesse uma chance de demonstrar-lhe a minha presença. Tudo o que ela tinha que fazer era parar de pensar no meu desaparecimento e deixar a mente tranquila.

Como se pudesse ler os meus pensamentos, Lauren tirou o suéter, deixando que caísse no chão. Depois tirou os sapatos, que deixou na areia, ficando de pé, vestindo shorts e blusa preta. Ela olhou para a praia deserta antes de começar a correr. Corri ao seu lado, animada por seu coração palpitante e respiração acelerada. Era o mais perto que me sentia dela desde a separação. Os movimentos de Lauren eram perfeitos, como os de um verdadeiro atleta. Ela sempre gostou de esportes, e soube que conseguiria aliviar a tensão ao correr. De repente, a sua mente começou a focar em outra coisa, esquecendo-se de mim. O exercício ajudava. A expressão em seu rosto era mais leve e seu corpo se movia num ritmo próprio. Quase podia sentir os movimentos ágeis e seu peso sobre a areia. Não poderia dizer toda a extensão que ela percorreu, mas a Byron era apenas um ponto distante no horizonte, Lauren parou. Ela curvou o corpo, abraçando as coxas com os braços. O sol se punha, tingindo o oceano de vermelho. O peito de Lauren arfava. Ela tentava respirar com mais calma. Eu sabia que ela não estava pensando em nada naquele momento — talvez fosse a primeira vez em semanas que sua mente estava livre. Não havia tempo a perder. Tinha que agarrar aquela oportunidade. Não estávamos longe do local onde eu lhe revelara minha real identidade, abrindo as asas e saltando do penhasco. Naquele momento, compliquei sua vida para sempre. Atei a sua existência à minha, enchendo-a de problemas contra os quais ela nunca teria que lutar. Estudei o rosto de Lauren, muito perto do meu. Podia ver sua expressão ficando mais tensa enquanto seu corpo se tranquilizava. O exercício físico abrira a possibilidade de um descanso mental para ela. Mas logo voltaria a agonia. Não podia esperar. Afastei-me um pouco. Fechei os olhos com força e me concentrei, canalizando a minha energia, tentando conjurar a minha forma física. Imaginei que a minha energia seria uma bola de fogo. Uma bola que contivesse todo o meu amor, todos os meus pensamentos, todo o meu ser. E corri. Corri em direção a Lauren, que estava olhando para o mar, com os pés semienterrados na areia. Quando a alcancei, foi como se uma onda de energia a atingisse com força cósmica, como se o seu corpo ganhasse forma líquida e eu a pudesse atravessar. Por um milésimo de segundo, senti que as nossas essências se fundiam. Éramos um único coração, um único corpo. Mas aquele momento passou. Lauren parecia assustada ao tentar entender o que havia acontecido e instintivamente levou uma das mãos ao coração. Quase conseguia ler os pensamentos dela estampados no rosto e esperava que ela tivesse entendido bem o recado, e não imaginado tratar-se de um infarto. Ela demorou alguns minutos para processar o ocorrido, mas sua expressão finalmente se transformou: de confusão, passou a estampar a mais pura felicidade. Quando entendi que ela procurava por mim, senti que agira corretamente. Estava orgulhosa de mim mesma por ter conseguido acertar na primeira tentativa! Eram passos pequenos, mas eu conseguira — tinha feito contato. Lauren olhou para a frente, para onde eu estava, fisicamente invisível, mas espiritualmente mais presente do que nunca. Seus olhos verdes pareciam encontrar os meus, e um sorriso começou a se formar nos cantos de sua boca. 

— Camz — murmurou — por que você demorou tanto?