— Pare! — implorei a MGK. — Por favor, pare!
O acelerador estava no máximo, e o carro ia de um lado para o outro, como se fosse guiado por um homem cego. O penhasco estava à direita, e não havia nada além de fracas barras de metal separando a estrada da queda arrasadora. Precisava me manifestar, mesmo que fosse apenas para dizer a Lauren o que estava acontecendo, para ver se conseguia tirá-la do carro com segurança. Mas o medo atrapalhou a minha concentração. Precisaria de toda a energia que restava para aparecer para ela e, mesmo assim, não tinha certeza de que conseguiria.
De repente, vi as mãos dela apertando o volante. Vi o anel de compromisso e a pulseira de couro que ela sempre usava. Conhecia os dois de cor. Aquelas mãos haviam segurado as minhas muitas vezes. Tinham me confortado, lutado por mim, me protegido e me mantido no mundo dos vivos. Lembrei quando a vi pela primeira vez, sentada no píer. Ela me olhara, com a luz do pôr do sol iluminando as mechas de seus cabelos. Pensara como seus olhos eram intensos. Naquele momento, tentei imaginar quem ela podia ser e como era, sem esperar vê-la de novo. As lembranças me invadiam. Nós duas dividindo um bolo de chocolate no Sweethearts — ela olhava para mim como se eu fosse um quebra-cabeça que ela estivesse determinada a decifrar. Lembrei como sua voz ficava mais rouca quando ela acordava, a sensação de seus lábios na nuca. Eu me lembrei de seu cheiro, parecido com o cheiro da mata num dia de verão. Lembrei como o crucifixo que ela usava no pescoço brilhava quando o luar recendia. Sabia tudo sobre ela, e todos aqueles detalhes eram sagrados para mim. Percebi, ali, que nossa conexão subliminar podia transcender qualquer barreira física. De repente, eu me manifestei ali no banco do passageiro. Lauren quase gritou de susto, e seus olhos se arregalaram enquanto MGK nos observava entre os dois assentos da frente.
— Olá, querida — disse ele de modo assustador. — Pensei que poderia encontrá-la aqui. Estão com um probleminha no carro, pelo que posso ver.
— Camz — sussurrou Lauren. — O que está acontecendo?
Ela não conseguia ver MGK. Não fazia ideia do que estava acontecendo.
— Tudo bem — disse a ela. — Não permitirei que nada aconteça a você.
— Camz, não vou aguentar muito. — Sua voz quase falhou. — Onde você está? Não sei mais no que acreditar e preciso salvar você.
— Ah, coitadinha... — resmungou MGK do assento traseiro. — Ela é minha agora, se vira.
— Cale a boca! — gritei, e Lauren se assustou. — Não estou falando com você — expliquei depressa. — MGK está aqui conosco.
— O quê? — Lauren se virou, mas, para ela, o banco de trás estava vazio.
— Apenas confie em mim — pedi quando o carro se aproximou perigosamente da beira do penhasco.
Lauren se assustou e ergueu um dos braços para proteger o rosto, esperando a colisão, mas o carro voltou para a estrada no último segundo.
— Lauren — disse. — Olhe para mim.
Não sabia quanto tempo ainda tínhamos juntas, mas precisava mostrar que ela não estava sozinha. Um verso conhecido da Bíblia surgiu em minha mente. Era um dos meus favoritos e era de Gênesis 31. Falava sobre Mispá, o Ponto de Encontro. Era um local que podia estar em todos os lugares e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Um local que não existia nesta dimensão, mas que tinha mais força do que as pessoas imaginavam. Era um local onde uma reunião de espíritos poderia ocorrer sem presença física. Lembrei o dia na Bryce Hamilton em que corri para os braços de Lauren, com medo de que nós duas nos separássemos. As palavras daquela tarde voltaram para mim com a mesma clareza daquela lembrança: "Vamos criar um lugar. Um lugar só nosso, um lugar onde a gente possa sempre se encontrar se as coisas derem errado um dia."
— Você se lembra do ponto branco? — sussurrei com urgência.
O corpo de Lauren ficou tenso quando ela olhou diretamente para mim.
— Claro que sim — murmurou.
— Então feche os olhos e vá para lá. Estarei à sua espera. E não se esqueça... É só o espaço que nos separa.
Lauren respirou fundo e em seu olhar vi uma compreensão antes inexistente. Ela fechou os olhos, soltou o volante e ficou muito parada. Escutei a voz grossa de MGK do banco de trás.
— Já cansei dessa bobagem sentimental por hoje.
— Olha... — Eu me virei para tentar conversar com ele, mas era tarde demais.
Senti um aperto no estômago quando o carro escorregou para a lateral da estrada, bateu nas barras de ferro como se fossem palitos de dente e ficou pendurado na borda.
— Não! — gritei.
Lauren não reagiu. Ela ainda estava no ponto branco, indiferente ao fato de morrer ou viver.
***
O carro escorregou pelo desfiladeiro, em câmara lenta. Escutei o som metálico quando a parte debaixo do carro raspou na borda. Pareceu vacilar por um momento; o carro inclinou-se. E então a gravidade venceu e, com um baque e uma nuvem de poeira, o carro caiu. Ao vê-lo, os pássaros ali perto piaram e fugiram das árvores, desaparecendo no céu. O corpo de Lauren foi lançado para a frente e bateu no volante. O momento pareceu durar muito tempo. Minha visão ficou restrita, e vi as coisas mais esquisitas. Poderia jurar que ela tinha uma auréola de luz dourada. Lauren não se esforçou para se proteger. Qualquer outra pessoa teria erguido as mãos, mas ela se mantivera estranhamente calma e parada. Não demonstrou nenhum sinal de pânico, como se estivesse conformada com seu destino. Quando seus cabelos saíram da frente do rosto, olhei para ela e fiquei surpresa com sua aparência jovem. Consegui ver nele a menina que talvez fora poucos anos antes. Tinha uma pele lisa e sem marcas, sem uma ruga sequer que assinalasse seus anos na Terra. Ela viveu pouco, pensei. Havia muitas coisas que ela poderia ter sido, e agora nunca teria a chance de crescer de fato... Ser esposa.. Ser mãe... Fazer diferença no mundo. Naquele momento, eu estava gritando, gritando alto o suficiente para que toda a cidade me ouvisse, mas ninguém me ouviu. O carro ainda mergulhava de bico, em direção às rochas abaixo, onde se arrebentaria e ficaria amassado como uma folha de papel-alumínio. Nunca me sentira tão fraca. Meu corpo físico ainda estava preso no subterrâneo em Hades, e a alma, entre as dimensões. Mas, quando vi o rosto sorridente de MGK pelo espelho retrovisor, percebi que não era tão fraca quanto pensava. Eu me virei e o segurei pelos dois punhos. Ele pareceu surpreso, mas não me afastou.
— Não o machuque — pedi. — Farei o que você quiser. Pode ditar as regras.
— É mesmo? — MGK sorriu. — Uma troca... Que interessante.
— Não é hora para brincadeiras! — implorei. O carro estava a poucos segundos de bater nas rochas e virar pó lá embaixo. — Se Lauren morrer, nunca o perdoarei! Por favor... Vamos fazer um acordo.
— Tudo bem — concordou. — Pouparei a vida dela se você me conceder apenas um desejo.
— Fechado! — gritei. — Agora, pare o carro!
— Você me dá a sua palavra?
— Juro pela minha vida.
O carro parou no ar, completamente congelado. Foi uma imagem forte, e tive sorte de não haver seres humanos por perto para testemunhar.
— Vejo você em casa, Camila.
— Espere... Você não pode simplesmente deixá-la aqui!
— Cuidarão dela— avisou MGK e, estalando os dedos, desapareceu do banco de trás.
Depois de alguns segundos, tomei consciência da presença de Ally e de Normani. Elas foram até a beira do penhasco numa Ranger Rover emprestada e saíram. Ao verem o carro suspenso no ar, Normani não hesitou, correu até a beira do penhasco e saltou, as asas se abrindo para mantê-la no ar enquanto ela descia em direção às rochas abaixo. Havia me esquecido de como as asas de Normani eram majestosas e vê-las me tirou o fôlego. Elas tinham uma envergadura de cerca de três metros, brancas e poderosas, incríveis. Eram pesadas e cheias de penas e ainda assim pareciam ter vida própria. Ally a acompanhou, graciosa como um cisne, pisando na beira do abismo antes de soltar-se. As asas dela eram diferentes das de Normani: as de Mani tinham cor de gelo, com alguns pontos prateados e dourados; as de Ally, por outro lado, eram mais cinza-peroladas, como as de uma pomba, e alguns tons de rosa. Lauren abriu os olhos e olhava incrédula para os anjos que agora sobrevoavam o capô do carro. Ela piscou, sem saber se deveria acreditar no que via.
— Mas o que... — começou.
— Está tudo bem — disse a ela. — Você está bem.
Mas Lauren não estava mais me escutando. Ela apenas observou, surpresa, quando Normani enfiou os braços pela janela da frente, segurando o teto do carro. Do outro lado, Ally fez a mesma coisa. E então, elas começaram, lentamente, a levar o automóvel de volta à estrada. Os músculos de seus braços sequer pareciam fazer esforço, apenas se flexionaram um pouco enquanto guiavam o veículo de volta à terra firme.
O carro pousou tão suave que Lauren nem chegou a mudar de posição no assento. As asas de Ally e de Normani, que batiam ritmicamente para mantê-las no ar, se retraíram de repente assim que encostaram os pés no chão. Lauren abriu a porta e saiu assim que pôde. Ela se recostou no capô e suspirou alto.
— Não acredito nisso — murmurou ela.
— Nem nós. — disse minha irmã — O que você fez?
— Espere. — Lauren fez cara de surpresa. — Vocês acham que fiz isso de propósito?
Normani lançou-lhe um olhar penetrante.
— Um carro não cai sozinho de um penhasco.
— Pessoal. — Lauren ergueu as mãos. — MGK estava controlando o carro. Vocês acham que sou idiota?
— Você também o viu? — Ally arregalou os olhos. — Percebemos a presença dele, mas não achamos que teria a ousadia de aparecer.
— Ele não apareceu, exatamente — Lauren franziu o cenho. — Não consegui vê-lo, mas Camz me disse que ele estava ali.
— Mila? — Normani achava que Lauren estava enlouquecendo.
— Ela falou comigo pelo rádio... E então apareceu quando achei que eu fosse morrer. — Lauren retorceu o rosto numa careta, sabendo que sua história era muito maluca. — É verdade, juro.
— Tudo bem — respondeu Ally, severa. — Independente do que aconteceu, precisamos nos lembrar de que MGK está jogando sujo. Pelo menos chegamos aqui a tempo.
— É essa a questão — disse Lauren, cruzando os braços. — O carro ia cair, sei que ia. E então, de repente, ele parou, e Camz e MGK desapareceram.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Normani.
— Não sei bem... Mas MGK estava tentando me matar. Algo ou alguém o impediu.
Ally e Normani se entreolharam com preocupação.
— Devemos ficar felizes por você estar bem — disse minha irmã.
— Sim. — Lauren assentiu, mas ainda parecia preocupad. — Obrigada por me ajudarem. Caramba, espero que ninguém tenha visto vocês.
Normani esboçou um sorriso.
— Olhe ao redor. Está vendo alguém? — perguntou.
Lauren olhou e franziu o cenho. Ela viu uma cobra no mato alto que parecia ter parado enquanto rastejava: estava paralisada. Olhou para cima e ficou boquiaberto ao ver os pássaros paralisados no céu, como se o mundo todo tivesse ficado preso dentro de um quadro. Naquele momento, o silêncio mortal se tornou aparente. Todos os sons do mundo tinham parado. Não havia o cri-cri dos grilos nem o som de veículos na rua. Nem mesmo o vento conseguia atravessar o silêncio.
— Espere... — Lauren passou uma das mãos sobre os olhos. — Vocês fizeram isso? Não é possível.
— Você, de todas as pessoas, deveria saber que nada é impossível — disse minha irmã.
Os olhos brilhantes de Lauren encontraram o olhar frio e sério de Ally.
— Diga-me que vocês não pararam o tempo.
— Não o paramos, exatamente — disse Normani de modo casual, inspecionando o carro, procurando sinais de danos. — Talvez o tenhamos colocado em espera por alguns minutos.
— Estão falando sério? — perguntou Lauren. Ela estava tendo dificuldades para processar o que ouvia. — Vocês têm permissão de fazer isso?
— Isso não vem ao caso — disse Mani. — Fizemos o que tínhamos que fazer. Não podemos permitir que pessoas vejam dois anjos carregarem um carro no ar.
Mani fechou os olhos por um momento e ergueu as palmas. Um instante depois, sinais de vida surgiram ao nosso redor. Eu me sobressaltei, percebendo pela primeira vez como a vida era barulhenta, uma vez que não ouvia mais nenhum som. Era estranhamente reconfortante ver a brisa balançar as árvores e observar um besouro atravessar a terra seca. Lauren estremeceu e sacudiu a cabeça como se quisesse clareá-la.
— Será que as pessoas não perceberão o que acabou de acontecer?
— Você ficaria surpreso se soubesse o que as pessoas não veem — disse Ally. — Acontecem todos os dias as coisas mais estranhas, e ninguém presta atenção. As pessoas sempre veem o sobrenatural, mas fingem não ver, colocam a culpa no excesso de café ou no sono insuficiente. Há centenas de desculpas para disfarçar a verdade.
— Se você está dizendo... — foi o que Lauren conseguiu dizer.
— Mas e a Camila? — perguntou Ally. — Você disse que ela estava presente?
— Eu a vi. — Lauren esfregou a sola do sapato no chão. — Eu... Me comuniquei com ela algumas vezes.
Ally contraiu os lábios.
— Obrigada por passar essa informação — disse ela, franzindo o cenho. — Não pensei que fosse possível.
Normani franziu o cenho também.
— Projeção astral? — perguntou em dúvida. — Do Inferno?
— Talvez Camila seja mais poderosa do que os demônios percebem... Mais até do que ela sabe.
— O que eles não sabem é como Camila está ligada à Terra — disse Normani. — Ela olhou para Lauren. — Você a prende a este lugar com mais força do que qualquer outra coisa compreensível a eles. — Ela tamborilou os dedos no capô do carro e pareceu refletir.
— Até onde sabemos, é como uma força magnética atraindo as duss. O elo é tão forte que Camila consegue alcançar você até de onde ela está.
Apesar de meu coração continuar acelerado pelo choque do que havia acontecido, fiquei orgulhosa da relação com Lauren. Se consegui alcançá-la, mesmo da prisão subterrânea, se meu amor por ela pôde romper uma barreira do mal, isso realmente dizia algo a respeito da força de nossa ligação. Somos demais, pensei, e sorri, imaginando que seria um bom momento para cumprimentá-la com um toque de mão. As palavras de Normani pareciam ter atingido ela de um modo diferente.
— Isso é bobagem — disse Lauren, por fim. — MGK está brincando conosco, e estamos permitindo. — Ela passou a mão no rosto, e o anel de compromisso no dedo anular dela brilhou com a luz da manhã. — Ele acha que vamos apenas ficar esperando até morrer?
Ela estava tão tenso que pude ver raios em seus olhos verdes. Passou a mão pelos cabelos e olhou para o horizonte.
— Bem, chega. Quero a Camz de volta e cansei desses joguinhos. Seja lá o que acontecer, vou encontrá-la. Escutou isso, MGK? — Lauren abriu os braços e gritou para o céu. — Sei que você está aqui em algum lugar, e é melhor que acredite em mim. Ainda não terminou.
Normani e Ally permaneceram caladas. Vi algo diferente nos olhos de Mani e, surpresa, percebi se tratar de raiva. Não apenas raiva; mas uma fúria profunda pelas forças demoníacas que haviam levado um deles. Quando Normani falou, sua voz mais pareceu um trovão.
— Você está certa, Lauren. Já estamos cansadas de obedecer às regras deles.
— Precisamos agir agora.
— O que precisamos fazer é voltar para o hotel e guardar nossas coisas — disse Normani. — Vamos partir para Broken Hill dentro de uma hora.
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