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História Halo (Camren) - A Carne


Escrita por: lmfs13

Capítulo 2 - A Carne


Quando acordei na manhã seguinte, a luz do sol entrava pelas janelas altas e se derramava sobre as tábuas de pinho nuas do meu quarto. Nas réstias de luz, partículas de poeira rodopiavam numa dança frenética. Eu sentia o cheiro de maresia; reconhecia os guinchos das gaivotas e as ondas espumosas quebrando nas pedras. Eu via os objetos familiares no quarto que passara a ser meu. Quem quer que tivesse decorado o meu quarto o fizera tendo alguma ideia de seu futuro ocupante. O quarto tinha um charme feminino, com mobília branca, cama de ferro com dossel e papel de parede de botões de rosa. Havia uma penteadeira branca com um estêncil floral nas gavetas, e uma cadeira de balanço num canto. Encostada na parede ao lado da cama, havia uma delicada escrivaninha. 

Espreguicei-me e senti na pele os lençóis enrugados cuja textura ainda era uma novidade. De onde vínhamos, não havia textura, não havia objetos. Como não precisávamos de nada físico para nos sustentar, não havia nada. O Céu não é fácil de descrever. Vez ou outra, alguns humanos captam um vislumbre dele no recôndito dos seus inconscientes e se perguntam rapidamente o que aquilo significa. Tente imaginar uma vastidão branca, uma cidade invisível, sem nada material à vista, mas, ainda assim, a cena mais bela que se poderia imaginar. Um céu como que feito de ouro líquido e quartzo rosa, uma sensação de força, de leveza, aparentemente vazio, mas mais majestoso do que o palácio mais imponente da Terra. Isso é o melhor que eu consigo fazer quando tento descrever algo tão inefável quanto meu antigo lar. Eu não estava lá muito impressionada com a linguagem humana; ela parecia extremamente limitada. Havia tanta coisa que não se podia pôr em palavras... Essa era uma das maiores tristezas em relação às pessoas — muitas vezes não há como exprimir seus pensamentos e sentimentos mais importantes, e eles acabam não sendo ditos. 

Uma das palavras mais frustrantes da linguagem humana, até onde sei, é amor. Tanto significado atribuído a essa única palavrinha... As pessoas falam nela livremente e a todo tempo, usando-a para descrever seu apego a bens materiais, bichos de estimação, destinos de férias e comidas preferidas. Às vezes, numa mesma frase, empregam essa palavra também para a pessoa que consideram mais importante em suas vidas. Isso não é absurdo? Não deveria haver outro termo para descrever uma emoção tão profunda? Os humanos são muito preocupados com o amor. Todos estão sempre desesperados para formar um vínculo com uma pessoa a quem possam se referir como sua "alma gêmea". De acordo com o que lia na literatura, parecia-me que estar apaixonado significava ser o mundo inteiro da pessoa amada. O resto do Universo era insignificante comparado aos amantes. Quando estavam separados, cada um entrava num estado melancólico, e apenas quando se reuniam seus corações tornavam a bater. Só estando juntos poderiam realmente ver as cores do mundo. Uma vez separados, aquela cor sumia, deixando tudo cinzento e nebuloso. Eu ficava na cama me perguntando sobre a intensidade dessa emoção que era tão irracional e tão irrefutavelmente humana. E se a fisionomia de uma pessoa fosse tão sagrada para você a ponto de se inscrever permanentemente em sua memória? E se o cheiro e o toque dela tivessem mais valor do que sua própria vida? Claro, eu não sabia nada sobre o amor humano, mas a ideia sempre me intrigou. Os seres celestiais nunca fingiram entender a intensidade das relações humanas; mas eu achava espantoso como os humanos podiam permitir que outra pessoa se apoderasse de seu coração e sua mente. Era irônico como o amor podia despertá-los para os milagres do Universo e, ao mesmo tempo, fazer com que toda a sua atenção se voltasse de um para o outro. 

O ruído das minhas irmãs andando na cozinha lá embaixo interrompeu meu devaneio e me fez sair da cama. Que importavam minhas ruminações afinal, quando o amor humano era vedado aos anjos? 

Joguei uma manta de caxemira sobre os ombros para me aquecer e desci a escada descalça. Na cozinha, fui recebida pelo cheiro convidativo de torrada com café. Gostei de ver que me adaptava à vida humana — algumas semanas atrás esses cheiros teriam me causado dor de cabeça ou náuseas. Mas eu começava a gostar da experiência. Encolhia os dedos dos pés, desfrutando o contato macio das tábuas do assoalho. Nem liguei quando, ainda sonolenta e distraída, dei uma topada na geladeira. A dor lancinante só serviu para me lembrar de que eu era de carne e osso e podia sentir. 

— Boa tarde, Camila. — disse Normani num tom jocoso, me entregando uma caneca de chá fumegante. 

Fiquei com a xícara por uma fração de segundo a mais na mão antes de largá-la sobre a mesa, e ela queimou meus dedos. Normani reparou que eu me contraía e vi sua testa franzir. Isso me lembrava de que, diferentemente das minhas duas irmãs, eu não era imune à dor. 

Minha forma física tinha todas as vulnerabilidades de um corpo humano, embora eu fosse capaz de me curar de lesões mais simples, como cortes e ossos quebrados. Esta fora uma das preocupações de Normani quando fui escolhida. Eu sabia que ela me via como vulnerável e achava que a missão poderia se revelar muito perigosa para mim. Eu fora escolhida por estar mais sintonizada com a condição humana do que outros anjos — eu zelava pelos humanos, me identificava com eles e tentava entendê-los. Tinha fé neles e chorava por eles. Talvez fosse porque eu era jovem — eu fora criada havia apenas 17 anos mortais, o que equivalia à primeira infância em termos celestes. Normani e Ally já circulavam havia séculos; haviam batalhado e assistido a atrocidades humanas que eu nem podia imaginar. Tiveram todo o tempo de adquirir força e poder para se protegerem na Terra. Ambos haviam visitado a Terra em várias missões, tiveram tempo de se adaptar a ela e estavam cientes dos seus riscos e perigos. Mas eu era um anjo na forma mais pura e mais vulnerável. Eu era ingênua e crédula, jovem e frágil. Sentia dor, porque não tinha anos de sabedoria e experiência para me proteger disso. Era por esse motivo que Normani desejava que eu não tivesse sido escolhida, e era por esse motivo que eu fora. 

Mas a decisão não ficara a cargo dela; ficara a cargo de outra pessoa, alguém tão superior que nem Normani se atreveu a questionar. Teve que se contentar com o fato de que devia haver uma razão divina por trás da minha seleção, uma razão que ultrapassava seu entendimento. 

Beberiquei timidamente meu chá e sorri para minha irmã. Sua expressão se desanuviou e ela pegou uma caixa de cereal, examinando-a. 

— O que vai ser? Torrada ou algo chamado Flocos de Trigo com Mel? 

— Vou querer torrada — disse eu, torcendo o nariz para o cereal. 

Ally estava sentada à mesa passando manteiga preguiçosamente numa torrada. Minha irmã ainda tentava desenvolver gosto pela comida, e eu a observava cortar o pão em quadrados exatos, deixar os pedacinhos aleatoriamente em volta do prato e depois uni-los novamente como um quebra-cabeça. Fui sentar ao lado dela, inspirando o perfume embriagante de frésia que sempre parecia impregnar o ar à sua volta. 

— Você está um pouco pálida — observou ela com sua calma costumeira, afastando uma mecha do cabelo louro-claro que caíra sobre seus olhos cinza-chuva. 

Ally se auto designara a mãe da nossa pequena família. 

— Não é nada — respondi tranqüilamente, e hesitei antes de acrescentar: — Só um sonho ruim. 

Vi as duas se contraírem ligeiramente e trocar olhares preocupados. 

— Eu não chamaria isso de nada — disse Ally. — Você sabe que, em tese, nós não sonhamos. 

Normani saiu do seu posto junto à janela para estudar meu rosto mais de perto. Levantou meu queixo com a ponta do dedo. Vi que tornava a franzir o cenho, ofuscando a beleza séria do seu rosto. 

— Cuidado, Camila. — aconselhou ela, com aquele tom já familiar de irmã mais velha. — Tente não se apegar a experiências físicas. Por mais empolgante que isso pareça, lembre-se de que somos apenas visitantes aqui. Tudo isso é temporário, e cedo ou tarde teremos que voltar... — Ao ver a expressão infeliz em meu rosto, ela parou de falar. Quando continuou, foi com uma voz mais leve. — Bem, como ainda falta muito para isso acontecer, podemos discutir o assunto mais tarde. 

Era estranho visitar a Terra com Ally e Normani. Elas chamavam atenção aonde quer que fôssemos. Em sua forma física, Normani poderia muito bem ser considerada uma escultura clássica trazida à vida. Seu corpo tinha proporções perfeitas. Seus cabelos compridos cacheados eram da cor preta e sua pele escurinha a tornava ainda mais linda. Sua expressão era marcante, e, seu nariz, alcançava um grande nível de perfeição. Ela vestia uma calça jeans desbotada puída nos joelhos e uma camisa de linho amassada que davam a ele uma espécie de beleza desalinhada. Normani era uma guerreira e foi ela quem viu Sodoma e Gomorra arderem. 

Ally, por outro lado, era uma das mais sábias e anciãs da nossa espécie, embora não aparentasse ter mais de vinte anos. Era um serafim, a ordem de anjos mais próxima ao Senhor. No Reino, os serafins tinham seis asas para representar os seis dias da criação. Havia uma serpente dourada tatuada no pulso de Ally como marca do seu escalão. Dizia-se que, em combate, os serafins vinham à frente para cuspir fogo na Terra, mas ela era uma das criaturas mais delicadas que eu já conhecera. Em sua forma física, Ally era um pouco baixa, tinha os cabelos lisos num tom castanho claro, e possuía um ar de graciosidade. Nessa manhã, ela usava um vestido branco esvoaçante e sandálias douradas. 

Eu, por outro lado, não tinha nada de especial, apenas um simples e velho anjo de transição, do escalão mais baixo. Eu não me importava; isso significava que eu era capaz de interagir com os espíritos humanos que entravam no Reino. Em minha forma física, eu tinha uma aparência etérea como a da minha família, à exceção dos meus olhos, que eram castanhos como seixos de rio, e do meu cabelo preto, que caía ondulado nas costas. Eu pensara que, se fosse convocada para um posto na Terra, poderia escolher minha própria forma, mas não era assim que as coisas funcionavam. Fui criada com uma forma miúda, de ossos finos, não muito alta, com o rosto e corpo bem definidos. Sempre que me via no espelho, notava uma ansiedade que não se via no semblante das minhas irmãs. Mesmo tentando, não conseguia parecer tão distante como Mani e Ally. A expressão de seriedade e compostura delas raramente se alterava, independentemente do drama que se desenrolasse à sua volta. Já eu vivia com um semblante inquieto e curioso, por mais que tentasse parecer desse mundo. 

Ally seguiu em direção à pia segurando o prato, andando como se estivesse dançando, como sempre fazia. Minhas irmãs caminhavam com uma graciosidade espontânea que eu não conseguia imitar. Mais de uma vez, eu fora acusada de ter a mão pesada demais e de andar como um rinoceronte. 

Quando se livrou da torrada comida pela metade, Ally se espreguiçou no assento da janela, com o jornal aberto à frente. 

— Quais as novidades? — perguntei. 

Em resposta, ela me mostrou a primeira página. Li as manchetes: bombardeios, desastres naturais e colapso econômico. Imediatamente me senti derrotada. 

— Será de espantar que as pessoas não se sintam seguras? — perguntou Ally com um suspiro. — Elas não confiam umas nas outras. 

— Se isso é verdade, então o que podemos fazer por elas? — perguntei hesitante. 

— Não vamos criar muitas expectativas tão cedo — disse Mani. — Eles dizem que mudanças levam tempo. 

— Além disso, não cabe a nós tentar salvar o mundo — disse Ally. — Precisamos focar em nossa pequena parte dele. 

— Você quer dizer esta cidade? 

— Claro. — Ally fez que sim com a cabeça. — Esta cidade foi listada como alvo das Forças das Trevas. E estranha a escolha que fazem dos lugares. 

— Imagino que eles começam aos poucos e vão ganhando terreno — disse Normani com desgosto. — Se conseguirem conquistar um povoado, conquistam uma cidade, depois um estado, depois um país. 

— Como saberemos o tamanho do estrago que eles já causaram? — perguntei. 

— Isso só saberemos com o tempo —respondeu Mani. — Mas, se Deus quiser, vamos pôr um fim ao trabalho destrutivo deles. Não vamos falhar em nossa missão, e, antes de partirmos, este lugar vai estar de novo nas mãos do Senhor. 

— Enquanto isso, vamos simplesmente tentar nos integrar — disse Ally, talvez num esforço para não deixar o clima tão carregado. 

Quase dei uma risada e fiquei tentada a sugerir que ela se olhasse no espelho. Ally podia ser velha como o tempo, mas às vezes era bem ingênua. Até eu sabia que nos integrar seria um desafio. 

Qualquer um podia ver que éramos diferentes — e não diferentes como um estudante de arte com o cabelo pintado e meias malucas. Éramos diferentes mesmo — de outro mundo. Acho que isso não era de se admirar, considerando quem éramos, ou melhor, o que éramos. Muitas coisas chamavam atenção a nosso respeito. Para começar, os seres humanos tinham falhas, e nós, não. Quem nos via em meio à multidão notava logo a nossa pele. Era tão translúcida que dava a impressão de conter partículas de luz de verdade. Essa característica ficava ainda mais evidente depois que escurecia, quando qualquer parte exposta da nossa pele emitia um brilho que parecia vir de uma fonte interna de energia. E não deixávamos pegadas, nem quando pisávamos em superfícies modeláveis, como grama e areia. E nunca seríamos flagrados de camiseta regata — sempre usávamos roupas fechadas nas costas para disfarçar nosso pequeno problema cosmético. 

Quando começamos a nos integrar à vida da cidade, os habitantes locais não podiam deixar de se perguntar o que estávamos fazendo num lugar ermo como Venus Cove. Às vezes achavam que éramos turistas numa estada prolongada; às vezes éramos confundidos com celebridades, e as pessoas nos perguntavam sobre programas de televisão de que nunca tínhamos ouvido falar. Ninguém adivinhava que estávamos ali a trabalho; que tínhamos sido recrutados para ajudar um mundo à beira do colapso. Bastava abrir um jornal ou ligar a televisão para ver por que havíamos sido enviados: assassinatos, sequestros, ataques terroristas, guerras, assaltos a idosos... a lista negra era interminável. Havia tantas almas em perigo que os agentes das trevas estavam aproveitando a oportunidade para unir forças. Ally, Normani e eu havíamos sido enviadas aqui para contrabalançar a influência deles. Outros agentes da luz tinham sido enviados para diversos locais ao redor do mundo, e em algum momento todos seríamos chamados para que nossas descobertas fossem avaliadas. Eu sabia que a situação era crítica, mas estava certa de que não podíamos falhar. Na verdade, achei que seria fácil — que nossa presença seria a solução divina. Eu estava prestes a descobrir quão errada estava. 

Tivemos a sorte de ter ido parar em Venus Cove. Era uma cidade incrível de contrastes impressionantes. Partes do litoral eram marcadas por ventos fortes e terreno acidentado, e, da nossa casa, víamos assomarem os penhascos voltados para o oceano escuro e agitado e ouvíamos o vento uivando nas árvores. Mas um pouco mais para o interior, havia cenas bucólicas de colinas onduladas com vacas pastando e belos moinhos de vento. 

Quase todas as casas em Venus Cove eram modestos chalés de madeira, mas, mais perto da orla, havia uma série de ruas arborizadas com casas maiores e mais imponentes. Nossa casa, a Byron, era uma destas. Mani não estava muito empolgada com nossa acomodação — o clérigo que havia nele a achava exagerada, e ela sem dúvida se sentiria mais à vontade em um lugar menos luxuoso, mas Ally e eu adoramos a casa. E se as autoridades constituídas não viam mal algum no fato de nos divertirmos na Terra, por que nós deveríamos ver? Achei que a casa poderia nos impedir de atingir o objetivo de nos integrar, mas fiquei quieta. Não queria me queixar quando já me sentia um estorvo nessa missão. 

Venus Cove tinha cerca de três mil habitantes, embora esse número dobrasse nas férias de verão, quando a cidade ficava apinhada de gente. Independentemente da época do ano, os locais eram abertos e simpáticos. Eu gostava do clima da cidade: não havia o corre-corre de executivos de terno a caminho de reuniões importantíssimas; ninguém tinha pressa. As pessoas pareciam não ligar se jantavam no restaurante mais elegante da cidade ou no bar à beira da praia. Eram simplesmente tranquilas demais para se preocupar com esse tipo de escolha.

— Concorda, Camila? — O rico timbre da voz de Normani me trouxe de volta ao presente. 

Tentei me lembrar do fio da conversa, mas me deu um branco total. 

— Desculpe, estava a quilômetros de distância! O que estavam dizendo? 

— Eu estava apenas estabelecendo algumas regras básicas. De hoje em diante, tudo vai ser diferente. 

Mani franziu o cenho de novo, um tanto irritada com minha falta de atenção. Nós duas começávamos na Escola Bryce Hamilton naquela manhã, eu como aluna e ela como a nova professora de música. Fora decidido que uma escola seria o lugar ideal para começarmos nosso trabalho de contrabalançar os emissários das trevas, uma vez que era um estabelecimento cheio de jovens cujos valores ainda estavam em formação. Como Ally era muito sobrenatural para ser mandada para o ensino médio, ficou combinado que ela seria a mentora que iria garantir a nossa segurança, ou melhor, a minha, já que Normani sabia tomar conta de si. 

— O importante é não perder de vista o motivo pelo qual estamos aqui — disse Ally. — Nossa missão é clara: executar boas ações, atos de caridade e bondade; liderar pelo exemplo. Não queremos nenhum milagre por enquanto, até podermos prever como seriam recebidos. Ao mesmo tempo, queremos observar e aprender o máximo que pudermos sobre as pessoas. A cultura humana é muito complexa e diferente de tudo mais que existe no Universo. 

Desconfiei de que essas regras básicas tinham sido estabelecidas tendo em vista, principalmente, o meu benefício. Normani jamais tivera dificuldade em lidar com qualquer situação. 

— Vai ser divertido — disse eu, talvez entusiasmada demais. 

— Não se trata de diversão — retrucou Normani. — Não ouviu nada do que falei? 

— Essencialmente, estamos tentando expulsar as más influências e fazer as pessoas acreditarem novamente umas nas outras — disse Ally num tom conciliador. — Não se preocupe com Camila, Mani, ela vai ficar bem. 

— Resumindo, estamos aqui para abençoar a comunidade — prosseguiu minha irmã. — Mas não devemos chamar muita atenção. Nossa prioridade número um é continuar passando despercebidos. Camila, por favor, tente não dizer nada que... aflija os alunos. 

Era a minha vez de me ofender. 

— Tipo o quê? — perguntei. — Eu não sou tão assustadora assim. 

— Você sabe o que a Mani quer dizer — disse Ally. — Ela só quer que você pense antes de falar. Nada de conversas pessoais sobre a nossa casa, nada de "Deus considera..." ou "Deus me disse...", eles podem pensar que você tomou algo. 

— Ótimo — respondi, num tom ofendido. — Mas espero que pelo menos eu tenha permissão de voar pelos corredores na hora do intervalo. 

Normani me lançou um olhar severo. Esperei que ela percebesse minha piada, mas seus olhos continuaram sérios. Suspirei. Por mais que eu a amasse, às vezes ela podia ser completamente destituída de senso de humor. 

— Não se preocupe, vou me comportar. Prometo. 

— O autocontrole é de suma importância — disse Ally. 

Suspirei de novo. Eu sabia que só eu precisava me preocupar com autocontrole. As duas tinham experiência suficiente com esse tipo de situação para que aquilo fosse natural para elas — elas conheciam as regras de trás para frente. Não era justo. A personalidade delas também era mais constante que a minha. Elas poderiam até se chamar de as Rainhas da Frieza. Nada as abalava nada as perturbava e, mais importante, nada as desequilibrava. Elas pareciam atrizes ensaiadas cujas falas lhes vinham sem esforço. Comigo era diferente; eu me esforçara desde o início. Por alguma razão, virar humana realmente me deixou confusa. Eu não estava preparada para a intensidade disso. Era como de uma só vez passar de um vazio estático a uma montanha-russa de sensações. Às vezes, essas sensações se cruzavam e mudavam a todo tempo, e o resultado era uma completa confusão. Eu sabia que devia me distanciar de tudo que fosse emocional, mas ainda não tinha descoberto como. Eu me maravilhava com a capacidade dos humanos de viver com tanto tumulto borbulhando abaixo da superfície o tempo todo — era exaustivo. Eu tentava esconder de Normani minhas dificuldades; não queria demonstrar que ela estava ccert nem levá-la a me menosprezar devido a meus esforços. Se algum dia experimentaram algo semelhante, minhas irmãs eram especialistas em reprimir suas emoções. 

Ally se prontificou a arrumar meu uniforme e a encontrar uma camisa e calças limpas para Mani. Ela sempre vestia jeans folgados e suéteres sem gola. Qualquer coisa apertada fazia com que nos sentíssemos muito presas. Roupas em geral nos davam essa sensação estranha de aprisionamento, e compreendi o que Mani sentia quando desceu se contorcendo naquela camisa branca passada que parecia ser bem apertada. 

As roupas não eram a única diferença; também tínhamos que aprender a executar rituais de asseio como tomar banho, escovar os dentes e pentear o cabelo. Nunca tivemos que pensar em tais coisas no Reino, onde a existência era livre de manutenção. A vida como entidade física significava ter um número muito maior de detalhes para lembrar. 

— Tem certeza de que existe um código de vestimenta de professora? — perguntou Normani. 

— Acho que sim — respondeu Ally — mas mesmo que eu esteja errada, vocês querem se arriscar logo no primeiro dia? 

— O que havia de errado com a roupa que eu estava vestindo? — resmungou, arregaçando as mangas da camisa e tentando libertar os braços. — Pelo menos era confortável. 

Ally estalou a língua para ela e se virou para conferir se eu tinha vestido o uniforme direito. 

Eu tinha que admitir: meu uniforme era bastante estiloso. O vestido era de um tom azul-claro favorável, com a frente pregueada e uma gola branca estilo Peter Pan. Além dele, exigia-se que usássemos meias três-quartos de algodão, sapatos marrons de fivela e um blazer azul-marinho com o escudo da escola estampado em ouro no bolso do peito. Ally me comprara fitas azul-claras e brancas, que ela entremeava com destreza em minhas tranças. 

— Pronto — disse ela, com um sorriso satisfeito. — Da embaixadora celeste para a estudante local. 

Desejei que ela não tivesse usado a palavra embaixadora — era inquietante. Carregava um peso muito grande, além de muitas expectativas. E não do tipo que os humanos tinham em relação aos filhos para que limpassem seus quartos, tomassem conta dos irmãos ou fizessem os deveres de casa. Estas eram expectativas que tinham de se concretizar, e se não fossem... bem, eu não sabia o que aconteceria se não fossem. 

Eu tinha a sensação de que os meus joelhos envergariam sob o meu peso a qualquer momento. 

— Não estou muito segura disso, Mani — disse eu, percebendo ao mesmo tempo quão imprevisível eu devia estar soando. — E se eu não estiver pronta? 

— A escolha não é nossa — ela respondeu com uma calma inabalável. — Temos um único objetivo: cumprir nossas obrigações para com o Criador. 

— Quero fazer isso, mas estamos falando do ensino médio. Uma coisa é observar a vida de fora, mas aqui vamos ser jogados no olho do furacão. 

— Essa é a questão — Mani disse. — Não se pode esperar que façamos a diferença atuando de fora. 

— Mas e se algo der errado? 

— Estarei lá para consertar. 

— É que a Terra parece um lugar muito perigoso para os anjos. 

— Por isso estou aqui. 

Os perigos que eu imaginava não eram meramente físicos. Estaríamos bem-equipados para lidar com estes. O que me preocupava era a sedução de tudo que era humano. Eu desconfiava de mim mesma e sabia que essa desconfiança poderia me levar a perder de vista o meu objetivo principal. Afinal, isso já acontecera antes, e as consequências foram funestas — todos já tínhamos ouvido as lendas pavorosas dos anjos caídos, seduzidos pelas indulgências dos humanos, e todos sabíamos o que era feito deles. 

Ally e Normani observavam o mundo à sua volta com um olho treinado, cientes dos perigos, mas, para uma novata como eu, as ameaças eram enormes.


Notas Finais


E aí, o que estao achando??
Até o próximo
😆😆


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