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História Halo (Camren) - Venus Cove


Escrita por: lmfs13

Capítulo 3 - Venus Cove


A Escola Bryce Hamilton ficava na periferia da cidade, erguendo-se sobranceira no alto de uma ladeira. Onde quer que se estivesse no prédio, tinha-se uma vista: ou de vinhedos e colinas verdejantes com uma ou outra vaca pastando, ou dos penhascos acidentados da Costa do Naufrágio, assim batizada devido aos muitos navios que tinham afundado em suas águas traiçoeiras no século anterior. A escola, uma mansão de calcário com janelas em arco, vastos gramados e um campanário, era um dos prédios originais da cidade. Já havia sido um convento antes de ser transformada em escola nos anos 1960. 

Um lance de degraus de pedra levava à porta dupla da entrada principal, que era sombreada por uma arcada coberta de trepadeiras. Anexa ao prédio principal havia uma capela de pedra, onde, como fomos informados, de vez em quando ainda se realizavam cerimônias religiosas, mas que, principalmente, era o local para onde iam os estudantes quando precisavam de refúgio. O terreno era cercado por um muro de pedra alto, e os portões de ferro terminando em pontas de lança ficavam abertos para permitir o acesso de automóveis ao caminho de cascalho. 

Apesar da aparência arcaica, a Bryce Hamilton era conhecida por se adaptar aos novos tempos. Era famosa por seu espírito de consciência social e tinha a preferência de pais que evitavam sujeitar os filhos a qualquer espécie de repressão. 

A maioria dos alunos tinha uma ligação de longa data com a escola por meio de pais e avós que haviam sido alunos. 

Ally, Normani e eu ficamos paradas do lado de fora do portão vendo os estudantes chegarem. Eu me concentrava em tentar controlar o frio na barriga. A sensação era desconfortável e, no entanto, estranhamente divertida. Ainda estava me acostumando à forma como as emoções podiam afetar o corpo humano. Respirei fundo. Era engraçado como o fato de ser anjo não me deixava mais preparada para o nervosismo dos primeiros dias em um lugar novo. Eu não precisava ser humana para saber que as primeiras impressões podiam fazer toda diferença entre a aceitação e o isolamento. Eu escutara as preces que as adolescentes faziam, quase todas pedindo para serem aceitas pelo grupo “popular” e arranjar um namorado que jogasse no time de rúgbi. Já eu me limitava a torcer para arranjar um amigo. 

Os alunos chegavam em grupos de três ou quatro: as meninas vestidas exatamente como eu, e os meninos de calça cinza, camisa branca e gravata listrada de azul e verde. Mesmo com o uniforme, era fácil distinguir os grupos sociais específicos que eu tinha observado do Reino. A galera da música era constituída de garotos com cabelos na altura dos ombros, com mechas desalinhadas caindo nos olhos. Carregavam sempre estojos de instrumentos, tinham acordes musicais rabiscados nos braços e andavam num passo tranqüilo, com a camisa para fora da calça. Havia também uma pequena minoria de góticos, que se diferenciavam pela maquiagem pesada nos olhos e pelos penteados espetados. Eu me perguntava como era permitido que eles usassem esse visual, que certamente infringia as regras da escola. Os que se viam como artistas incrementavam o uniforme com boinas ou chapéus e lenços coloridos. Algumas garotas andavam em bandos, como um grupo de louras platinadas que atravessava a rua de braços dados. Os intelectuais eram facilmente identificáveis: usavam uniformes impecáveis sem alterações e tinham a mochila oficial da escola. Geralmente caminhavam com um zelo missionário, de cabeça baixa, ansiosos para chegar à sacralidade da biblioteca. Um grupo de garotos com a camisa para fora da calça, gravata frouxa e tênis estava à toa, à sombra de umas palmeiras, tomando refrigerante em lata ou achocolatado de caixinha. Eles não demonstravam a menor pressa de passar pelo portão da escola, e, em vez disso, se revezavam dando socos, pulando carniça e caindo no chão, rindo e gemendo de dor ao mesmo tempo. Vi um garoto jogar uma lata vazia na cabeça do amigo. A lata repicou e caiu na calçada. O garoto primeiro pareceu aturdido, e depois caiu na gargalhada. 

Observávamos tudo aquilo cada vez mais consternados e ainda sem nos distanciar muito do portão de entrada. Um garoto passou por nós e olhou para trás com curiosidade. Usava um boné de beisebol virado ao contrário e as calças tão frouxas nos quadris que deixavam a etiqueta da cueca aparente. 

— Confesso que não me dou muito bem com algumas dessas tendências de moda. — Normani contraiu os lábios. 

Ally riu. 

— Estamos no século XXI — disse ela. — Tente não soar tão crítico. 

— Não é assim que são os professores? 

— Acho que sim, mas não pense que será popular. — Ally olhou decidida para a entrada e se empertigou mais um pouco, embora já tivesse uma postura perfeita. Apertou o ombro de Mani e me entregou uma pasta com o horário das aulas, um mapa da escola e outras informações que colhera para mim no início da semana. — Está pronta? 

— Mais pronta impossível — respondi, tentando me munir de coragem. Eu me sentia como se estivesse prestes a entrar numa batalha. — Vamos lá. 

Ally ficou em pé no portão acenando, como uma mãe se despedindo das filhas no primeiro dia de aula. 

— Vai dar tudo certo, Camila — prometeu Normani. — Lembre-se de onde viemos. 

Já sabíamos que nossa chegada impressionaria, mas não esperávamos que as pessoas olhassem escancaradamente em nossa direção, nem que abrissem caminho como se recebessem membros da realeza. Evitei fazer contato visual e acompanhei Normani à secretaria. Dentro, havia um tapete verde-escuro e uma fileira de cadeiras estofadas. Por uma divisória de vidro, víamos um gabinete com um ventilador de pé e estantes quase até o teto. Uma mulher baixa e gorda com um suéter cor-de–rosa e uma empáfia exagerada veio toda alvoroçada ao nosso encontro. Um telefone tocou numa mesa próxima, e ela olhou com expressão de fúria para uma auxiliar do escritório, indicando que era serviço dela atender. Sua expressão se suavizou um pouco quando ela chegou a uma distância que lhe permitiu ver os nossos rostos. 

— Olá, gente! — exclamou alegremente nos olhando de cima a baixo. — Sou a Sra. Jordan, chefe da secretaria. Você deve ser a Camila, e você deve ser o Srta. Kordei, nossa nova professora de música. 

Ela saiu de trás da divisória de vidro e passou a pasta que trazia para debaixo do braço, a fim de apertar nossas mãos com entusiasmo. 

— Sejam bem-vindos à Bryce Hamilton! Já aloquei um armário para a Camila no terceiro andar; podemos seguir para lá agora, e depois acompanho a Srta. Kordei à sala do corpo docente. As reuniões de professores são às terças e quintas. Espero que aproveitem sua temporada aqui. Verão que esta é uma escola muito animada. Com toda a sinceridade, posso dizer que nunca me entediei nos vinte anos de serviços prestados a esta instituição. 

Normani e eu trocamos olhares e nos perguntamos se aquele era o jeito sutil da sra. Jordan de nos avisar sobre o que esperar da escola. Com o andar alvoroçado, ela nos mostrou o caminho passando pelas quadras de basquete, onde um grupo de garotos suados treinava duro fazendo arremessos. 

— Há um grande jogo hoje à tarde — confidenciou a sra. Jordan, virando-se para trás com uma piscadela. Olhou em direção às nuvens que surgiam e franziu o cenho. — Espero que essa chuva não resolva cair. Nossos garotos ficarão muito desapontados se tivermos que cancelar a partida. 

Enquanto ela tagarelava, vi Normani olhar para o Céu. Num movimento discreto, ela virou as palmas das mãos para cima e fechou os olhos. Os anéis de prata cinzelada que ela usava faiscaram ao sol. Imediatamente, como se em resposta ao seu comando silencioso, raios solares atravessaram as nuvens e inundaram as quadras de luz dourada. 

— Mas olhem isso! — exclamou a Sra. Jordan. — O tempo está mudando... vocês devem ter nos trazido sorte. 

Na ala principal, os corredores tinham carpetes bordô-escuros e portas de carvalho com painéis de vidro que conduziam a salas de aula de aspecto antiquado. O pé-direito era alto, e algumas das luminárias antigas exageradamente enfeitadas continuavam lá. Faziam um contraste gritante com os armários revestidos de grafite dos dois lados do corredor, o odor ligeiramente enjoativo de desodorante aliado a agentes de limpeza e o cheiro gorduroso de hambúrgueres vindo da cantina. A Sra. Jordan nos acompanhou num tour rápido e intenso, mostrando as principais instalações (pátio com cobertura de lona, departamento de arte e multimídia, bloco de ciências, sala de reuniões, ginásio e pistas, campos esportivos e o centro de artes performáticas, também conhecido como CAP). Estava visivelmente apressada, porque, depois de mostrar meu armário, explicou-me rapidamente como chegar à enfermaria, disse-me que não hesitasse se tivesse quaisquer perguntas. Então pegou Normani pelo braço e a levou embora rapidamente. Ela olhou para mim apreensiva. 

— Vai ficar bem? — perguntou baixinho. 

Dei um sorriso como resposta, esperando parecer mais confiante do que me sentia. Tudo o que eu não queria era Mani se preocupando comigo quando ela tinha os próprios assuntos para tratar. Naquele exato momento, uma sineta tocou, reverberando pelo prédio e sinalizando o início da primeira aula. De repente, me vi em pé sozinha num corredor cheio de estranhos. Eles passavam por mim com indiferença a caminho das várias salas de aula. Por um momento, senti-me invisível, como se não fizesse sentido estar ali. Chequei meu horário, e a confusão de números e letras parecia estar numa língua estrangeira, dado o sentido que fazia para mim. V.QUIS11 — como se esperava que eu soubesse decifrar aquilo? Até cogitei passar agachada pelo meio da multidão e voltar à Rua Byron. 

— Com licença. — Chamei a atenção de uma garota de cabelos castanhos e mechas loiras nas pontas, num estilo californiano passava por mim. Ela parou e me examinou com interesse. — Sou nova — expliquei desamparada, mostrando meu horário. — Pode me dizer o que isto significa? 

— Significa que você tem aula de química com o Sr. Velt na sala S-11. É neste corredor. Se quiser, te acompanho; estamos na mesma turma. 

— Obrigada — disse eu, deixando transparecer meu alívio. 

— Tem uma folga depois de química? Se tiver, posso te mostrar a escola. 

— Uma o quê? — perguntei cada vez mais confusa. 

— Uma folga, tipo um tempo livre... A menina me lançou um olhar intrigado. — Como chamavam isso na sua antiga escola? — Sua expressão mudou quando ela cogitou uma possibilidade mais perturbadora. — Ou vocês não tinham nenhum? 

— Não — respondi, com uma risada nervosa. — Não tínhamos. 

— Devia ser um saco. Eu me chamo Dinah, aliás. 

A garota era bonita, com feições equilibradas e olhar inteligente.

— Camila — disse, com um sorriso. — Prazer em conhecê-la. 

Dinah aguardou pacientemente diante do meu armário enquanto eu catava na bolsa o livro de química, um caderno de espiral e um punhado de canetas. Parte de mim queria chamar Normani e lhe pedir que me levasse para casa. Eu quase sentia seus braços fortes me envolvendo, me escondendo de tudo, e me conduzindo de volta à Byron. Mani tinha um jeito de me transmitir segurança, quaisquer que fossem as circunstâncias. Mas eu não sabia como encontrá-la naquela escola enorme; ela poderia estar atrás de qualquer uma das portas sem número, em qualquer daqueles corredores idênticos; eu não fazia a menor idéia de como encontrar o departamento de música. Repreendi a mim mesma em silêncio pela dependência de Normani. Eu precisava sobreviver aqui diariamente sem a proteção dela e estava decidida a lhe mostrar ser capaz disso. Dinah abriu a porta da sala, e então entramos. Claro, estávamos atrasadas. 

O Sr. Velt era um homem careca e baixinho e tinha uma testa brilhosa. Usava um suéter estampado com formas geométricas que parecia desbotado por excesso de lavagem. Quando Dinah e eu entramos, ele estava tentando explicar uma fórmula rabiscada no quadro para um grupo de alunos, cujas expressões vazias indicavam que eles desejavam estar em qualquer lugar, menos naquela sala. 

— Ainda bem que conseguiu se unir a nós, Srta. Jane — disse ele a Dinah, que logo seguiu de fininho para o fundo da sala. 

Já tendo verificado a lista de chamada, ele parecia saber quem eu era. 

— Atrasada no seu primeiro dia, Srta. Cabello — disse, estalando a língua e erguendo uma sobrancelha em sinal de reprovação. — Não é exatamente um bom começo. Ande logo e sente-se. 

De repente, ele percebeu que se esquecera de me apresentar. Parou de escrever apenas pelo tempo de que precisava para fazer uma apresentação superficial, meio que por obrigação. 

— Gente, esta é Camila Cabello. Como ela é nova na Bryce Hamilton, por favor, façam o possível para que ela se sinta acolhida. 

Quase todos os pares de olhos da sala me viram ocupar o último lugar disponível, que era no fundo, ao lado de Dinah. Quando o Sr. Velt parou de falar e nos disse para resolver o conjunto de questões seguinte, pude estudá-la com mais atenção. Percebi que ela não abotoava o último botão do uniforme e usava argolas grandes de prata nas orelhas. Sacara uma lixa do bolso e lixava as unhas por baixo da mesa, ignorando ostensivamente as instruções do professor. 

— Não ligue para o Sr. Velt — sussurrou ela, vendo meu olhar de surpresa. — Ele é um quadradão, e entrou em parafuso depois que a mulher pediu o divórcio. A única coisa que o faz ir tocando a vida atualmente é aquele conversível novo, que ele dirige como um paspalho. — Ela riu e vi que tinha um sorriso largo e dentes brancos. Usava muito rímel, mas sua pele tinha um brilho natural. — Camila é um nome bonito — prosseguiu ela. — Apesar de meio antiquado. Mas olha, calhei de ser chamada logo de Dinah, como um personagem de um livro infantil ilustrado. 

Sorri sem jeito para ela, não inteiramente certa de como responder a alguém tão seguro e direto. 

— Acho que temos que carregar os nomes que nossos pais escolheram para nós — disse eu, sabendo que era uma tentativa fraca de prosseguir com a conversa. 

Vi que não devia ter falado nada, já que estávamos em aula e toda ajuda era bem-vinda para o pobre Sr. Velt. Falar aquilo também fez com que eu me sentisse uma fraude, já que anjos não tem pais. Por um momento, achei que Dinah ia perceber que eu estava mentindo. Mas ela não percebeu. 

— Então, de onde você é? — perguntou ela, soprando as unhas de uma das mãos e agitando um vidro de esmalte rosa fluorescente. 

— Passamos um tempo morando em outro país — respondi, me perguntando qual poderia ser a reação dela se eu lhe dissesse que eu era do Reino dos Céus. — Nossos pais ainda estão fora. 

— É mesmo? — Dinah parecia impressionada. — Onde? Hesitei. 

— Em lugares diferentes. Eles se mudam muito. 

Dinah pareceu aceitar isto como se fosse bastante comum. 

— O que eles fazem? — perguntou. 

Atrapalhei-me procurando uma resposta. Eu sabia que havíamos discutido isso, mas me deu um branco. Seria típico de mim cometer um erro crucial no primeiro dia como estudante. Então, lembrei o que devia dizer. 

— Eles são diplomatas. Viemos para cá eu e minhas irmãs. Uma delas acabou de começar a dar aula aqui. Nossos pais virão assim que puderem. 

Tentei dar o máximo possível de informações para satisfazer a curiosidade dela e evitar outras perguntas. Não é da natureza dos anjos saber mentir. Torci para que minha história convencesse Dinah. Tecnicamente, tudo aquilo era verdade. 

— Legal — foi tudo o que ela disse. — Nunca viajei para o exterior, mas já fui algumas vezes à cidade grande. É bom você se preparar para uma mudança de estilo de vida em Venus Cove. Costuma se bem frio por aqui, mas as coisas andam meio esquisitas ultimamente. 

— Como assim? 

— Bem, morei aqui minha vida inteira; meus avós também, e eles tinham uma empresa local. E, nesse tempo todo, nunca aconteceu nada de muito ruim; uma ou outra fábrica pegou fogo, e houve alguns acidentes de barco. Mas agora... — Dinah baixou o tom. — há assaltos e acidentes estranhos em todo canto. Houve uma epidemia de gripe no ano passado que matou seis crianças. 

— Que horror — disse eu num fio de voz. Eu começava a ter noção do tamanho dos danos causados pelos agentes das trevas, e aquilo não soava nada bem. — Isso foi tudo o que aconteceu? 

— Há mais uma coisa — disse Dinah. — Mas é preciso ter cuidado ao tocar neste assunto na escola. Muitos garotos ainda estão bem traumatizados com isso. 

— Não se preocupe, vou prestar atenção no que falo — assegurei-lhe. 

— Bem, uns seis meses atrás, um dos garotos do último ano, Harry Styles, subiu no telhado para pegar uma bola de basquete que tinha caído lá. Ele não estava matando aula nem nada, só queria pegar a bola. Ninguém viu como aconteceu, mas ele escorregou e caiu. Caiu bem no meio da quadra. Os amigos dele viram tudo. Como nunca conseguiram fazer a mancha de sangue desaparecer completamente, ninguém joga mais naquela quadra. 

Antes que eu pudesse responder, o Sr. Velt pigarreou e nos lançou um olhar fuzilante. 

— Srta. Jane, presumo que esteja explicando à nossa aluna nova o conceito de ligação covalente. 

— Hum, não exatamente, Sr. Velt — respondeu Dinah. — Não quero matá-la de tédio no primeiro dia. 

Vi uma veia pulsar na testa do Sr. Velt e percebi que talvez eu devesse intervir. Canalizei uma energia apaziguadora para ele e observei com satisfação enquanto ele ia ficando menos irritado. Seus ombros pareceram relaxar, e sua face perdeu aquela avidez, recuperando um tom mais natural. Ele olhou para Dinah e deu uma risada tolerante, quase paternal. 

— Seu senso de humor é infalível, Srta. Jane. 

Dinah pareceu confusa, mas era esperta o suficiente para se abster de fazer outros comentários. 

— Minha teoria é que ele está tendo uma crise de meia-idade — sussurrou-me ela. 

O Sr. Velt não fez caso de nós e se ocupou de montar o projetor de slides. Gelei por dentro e tentei sufocar uma onda crescente de pânico. Nós, anjos, éramos bastante radiosos à luz do dia. No escuro era pior, mas dava para disfarçar. Contudo, na luz alógena de um projetor de teto, quem sabia o que poderia acontecer? Decidi que era melhor não arriscar. Pedi licença para ir ao banheiro e saí de fininho. Fiquei do lado de fora, esperando o Sr. Velt terminar a apresentação e acender as luzes. Dava para ouvir com perfeição o clique dos slides sendo trocados, e, pelo painel de vidro da porta da sala, eu via que demonstravam uma descrição simplificada da teoria de ligação de valência. Ainda bem que eu não teria de estudar coisas básicas assim para sempre. 

— Está perdida? 

A voz veio de trás de mim, sobressaltando-me. Virei e vi uma garota encostada nos armários em frente à porta. Embora parecesse mais formal com aquele uniforme, não dava para confundir aquele rosto nem os cabelos pretos jogados de um lado só e os olhos extremamente verdes. Eu não esperara topar com ela de novo, mas a garota do píer estava parado bem na minha frente, com o mesmo sorriso maroto. 

— Estou bem, obrigada — disse eu, afastando-me o mais rápido que pude. Se me reconhecera, não estava demonstrando. Esperei que o fato de eu lhe virar as costas, com toda grosseria que há nisso, cortasse a conversa. Ela me pegara desprevenida, e algo nela me deixava sem saber para onde olhar e o que fazer com as mãos. Mas ela parecia não parecia ter pressa. 

— Sabe, a maneira mais convencional de aprender é dentro da sala de aula. 

Fui obrigada a me virar e então acusar a presença dela. Tentei transmitir minha relutância em conversar com um olhar frio, mas, quando meus olhos encontraram os dela, algo completamente diferente aconteceu. Tive uma reação física instantânea, sentindo um frio na barriga e a sensação de que o mundo estava fugindo dos meus pés e que eu tinha que me equilibrar para não cair com ele. 

Devo ter ficado com uma expressão de quem estava prestes a desmaiar, porque num ato involuntário ela estendeu o braço para me apanhar. Vi a tira de couro trançado que ela usava no pulso, o único item que destoava da sua vestimenta, que, afora isso, era tradicional. 

A lembrança que eu tinha dela não lhe fazia jus. Ela tinha a beleza impressionante de uma modelo, mas sem qualquer vestígio de vaidade. Sua boca se contraía num meio sorriso, e seus olhos límpidos tinham uma profundidade que eu não percebera da primeira vez. Ela me olhava como se quisesse me ajudar mas não soubesse bem como, e, quando olhei fixamente para ela, percebi que seu poder de atração estava ligado tanto à sua postura quanto a suas feições regulares e pele macia. Desejei que me ocorresse uma resposta à altura da confiança que ela transmitia, mas não consegui pensar em nada. 

— Só estou um pouco tonta, não é nada de mais — murmurei. 

Ela chegou mais perto, ainda com um ar preocupado. 

— Quer se sentar? 

— Não, agora estou bem. — Balancei a cabeça de modo decidido. 

Convencida de que eu não ia desmaiar, ela estendeu a mão e me abriu um sorriso deslumbrante. 

— Não tive chance de me apresentar da última vez que nos vimos. Sou a Lauren. 

Então ela não esquecera. 

Sua mão era bem quente. Ela segurou a minha por uma fração de segundo a mais. Lembrei-me do que Normani dissera a respeito de evitar interações humanas arriscadas. Sinos de alerta soaram na minha cabeça enquanto eu franzia o cenho e puxava a mão de volta. Não seria exatamente uma decisão sábia fazer amizade com uma garota com essa beleza absurda e esse sorriso de cem watts. A palpitação no meu peito quando eu olhava para ela me dizia que eu já estava em maus lençóis. Eu estava aprendendo a ler os sinais enviados pelo meu corpo e sabia que essa garota estava me deixando tensa. Mas havia o sinal de outro sentimento, um que eu não conseguia identificar. Afastei-me dela, recuando em direção à porta da sala, onde vi a luz acabar de ser acesa. Eu sabia que estava sendo indelicada, mas estava muito nervosa para importar. Lauren não pareceu ofendida, apenas intrigada com meu comportamento. 

— Sou Camila — consegui dizer, já passando pela porta. 

— A gente se vê, Camila. 

Fiquei vermelha como um pimentão quando voltei para o laboratório de química, e o Sr. Velt me lançou um olhar incriminatório por ter demorado no banheiro. 


Na hora do almoço, percebi que a Bryce Hamilton  era um campo minado de projetores de slides e outras armadilhas planejadas para flagrar anjos disfarçados como eu. Na aula de ginástica, tive um pequeno ataque de pânico quando percebi que deveria ser normal eu trocar de roupa na frente das outras meninas. Elas se despiam sem pensar duas vezes e jogavam a roupa nos armários ou no chão. Dinah embaraçou as alças do sutiã e me pediu ajuda, o que eu fiz nervosamente, esperando que ela não notasse a maciez sobrenatural das minhas mãos. 

— Uau, você deve passar litros de hidratante — disse ela. 

— Toda noite — retruquei, sem dar muita importância. 

— Então, o que está achando do pessoal da Bryce Hamilton? As pessoas são quentes o suficiente para você? 

— Eu não diria quentes - disse intrigada. - A maioria deles parece ter uma temperatura corporal normal. 

Dinah ficou me olhando. Parecia prestes a rir de mim, mas minha expressão a convenceu de que eu não estava tentando ser engraçada. 

— Quente significa bonito — explicou ela. — É sério que você nunca ouviu isso antes? Onde ficava a sua última escola? Em Marte? 

Corei assim que entendi o significado da pergunta original que ela havia feito. 

— Ainda não cheguei a conhecer ninguém — falei encolhendo os ombros. — Apenas dei de cara com uma garota chamada Lauren . 

Torci para que conseguisse soar descontraída quando mencionasse o nome dele na conversa. 

— Que Lauren? — indagou Dinah, agora toda ouvidos. — É a loira? Ela é bem quente. Eu não censuraria você por gostar dela, mas acho que talvez ela seja hetero. Não tenho certeza. Eu poderia tentar descobrir. 

— Ela tinha cabelos pretos — cortei-a — e olhos verdes. 

— Ah. — A expressão de Dinah mudou. — Essa deve ser a Lauren Jauregui. Ela é a aluna representante da escola. 

— Bem, ela pareceu simpática. 

— Eu não ficaria atrás dela se fosse você — aconselhou ela. 

Ela assumiu uma expressão preocupadíssima, mas senti que ela esperava que eu aceitasse seu conselho a qualquer custo. Talvez esta fosse uma das regras no mundo das adolescentes: as amigas sempre têm razão. 

— Eu não estou atrás de ninguém, Dinah — disse, mas não resisti a perguntar. — Mas por quê? O que há de errado com ela? 

Parecia impossível que a garota que eu conhecera pudesse ser qualquer outra coisa senão pperfeit. 

— Ah, ela é bem boazinha — respondeu Dinah — mas digamos apenas que tem uma bagagem. 

— O que significa isso? 

— Bem, um monte de garotas anda há séculos tentando chamar a atenção dela, mas ela está emocionalmente indisponível. 

— Quer dizer que ela já tem namorada? 

— Teve. O nome dela era Lucy. Mas ninguém conseguiu consolá-la desde que... — Ela deixou a frase no ar. 

— Elas terminaram? 

— Não. — Dinah baixou o tom de voz e torceu os dedos, incomodada. — Ela morreu num incêndio há pouco mais de um ano. Antes disso, elas eram inseparáveis, as pessoas falavam que elas iam casar e tudo. Ninguém conseguiu estar à altura dela. Acho que até hoje ela não superou isso. 

— Que coisa terrível! — exclamei. — Ela devia ter apenas... 

— Dezesseis anos — terminou Dinah. — Ela era muito amigo do Harry também. Falou nos funerais. Acabava de se recuperar da Lucy quando aconteceu. Todo mundo meio que esperava que ela desmoronasse, mas ela só se fechou emocionalmente e foi levando. 

Eu não sabia mais o que dizer. Olhando para a expressão de Lauren, era impossível adivinhar a dor que ela deve ter suportado, embora me lembrasse de que havia um ar ligeiramente cauteloso em seus olhos. 

— Ele está bem agora — disse Dinah. — Ainda é amiga de todo mundo, ainda joga no time de rúgbi feminino e treina as nadadores da primeira série. Não é que não seja capaz de sorrir, mas relacionamentos são um pouco demais para ela. Acho que ela não quer se envolver de novo depois do azar que teve. 

— Acho que não se pode censurá-la — disse eu. 

Dinah de repente notou que eu continuava de uniforme, e seu tom sério se desanuviou. 

— Vá logo trocar de roupa — apressou-me — Você é tímida, por acaso? 

— Só um pouquinho. 

Sorri para ela e entrei num boxe de chuveiro. 

Meus pensamentos sobre Lauren Jauregui foram interrompidos assim que vi o uniforme esportivo que teria que usar. Cheguei a cogitar pular a janela e fugir. O uniforme não ajudava em nada; o short era muito curto, e a parte de cima subia tanto que eu mal conseguia me mexer sem mostrar a barriga. Seria um problema durante os jogos ver que nós anjos não tínhamos umbigo — só uma pele macia, sem sardas nem celulite. Felizmente, minhas asas (de plumas, mas finas como folhas de papel) dobravam-se e ficavam achatadas nas minhas costas de modo que eu não precisava me preocupar com a possibilidade de elas ficarem à vista, mas começavam a me dar cãibra por falta de exercício. Eu mal podia esperar o voo da pré-aurora nas montanhas que Normani nos prometera para breve. 

Puxei o top para baixo o máximo que pude e fui me juntar-me a Dinah, que estava diante do espelho aplicando uma camada generosa de brilho nos lábios. Eu não sabia ao certo por que ela precisava pôr brilho nos lábios para a aula de ginástica, mas quando ela me ofereceu o pincel aceitei, não querendo parecer indelicada. Eu não sabia muito bem como usar o aplicador, mas consegui passar uma camada bastante irregular. Presumi que fosse algo que exigisse prática. Diferentemente das outras garotas, eu não andara experimentando os cosméticos da minha mãe desde os cinco anos. Eu sequer sabia como era meu rosto humano até pouco tempo. 

— Esfregue um lábio no outro — disse Dinah. — Assim... 

Imitei-a e vi que o movimento suavizava o brilho, me deixando com menos cara de palhaço. 

— Está melhor — disse ela num tom de aprovação. 

— Obrigada. 

— Acho que você quase nunca usa maquiagem. 

Balancei a cabeça confirmando que não. 

— Bem, não é que você precise. Mas essa cor vai bem em você. 

— Tem um cheiro incrível. 

— É sorvete de melão. 

Dinah pareceu satisfeita consigo mesma, depois se distraiu com alguma coisa e começou a farejar o ar. 

— Está sentindo esse cheiro? — perguntou. 

Contraí-me, numa onda súbita de insegurança. Será que era eu? Seria possível que tivéssemos um cheiro horrível para as pessoas na Terra? Será que Ally pulverizara minhas roupas com uma espécie de perfume que era inaceitável socialmente no mundo de Dinah? 

— É um cheiro de... chuva ou algo assim — disse ela. 

Relaxei imediatamente. O cheiro que ela sentia era só o cheiro característico dos anjos, e chuva era uma boa descrição da parte dela. 

— Não seja boba Dinah — disse uma de suas amigas. Veronica, acho que era o nome dela, pelo que me lembrava de apresentações apressadas anteriores. — Não está chovendo aqui, ora.

Dinah deu de ombros e puxou minha manga, conduzindo-me do vestiário ao ginásio, onde uma loira já na casa dos cinqüenta com um rosto devastado pelo sol e bermuda de lycra dava pulinhos e gritava para que nos deitássemos e fizéssemos vinte flexões. 

— Professores de ginástica não são simplesmente figuras irritantes? — perguntou Dinah revirando os olhos. — Eles são tão... pra cima o tempo todo... 

Não respondi, mas, considerando o olhar inflexível da professora e a minha falta de entusiasmo atlético, provavelmente iríamos nos dar muito bem. 

Meia hora depois, tínhamos dado dez voltas na quadra, feito uma série de cinqüenta flexões de braço, perna, abdominais e agachamentos, e aquilo era só o aquecimento. Fiquei com pena das outras alunas, andando cambaleantes com o peito arfando e camisas molhadas de suor. Os anjos não se cansavam; nossa energia era ilimitada, portanto não precisava ser conservada. Não transpirávamos, também; podíamos correr numa maratona sem produzir uma gota de suor. Dinah de repente se deu conta disso. 

— Você não está nem ofegando! — disse ela num tom de acusação. — Nossa, você deve realmente estar em ótima forma física. 

— Ou usar um desodorante muito bom - acrescentou Veronica, virando sua garrafa d’água no decote. 

O gesto chamou a atenção de um bando de meninos próximos, que ficaram olhando embasbacados para ela. 

— Está ficando quente aqui — provocou, desfilando diante dos garotos com a blusa transparente até a professora de ginástica ver o espetáculo e partir para cima de nós como um touro enraivecido. 

O resto do dia passou sem maiores incidentes, a não ser pelo fato de que me vi andando pelos corredores na esperança de deparar novamente com a aluna representante da escola, a menina chamada Lauren Jauregui. Em vista do que eu ficara sabendo sobre ela por Dinah, estava envaidecida por ela ter prestado alguma atenção em mim. 

Pensei em nosso encontro no píer e me lembrei de ter ficado maravilhada com os olhos dela — um verde tão brilhante e tão espantoso. Eram do tipo que não dava para fitar por muito tempo sem sentir as pernas ficarem bambas. Eu me perguntava o que poderia ter acontecido caso tivesse aceitado seu convite e me sentado ao lado dela. Será que teríamos conversado enquanto eu tentava pescar? O que teríamos dito? 

Sacudi meus pensamentos. Não foi por isso que eu fora enviada à Terra. Prometi a mim mesma que, daquele dia em diante, não pensaria mais em Lauren. Se eu a visse por acaso, a ignoraria. Se ela tentasse falar comigo, daria respostas superficiais e me afastaria. Resumindo: eu não permitiria que ela tivesse qualquer efeito sobre mim. 

Nem preciso dizer que o plano foi um completo fracasso.


Notas Finais


Último capítulo de hoje 😊
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