96 d.C – Província de Nápoles, Imperium Romanum
(18 anos depois)
Narrador
-- Droga!
Os primeiros raios da manhã surgiam por detrás dos montes, iluminando o céu de Nápoles. Ali, no segundo andar de uma velha casa de campo, uma jovem morena estava sentada no chão, massageando a testa que ficara vermelha após uma queda de 3 metros.
O barulho deveria ter sido alto porque, segundos depois, uma mulher mais velha adentrou o quarto.
-- Luna, minha querida. Já te pedi para ter mais cuidado! – Gianni, sua mãe, abraçou a caída. – Qualquer dia você vai se machucar a sério caindo do teto até o chão!
-- Eu não tenho culpa se adormeço e esse maldito sol nasce e me transforma enquanto estou dormindo! É normal as aves dormirem no alto, não no chão à mercê de predadores, e no fim das contas eu também sou uma ave. – explicou, sussurrando.
-- Entendo perfeitamente. – a mãe observou a vermelhidão na testa da filha, beijando o local que em breve adquiriria a cor normal. – Estarei lá embaixo, seu pai já vai sair para trabalhar e eu estou fazendo companhia enquanto ele come o desjejum. – a mais velha se levantou. – Vista-se. Já troquei a água de lavar o rosto, pode arrumar seus cabelos também.
-- Gratia, mama. *(obrigada, mãe)
Ela sorriu amável para a filha e, depois de beijar o alto dos cabelos castanhos, se conduziu ao seu marido. Martino estava assentado sobre os mantos no chão, bebendo chá num pequeno vaso e mordendo partes de um pão de milho.
-- Aquela menina é uma dádiva para nós. – ouviu sua esposa se aproximando.
-- Luna é um verdadeiro presente. Igual você, angelus. *(anjo) – com esse elogio, a mulher selou os lábios de seu marido. – Bom, irei trabalhar. Hoje tenho grandes expectativas para o trabalho na sapataria. Em breve teremos dinheiro para aumentar os cômodos dessa casa e torná-la mais arejada.
-- Que maravilhoso! – uma voz, que não era a de Gianni, respondeu. – Bom dia, papa.
-- Bom dia, minha princesa. – a mais nova beijou o alto da mão de seu pai em sinal de respeito, de seguida ajudou Martino Frozzo a levantar-se e o acompanhou à porta. – Tenham um bom dia!
-- Você também!
As mulheres viram quando ele montou em seu cavalo e galopou pelos trihos principais, indo em direção à cidade. Sorrindo, voltaram ao interior da habitação, comentando coisas aleatórias enquanto limpavam o chão e o forno, regavam as plantas e moíam algum trigo para assar mais pães.
*
-- Luna, preciso que vá à cidade comprar algumas coisas.
A mais jovem pegou a capa avermelhada, e guardou as três moeadas de prata que Gianni dera, juntamente com uma lista verbal de itens para comprar, onde incluíam centeio, vinho, tâmaras e uvas. Luna assentiu, relembrando tudo e se apressando pelos caminhos que dariam ao centro de Nápoles.
O centro da cidade era extremamente diferente do campo: ruas apertadas e abarrotadas de edifícios, pessoas conversando animadas, senhores e seus escravos, bancas com variadas frutas vindas de todo o império, gritos de crianças, galinhas e pombos engaiolados para venda; e bares, muitos bares onde trabalhadores e viajantes faziam uma pausa a meio do dia.
A menina já estava acostumada com a movimentação citadina, mas amava a calmaria do campo, tanto as falésias e a vista para o mar como os montes do interior onde voava livremente. As lembranças da vista aérea fez brotar um sorriso em seus lábios rosados, mas esse sorriso tão doce roubou a atenção de um par de soldados que fazia uma ronda pela rua movimentada. O mais alto deles, com um olhar misterioso, estreitou os olhos de tonalidade mais clara, ao observar a morena que agora fazia um carinho num coelho.
Um irônico sorriso emoldurou os lábios do homem, mas desapareceu quando foi chamado pelo colega.
-- Enfeitiçado pela jovem moça, Filippo?
-- É muito bela, mas não tenho segundas intenções. – olhou para o romano. – Presumo que você também não, Gianluca.
Apesar do tom descontraído, a ameaça subliminar para não tocar a menina era bem perceptível. Filippo, como se chamava o feiticeiro, lembrava-se todos os dias da alma roubada de uma pequena bebê rica, porém não tinha ideia de que a reencontraria quase 17 anos mais tarde e a visse tão bela em seus traços femininos. Como a reconheceu não sabia, mas tinha a certeza que era ela.
Luna se sentiu observada e ergueu o olhar na direção do homem que nem assim deixou de a estudar. Ela fitou com especulação o soldado romano, vendo de relance os braços torneados e muito levemente bronzeados, antes de parar nos olhos tão exóticos dele. Deuses, que misteriosos olhos! Por milésimos de segundos a menina pensara que ele poderia ter visto a sua alma e o mais profundo da sua existência, então, envergonhada, virou de costas, agarrando sua bolsa de couro desgastado e saindo em passos largos até encontrar uma esquina e mudar de direção.
-- Aquele soldado... – ela murmurou sozinha, dando uma última verificada para trás e ver que já tinha saído do perímetro de visão dele. – Porra, Luna! É só um rosto bonito!
Se repreendeu e olhou para a frente novamente, sendo totalmente surpreendida pelo homem perante si. A menina abriu a boca um par de vezes para falar mas nada saiu. Como ele apareceu tão rápido na sua frente sendo que ela acabara de o deixar para trás!?
Confusa, fitou o par de íris azuis, completamente fascinada por ver olhos tão claros e tão distintos dos demais; mas quando o seu olhar desceu para os lábios finos, a jovem pareceu sair do transe e baixou a cabeça, submissa ao soldado. Afinal ele era homem e as mulheres deviam submissão aos homens; era assim que estava estipulado em todo o Imperium Romanum. Mas aqueles lábios...
-- Dimitte me, dominus. *(perdão, senhor) Eu não quis parecer mal educada.
O capuz do manto da moça cobria ainda mais a face morena, pelo que, movido de uma necessidade estranha de olhar nos olhos castanhos dela, o feiticeiro pegou a abertura do capuz, puxando para trás. A menina moveu as sombrancelhas em sinal de desintendimento e ergueu o olhar para ele.
-- Você está sozinha?
-- Sim, senhor. – ela foi rápida e sucinta. Nunca esteve perante um homem tão bonito como ele, e seria um perigo se sentir atraída por tal beleza pertencente ao exército: a sua morte, caso ele descobrisse o segredo, era certeira. – Com licença, preciso ir.
Luna cobriu a cabeça com o capuz e ajeitou suas compras depressa, a fim de sair o mais rápido possível daquele local, evitando outro encontro com o inédito homem.
*
-- Filha, poderia moer esse centeio? – Gianni perguntou, atarefada enquanto amassava a massa de trigo para fazer um bolo.
-- Claro, mama.
Caminhou para as traseiras da casa, pensando na sua ida ao centro da cidade. As pupilas azuis continuavam martelando a mente da romana. Soldado... Essa palavra nunca soou tão interessante aos olhos de Luna; a vontade de procurá-lo, assim que o sol se pusesse invadiu a mente feminina, mas essa ideia era tão absolutamente absurda...!
-- Luna! – a jovem deu um pequeno pulo de susto. – O que está fazendo?
-- Estou colhendo folhas de hortelã que você pediu.
-- Pedi? – a mãe fez uma careta, a seguir suspirou buscando paciência. – Amor, eu pedi que moesse centeio.
A adotada olhou para a mó1 e depois para a planta na sua frente. Envergonhada, encarou sua mãe com um sorriso amarelo nos lábios.
-- Me distraí. Desculpa, mama.
-- Você está muito distraída desde que chegou da cidade... Aconteceu alguma coisa?
-- Não! – respondeu muito rápido. – É para moer o saco todo?
Como mãe, a mais velha sabia perfeitamente que tinha acontecido alguma coisa, mas por hora não iria insistir. Luna, por sua vez, afundou seus pensamentos dedicados a um certo homem no mais profundo de sua consciência, se focando nas tarefas que a esposa de Martino pedira para fazer.
Ao menos a moça havia conseguido se concentrar enquanto moía o centeio, pois Filippo, no entanto, bem tentava ficar descontraído, respondendo ao que Gianluca falava, embora sua atenção estar a distâncias desconhecidas dali.
Tantas vezes pensara em como estaria a filha daquela romana rica, tantas vezes cogitou como a bebê teria morrido nas mãos da nova família... Mas para seu espanto, ela tinha crescido, aparentemente saudável, inteligente e esperta; ainda assim seu rosto jovial era algo que chamara a sua atenção, principalmente o sorriso doce. Estaria casada? Viveria com sozinha? E qual seria seu aspecto transformada? Eram tantas perguntas, tanta vontade de descobrir mais sobre ela, que o feiticeiro se puniu pelo interesse em alguém tão insignificante e amaldiçoado, mas ainda assim uma bela criatura.
Respirou fundo, tentando esquecer um pouco a menina que vira.
– Voltemos para a base - falou para Gianluca - a cidade está em paz, sob as ordens dos superiores. Em breve o sol declinará e a maioria irá para os campos.
O outro concordou. Uma hora depois, ambos estavam dispensados, aparentemente felizes por irem para casa, porém, o de olhos claros tinha uma ideia melhor.
Escondeu-se na traseira do quartel romano; de seguida, apontou com o um par de dedos pelo seu corpo ao mesmo tempo que se transformava num cão selvagem e resgatava da sua mente o perfume suave da menina morena, decidido a ir atrás dela.
*
Tudo estava preparado e o centeio tinha sido moído. Com ele, Gianni usaria para fazer um delicioso bolo, juntamente com a cenoura colhida do quintal, ovos e gordura que Luna havia comprado nessa tarde. A garrafa de vinho adquiria baixas temperaturas enterrada na terra úmida do quintal; o aniversário de 18 anos da menina, no dia seguinte, seria festejado com muito carinho.
A plebéia mais velha deu à filha parte de um caldo com grão de bico, salsa e alho. Era o jantar, e apesar de estar o dia ainda claro, a mais nova comia antes que o pôr do sol se achegasse.
-- Já vou para o quarto, mama. Daqui a pouco... Você já sabe.
- Claro!
A jovem subiu ao pequeno quarto do andar de cima, abraçando a mãe com tamanho amor, como fazia momentos antes de cada anoitecer. Depois de um minuto regado de carinho, a garota retirou a fita vermelha de sua cintura para despir de seus vestidos beges.
Estava a aproximar-se.
Não tendo vergonha da mãe, Luna ficara totalmente nua, sentindo sua pele exposta. Em silêncio, Gianni destrançou os fios castanhos da filha, e então, beijou o alto da cabeça dela, observando o sol começando a esconder-se ao longe, no mar.
-- Te amo, mama.
A famosa e inconfundível luz esverdeada surgiu ao redor do corpo da adolescente. A senhora Frozzo deu alguns passos para trás, no tempo em que o feixe luminoso cobria todo o corpo. Os braços humanos se abriam em longas asas. A cabeça, bem como as pernas, diminuíam de tamanho até atingirem a silhueta perfeita de uma grande Harpia. Finalmente o clarão desapareceu, ficando a ave de 60 cm de altura no meio do quartinho.
O animal olhou para a humana que sorriu e se aproximou do mesmo, fazendo um carinho nas penas.
-- Também te amo, filha. – a ave de rapina fez uma espécie de curta vênia e voou para o parapeito da janela. Lá ao longe, o sol ainda se escondia lentamente no mar. Ela olhou uma última vez para a mãe e bateu as asas, deixando a mais velha para trás.
Toda essa movimentação passava despercebida a todos, de modo a que ninguém sequer desconfiava da maldição da jovem. Mas mesmo sabendo disso, um certo cão selvagem observava ao longe o momento em que uma harpia saíra de dentro de uma habitação.
É ali, pensou. É ali que a criança vive.
Com um gesto, o corpo de mamífero fora substituído pelo de um corvo. Filippo bateu suas asas e seguiu o leve vôo da ave amaldiçoada, disposto a examinar cada movimentação da menina cuja alma o próprio roubara para si.
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