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História Hereafter - Eternidade - Capítulo DOIS


Escrita por: opsjeliebers

Capítulo 3 - Capítulo DOIS


Minha primeira impressão sobre a cena estava errada. A água não estava totalmente escura. Uma luz baça reluzia sobre a superfície – talvez da lua, porque era cinzenta demais para ser do sol. Abaixo de mim, dois fachos de uma luz amarelada mortiça pareciam despontar dar profundezas do rio.

Não, não era bem isso. Esses fachos estavam virados para cima, mas se afastando. Olhei de relance para baixo e percebi que eles vinham de uma coisa enorme e escura sob mim. Essa coisa – um carro, com seus faróis cortando a escuridão – estava afundando com uma sinistra lentidão.

Balancei a cabeça. Na verdade, eu não estava nem ai para o carro; minha atenção se focou no garoto iluminado pelos seus faróis.

Seu corpo estava na forma de um X, com os braços soltos boiando para cima e seus pés ainda de tênis, esticados. Ele estava com a cabeça baixa, mas pude ver que seus olhos estavam fechados.

Esse garoto não estava se debatendo, nem tentando nadar de volta para cima, e eu de repente me dei conta de uma coisa terrível. Ele estava inconsciente. Mas não era o tipo de inconsciência que atormentava os mortos, e sim aquele que mata os vivos.

Se esse garoto não acordasse, ele iria se afogar.

Sem pensar em mais nada, nadei até ele o mais rápido que pude. Quando cheguei mais perto, pude ver seu rosto por inteiro. Ele era jovem, quase da mesma idade que eu quando morri. Seu rosto inerte parecia tranquilo. Ele era muito bonito.  Dava pra ver isso bem, mesmo embaixo d’água. Seu cabelo loiro pairava sobre sua cabeça, quase lânguido, apesar da turbulenta correnteza. Uma ideia repentina e boba me veio à mente: seus braços abertos pareciam asas. Asas inúteis, agora. Comecei a me perguntar, quase sem perceber, se meus braços teriam ficado como os dele quando morri.

Meus pensamentos se tornaram tão rápidos quanto intensos. Aquele garoto não podia morrer. Eu não podia simplesmente ficar ali parada, vendo sua morte. Não ali, não daquele jeito.

Fui para cima dele, tentando em desespero agarrar suas roupas e seus membros para arrastá-lo de volta à superfície. Puxei sua camisa de manga comprida, seu jeans e até seus cabelos claros.

Tentei e tentei, mas não aconteceu nada, é claro. Minhas mãos mortas e inúteis não tinham como tocá-lo, como salvá-lo. Foi quando como me debati na água na noite da minha morte – nada que eu fizesse poderia evitar o resultado daquela cena. Eu me senti impotente, inútil, e mais ciente do que nunca do fato de que estava morta.

Caí então no meu choro sem lágrimas e coloquei minhas duas mãos em seu peito. Enquanto afundávamos no rio, pude ouvir uma coisa com toda clareza: as batidas cada vez mais fracas do seu coração.

Até onde eu sabia, eu não tinha nenhum sentido sobrenatural. Por mais que alguns dos meus sentidos humanos tivessem sobrevivido à minha morte – como a visão e a audição, claro -, não conseguia sentir mais nenhum cheiro, gosto ou toque de nada no mundo dos vivos. O que restou dos meus sentidos não tinha enfraquecido, mas também não tinha se aguçado.

Por isso mesmo o som do coração dele me deixou chocada. Eu não devia estar ouvindo aquilo tão bem, mas estava. Mesmo com mais de um palmo de água entre nós e minha audição normal, podia ouvir suas batidas claramente como se eu estivesse colocando um estetoscópio em seu peito.

Fiquei pensando se isso tinha alguma coisa a ver com a morte. Com estar morta. Talvez os mortos pudessem ouvir seus semelhantes chegando, vindo de repente para o nosso mundo. Ou bem devagar, neste caso.

Continuamos afundando, enquanto seu frágil coração batia erraticamente rumo a morte. Cada batida ecoava mais fraca do que a anterior, até que finalmente...

Seu coração engasgou de uma vez. Depois de novo. E então não ouvi mais nada. Uma bolinha de ar escapou pelo canto de seus lábios e boiou água acima.

Eu gritei. Gritei como nos primeiros instantes da minha própria morte, revoltada e humilhada com minha própria impotência. Gritei e bati com minhas mãos inúteis em seu peito.

Foi então que seus olhos se abriram.

Ele olhou de um lado para o outro, assimilando onde estava. E então olhou para mim. Olhou bem nos meus olhos.

Fiquei paralisada. Será que ele... podia me ver?

Ele sorriu e então ergueu a mão para tocar no meu rosto. Senti sua pele, quente contra a minha. Sem pensar em nada, pus minha mão sobre a sua. Seu sorriso se alargou quando fiz isso.

Ele estava me vendo, sim.

Ele me viu, ele me viu, ele me viu!

Meu coração inerte e morto foi às alturas. E o dele também.

Seu coração – que eu tinha acabado de ouvir morrer – bateu, e depois de novo. Essa nova batida ecoou fraca e irregular no começo, mas logo depois começou a se estabilizar.

Ele olhou para o próprio peito, e depois de volta para mim, com as sobrancelhas arqueadas e um ar de surpresa ao perceber o som que vinha ali de dentro.

Em seguida, tossiu. Esse movimento sacudiu seu corpo e fez bolhas de ar escaparem de sua boca.

Ele começou a se debater. Enquanto isso, percebi que não estava mais ouvindo seu coração. O som tinha sumido, pelo menos para mim. Mesmo assim, ele estava todo agitado, lutando contra a água escura. Continuou a tossir violentamente enquanto seus pulmões voltavam a funcionar. Em meio à água revolta, pude ver sua expressão. Parecia irritado, em pânico e desespero.

Reconheci aquele olhar. Eu mesma já tinha sentido aquilo. Aquele garoto estava vivo. Estava vivo e não queria morrer.

- Nade! – gritei, de repente. – Para cima! Para fora daqui!

Ele não olhou para mim, mas começou a bater as pernas e sacudir os braços pela água sobre sua cabeça, como se estivesse tentando se arrastar para fora de um buraco. E ao contrário dos meus próprios esforços na noite da minha morte, os dele surtiram efeito. Ele começou a flutuar rumo à superfície do rio.

Nunca tinha me sentido tão aliviada. Nem mesmo depois de acordar um milhão de vezes dos meus pesadelos. Nem mesmo depois de um milhão daqueles fôlegos que provavam que eu não estava mais me afogando.

- Para cima! – gritei de novo, desta vez com alegria.

Ele continuou a subir pela água, sem olhar nem uma única vez para mim ou reparar no som da minha voz enquanto o seguia sem esforço. Talvez para ele, eu tivesse voltado a ser diferente... morta. Mas naquela hora aquilo não tinha a menor importância para mim. Ele iria se salvar. Não iria morrer naquele abismo frio e escuro como eu. Isso já era mais do que o bastante para me alegrar.


Notas Finais


Comentem se gostaram... um beijo!


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