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História Identidade - "...nem preto e nem branco..."


Escrita por: ISBB5H

Capítulo 1 - "...nem preto e nem branco..."


Twitter: ISBB5H

 

Homens constroem casas, prédios e monumentos. Torres, redes elétricas e computadores. Vírus, curas e próteses. A Muralha da China, as Torres Gêmeas e o Cristo Redentor. Mas a construção básica e primária de todo ser humano é a de si mesmo. É aí em que muitos se perdem… Sobre a falsa estabilidade de um “eu”, que nem sempre basta para simplesmente se viver.

Sim, para alguns é mais difícil a tarefa de “simplesmente viver”. Sim, para alguns é mais difícil construir a si mesmo.

O mundo existe e funciona conforme o regimento de certas regras. Acordos sociais criados para facilitar o entendimento de todas as coisas, mas quando foi mesmo que o mais fácil foi também o mais justo? Ou o melhor? No mundo do código binário, dos pontos cartesianos, dos decimais, das horas e do certo e errado, só se consideram os extremos. A dita perfeição. Sim ou não. Novo ou velho. Homem ou mulher. Preto ou branco. Mas para onde vão todas as outras cores? Para onde vão, o que são ou onde se encaixam aqueles que não são nem um nem outro? Nem preto e nem branco. Nem completamente homens e nem completamente mulheres.

Seus dedos passeavam pela longa prateleira empoeirada como um carro a trepidar na estrada de terra. Os olhos sempre muito atentos seguiam, absorviam e classificavam os títulos da direita para a esquerda, enquanto a cabeça, essa discretamente inclinada, usava da posição para facilitar a leitura. – Onde, onde, onde… – Com impaciência buscava por um único exemplar que lhe pudesse ser útil, mas novamente lembrou-se do aviso do bibliotecário há alguns minutos. Alunos do programa de Saúde iniciariam seu ciclo de provas nessa semana, o que tornava acirrada a disputa pelos volumes buscados. – Que merda! Droga! – Os gritos chamaram a atenção de alguns dos estudantes mais próximos, mas Lauren nem ao menos se importou. Tratou de marchar para longe do corredor fixando seus olhos na única cadeira ainda disponível na biblioteca, decidida a esperar até o horário limite para a devolução dos livros, e quem sabe com sorte conseguiria algum que lhe fosse útil. Puxou o banco empurrando com o quadril uma pequena garota que havia acabado de surgir em seu campo de visão. Sentou-se ligeira e ignorou a mulher bufando atrás de si. – O que você quer?! – Reclamou ao sentir um empurrão nos ombros, mas no instante em que se virou seus olhos caíram diretamente sobre a pilha de livros grossos que a pequena mulher levava abaixo do braço.

– Garota grossa! Essa cadeira é minha! – Disse a menor. Se encaravam com desdém.

Lauren em qualquer outro dia teria a ignorado evitando uma discussão. Era boa em ignorar pessoas, muito boa. Raramente se interessava por elas. Pessoas a deixam entediada. Mas hoje não, hoje ela realmente queria aqueles livros.  – Uma pena que eu tenha chegado primeiro. – Rebateu com firmeza. – A propósito, esses livros aí debaixo do seu braço… Os títulos muito me interessam. Vai devolvê-los? Se sim, gostaria que os deixasse comigo. – Esse não era um pedido absurdo afinal, não é mesmo? Se a menor devolveria os títulos à biblioteca, a maior poderia muito bem ser poupada do trabalho de ir até o balcão para locá-los, ainda sob o risco de ter que esperar pelos volumes na longa lista prioritária. – Terei uma prova de patologia em 40 minutos e preciso estudar. Pode deixá-los comigo? – Mentiu descaradamente e insistiu referindo-se aos livros. A outra nada respondeu. Parecia chocada com cada palavra que saía da boca da maior. – Você perdeu a fala ou o que?

– Prova do professor Turner no primeiro horário? – Camila finalmente perguntou. Estava sim chocada com o comportamento rude da morena de olhos verdes. Não se lembrava de tê-la visto antes, mas isso era normal, certo? São muitos os alunos em seu bloco. – Eu ouvi de uma prova de patologia em poucos minutos. – Deduziu com conhecimento prévio. Sabia que o carrasco miserável também conhecido como professor Turner aplicaria uma prova logo mais e que os alunos aproveitariam os poucos minutos antes da avaliação para revisar os conteúdos. Foi assim com Camila quando passou por essa classe no último semestre. Mudou sua expressão e abriu um sorriso compreensivo para a maior. – Qual o seu nome?

– Lauren. Jauregui. Vai me emprestar os livros ou não?

A pequena morena voltou a sorrir, contudo mais largo dessa vez. A garota a sua frente parecia realmente desesperada. – É claro, Lauren Jauregui. Faça bom uso. – Estendeu-os a outra que os tomou nas mãos sem pensar duas vezes. Lauren colocou-os na mesa e somente então percebeu que os exemplares não pertenciam ao acervo da biblioteca da universidade, pois lhes faltava a etiqueta de identificação, mas  notou que no canto inferior da contra capa estavam as iniciais KCCE escritas a tinta vermelha. – Esses livros são seus. Como os devolverei a você? – Porém aquela que internamente já chamava de pequena petulante mulher já havia desaparecido.

Tornou a sentar-se a mesa deixando para depois a tarefa de preocupar-se com a devolução. Finalmente havia conseguido o que tanto queria.

Acontece que durante a madrugada Lauren havia perdido o sono completamente. Pensamentos e ideias recorrentes lhe assaltaram durante a noite impedindo-a de repousar. Precisava de respostas, precisava pesquisar. Sempre fora assim desde pequena… Gostava de buscar sozinha as respostas para cada pequena dúvida sobre si mesma. Teria feito a pesquisa ontem mesmo para que pudesse voltar a descansar, mas como a sorte não queria lhe sorrir, seu pacote de dados expirou, deixando-a com a única opção de pesquisar a moda antiga; Nos livros.

Pela força do hábito olhou por cima dos ombros curvando-se um pouco mais em direção à mesa como se precisasse esconder de todos o capítulo exato pelo qual buscava naqueles livros, e sentiu o coração ainda acelerado se acalmar dentro do peito ao perceber que ninguém ligava para sua presença. Ali dentro Lauren era apenas mais uma. Dentro da universidade e dentro da grande cidade de Miami era apenas mais uma. Uma ninguém, não se destacava ou chamava a atenção e não poderia estar mais grata por isso.

Prosseguiu com a leitura por tantas horas que seus músculos doeram pela posição. Espreguiçou-se deixando a mesa para cinco passos depois voltar a fitá-la em dúvida sobre o que fazer em relação aos livros. Ninguém os guardaria, afinal eles não pertenciam à biblioteca, mas também não poderia deixá-los ali, poderia? Sabia que perteciam a garota petulante e pareciam ser caros. Caros e novos. Mas como os devolveria? Tudo o que tinha como pista eram as malditas iniciais KCCE. – Droga…

No dia seguinte enquanto entrava no refeitório na companhia de Normani, uma morena simpática que conhecera no primeiro dia de aula, Lauren marchava com os mesmos livros debaixo dos braços. Normani discursava com interesse sobre a inauguração de uma nova galeria de arte em Miami que aconteceria em poucas semanas e esse assunto agradava e muito à Lauren. Mani pouco a pouco se tornava mais que uma colega, mas uma boa amiga, que assim como ela também era nova em Miami.

Sentaram-se para o café da manhã ainda discutindo os arranjes para o dia da tal inauguração quando algo do outro lado do refeitório chamou a atenção da de olhos claros.

Era Camila. Sentada na última mesa do refeitório, aquela mais próxima a porta. Tinha as pernas cruzadas, o tronco inclinado para trás assim como a cabeça, e os olhos fechados, quase como se estivesse tomando sol em uma manhã na praia. Nos lábios um sorriso discreto, mas nem por isso menos belo.

Lhe faziam companhia na mesma mesa quatro garotos enormes e mal encarados e cinco garotas metidas. Todos riam e gritavam como malucos, mas os alunos das mesas ao redor não pareciam incomodados, muito pelo contrário, pareciam tentados a se juntar àquela bagunça em um horário tão cedo.

– Para onde você tanto olha? – Normani quis saber assim que percebeu que Lauren já não mais prestava atenção no assunto anterior.

– É ela…

– O que? Quem?

– KCCE. – Os dedos pálidos apontaram na direção de Camila, que ainda não havia percebido a chegada de Lauren. Estava distraída demais com as piadas imbecis de seus amigos e com as histórias sempre muito divertidas de Dinah, sua melhor amiga. – É ela. A garota a quem os livros pertencem. – Contou a Normani que entendeu imediatamente. Lauren já havia comentado sobre os livros e sobre a garota misteriosa e petulante da biblioteca. Só o que ela não entendia é porque a amiga precisou daqueles volumes, mas essa parte ficou sem resposta. – Eu preciso devolvê-los.

– É ela? Tem certeza? A garota baixinha com a bunda grande? – As bochechas brancas coraram com a pergunta, o que não era comum, afinal gostava de manter a postura séria e inabalável.  

– Você a conhece?

– Karla. O nome dela é Karla. – Normani disse. – Quase todos a conhecem por aqui. Karla é aluna do Núcleo de Saúde assim como todos naquela mesa. – Apontou na direção do maior e mais bonito prédio do campus. O edifício parecia ser novo e tinha uma arquitetura moderna. Pela sua porta todos os estudantes e professores que passavam levavam jalecos brancos consigo.

– Bom, eu preciso devolver esses livros de qualquer maneira. – Tornou a olhar para a turma que cercava Karla sentindo a pouca coragem que tinha se esvair aos poucos. Grandes aglomerados a intimidavam, descortês cortesia de muitos anos de hostilização e provocações. – Pode me fazer esse favor? – Tentou soar casual esperando que a morena amiga apenas acatasse o pedido, mas ao invés disso ouviu uma explosão de gargalhadas.

– Eu não vou até lá, você não me ouviu? Eles são da coordenação do Instituto de Saúde do campus, e nós duas pertencemos ao programa de artes.

– E qual o problema?

– Esses dois universos não se misturam, Laur. Além disso, não fui eu quem pegou os livros.

– Mas estou lhe pedindo como um favor.

– Nã, nã, não. – Repetiu. – Já vi os caras que estão na mesa com Karla e as amigas sendo verdadeiros babacas com vários alunos de outros núcleos e programas sem qualquer razão. Não quero ir até lá e acabar atraindo atenção indesejada.

Mas era exatamente isso que Lauren temia. Atenção indesejada. Se enervou ao pensar que havia se dado ao trabalho de trocar poucas palavras com uma aluna tão diferente de si quanto Karla e aquela turma. Podia já prever com facilidade que de fato aqueles universos não se misturariam, e por alguns segundos acabou se esquecendo que na verdade a única pessoa rude naquela biblioteca havia sido ela mesma, e que Karla fora até muito gentil ao lhe emprestar os tais volumes. – Porra… Eu também não vou até lá. Ela que fique sem os livros. Ou então posso pensar em deixá-los em algum lugar onde… – Enquanto sussurrava as várias alternativas para si não percebeu a estranha movimentação atrás de si, ou os olhos de Normani ficarem gradativamente maiores e mais surpresos. Sentiu um toque gelado nos ombros e olhou para trás instintivamente.

– Lauren. – Era Karla Camila quem falava. – Jauregui. – Olhava para a morena de olhos claros com ar recriminador. Divertia-se com os amigos quando avistou a morena do dia anterior conversando com outra mulher no refeitório e viu também seus livros sobre a mesa. Resolveu ir até lá no mesmo minuto temendo perder a morena de vista. – Você mentiu para mim.

– Não.

– Sim. Pediu os livros porque teria uma prova com o Sr. Turner e eu acabei emprestando. O problema é que eu procurei por você naquela maldita sala depois da prova e para a minha surpresa, não há nenhuma Lauren Jauregui cursando aquela matéria. Eu mesma perguntei ao professor.

– Eu…

– Você mentiu. – Acusou a maior tocando-lhe o centro do peito com o indicador.

– Foi tudo um grande mal entendido, Karla. – Disse Lauren dando um passo para trás enquanto tentava se acalmar. Odiava ser encurralada. Odiava ser acusada. Odiava ser tocada.  – Eu realmente não estou matriculada naquela matéria, mas acontece que eu precisava muito dos livros e não havia nenhum exemplar disponível porque aparentemente todos os alunos do Sr. Turner resolveram alugá-los. Por isso menti, achei que a tal prova seria um motivo forte o bastante para convencê-la a deixá-los comigo.

Camila franziu o cenho com desconfiança. Deu também um passo para trás até ficar na posição ideal para sentar-se ao lado de Normani, que em choque total simplesmente parou de respirar. Acontece que Mani havia chegado ao campus algumas semanas antes de Lauren e por isso teve a chance de não apenas entender melhor a dinâmica da universidade, como também de acompanhar os momentos finais das últimas eleições estudantis. Os diferentes núcleos raramente se misturavam, e embora todos os programas fossem requisitados e bem premiados, o Núcleo de Saúde era certamente aquele que se sobressaía. O orgulho da universidade. E Karla Camila Cabello fazia parte do novo diretório estudantil recém eleito para coordenar aquele núcleo. Era a muito conhecida, eloquente, bela, inteligente e divertida latina por quem todos caíam de amores. – O que você faz?

Mordendo o lábio inferior Lauren respondeu. – Faço parte do programa de artes.

– Caloura. – Concordou. – E porque alguém do programa de artes precisaria daqueles volumes?

– Isso não é da sua conta. – Camila não pôde segurar a risada diante da resposta. Lauren era atrevida, assim pensou. – Aqui estão os livros. Pode pegá-los. – Esticou as mãos para receber o material sem deixar de fitar os olhos verdes da outra intensamente. Notou o desconforto que o gesto simples causava na maior.

Levantou-se e já ia saindo quando para a surpresa de Lauren se aproximou com rapidez, colando os dois corpos e segurando com delicadeza o pulso pálido. – A propósito… Você encontrou o que precisava? – A maior piscou algumas vezes antes de voltar a si. Estava nervosa com tamanha proximidade, mas não enfurecida, e sim tensa. Podia sentir o perfume doce emanando da pele bronzeada e observar cada centímetro impecável daquele rosto. A maquiagem leve, os cílios longos e as sobrancelhas finas. As bochechas cheias na medida certa e os lábios graciosos. Karla era a epítome da feminilidade, e cada inocente respirar que dava era como um soco forte no estômago de Lauren. – Nos livros. – Camila notou que Lauren se perdera em suas feições e corou fortemente.

– S-sim.

As duas então se afastaram enquanto Camila ainda sussurrava baixo o bastante para que apenas Lauren pudesse ouvi-la. – Se eventualmente precisar de alguma ajuda já sabe onde me achar.

Sem nada dizer a Normani, Lauren andou para fora do refeitório como se buscasse por uma quantidade mais generosa de ar e de fato precisava. Chegou ao lado externo e pousou as mãos sobre os joelhos respirando com dificuldade. Lutava um pouco contra as lágrimas e resolveu se isolar ainda mais para o caso das teimosas vencerem. À sombra de uma grande árvore sentou-se já mais calma. Vestia um fino casaco preto, a camisa da banda preferida e jeans escuros e rasgados. Retirou do bolso as duas folhas amassadas nas quais havia feito as anotações a partir dos livros de Karla. Ali permaneciam seus rabiscos, pensamentos mais relevantes e pontos para pesquisas futuras. As respostas para as perguntas que lhe roubaram o sono naquela última noite.

A lágrima teimosa caiu enfim.

Algumas coisas se aprendem por livros e outras não. A genética que explicava sua condição e a pequena e incompleta biologia que explicava o seu nascimento se lia pelos livros. Mas a feminilidade e a delicadeza, tal qual a de Karla, isso Lauren não aprenderia com as páginas.

Com quantas taboas se constrói uma canoa? Lembrou-se de um problema matemático da infância. Com quanto conteúdo se constrói uma identidade? Um “eu”? Mas não um “eu” qualquer, e sim um do qual ela finalmente pudesse gostar.

Nos papéis amassados lia-se entre os rabiscos palavras como “intersexo”, “gônadas”, “genitálias” e “variações anatômicas”. O problema de toda uma vida que Lauren mesmo aos vinte anos de idade ainda tentava desvendar e organizar como faria com uma complicada equação. Ainda lutava para encontrar respostas na esperança de que uma vez munida de todas elas finalmente se sentisse confortável no próprio corpo.

Sentia-se sozinha. Cansada. Exausta para ser honesta. Sentia-se desconfortável na própria pele, embora hoje já melhor em relação a sua aparência física. Sabia ser bonita. Sabia ser hoje mais feminina do que jamais fora antes. Era vista como mulher, sabia ser uma mulher, mas nem sempre sentia-se mulher na intensidade desejada e isso a machucava. Sentia o membro entre as pernas e se amaldiçoava internamente por tê-lo ali.

Queria ser apenas Lauren, porque sabia ser Lauren desde a infância mesmo quando ninguém mais o sabia, mas ainda hoje por causa daquele maldito membro sentia-se menos Lauren e menos mulher do que as outras. Menos feminina. Menos do que alguém como Karla.

Queria se amar, queria se aceitar, mas como se ainda falhava em se compreender? “Identidade”, pensou… Felizes daqueles que as constroem sem empecilhos.



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