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História Identidade - "...o mundo mais colorido..."


Escrita por: ISBB5H

Capítulo 2 - "...o mundo mais colorido..."


 

– Os jogos continuam sendo nossa melhor opção. – Camila estava sentada naquela mesma cadeira, da mesma mesa, da mesma sala já há longas horas. Suas pernas sacudiam-se impacientes e o movimento vez ou outra chamava a atenção de Dinah que ria, mas nada falava. Levantou-se em um rompante. Queria deixar aquele lugar. Precisava esticar as pernas e respirar ar puro. – Seguimos com a proposta de arrecadação de fundos durante os primeiros jogos da liga. Não é uma decisão assim tão difícil, é? – Os colegas abriram as bocas para retrucar, mas a latina foi ainda mais ligeira. – Para quê complicar? Não precisamos de tanta verba assim, pessoal. Se aceitarmos mais esse bônus outros programas podem começar a ter problemas com a compra de materiais e ainda estamos começando o semestre.

– Camila, os outros programas não são nosso problema. – Um dos colegas advertiu.

– Não, não são. – Tocou a maçaneta ainda olhando para os companheiros de cúpula. – Mas também não vou fingir que somos o único núcleo dessa universidade. Outros também precisam dos recursos. Todos nós bem sabemos que nossos fundos estão cheios e a compra dos materiais do novo laboratório pode ser custeada pela arrecadação durante os jogos. Não é necessário prejudicar outros orçamentos. – Soltou o peso do corpo em uma única perna. Estava ainda mais impaciente visto o tamanho egoísmo de alguns companheiros. Sabia que o que quer que fosse decidido naquela reunião receberia o aval da diretoria acadêmica e por isso preocupava-se tanto com o resultado. É claro, prezava pelo sucesso crescente do Núcleo de Saúde, mas também não queria prejudicar os demais pelo caminho.

– Camila tem razão. – Dinah concordava com a amiga. E é claro, não queria confusão com os outros diretórios. Era ainda o começo de um longo semestre e sabia melhor do que começá-lo em maus lençóis. – Vamos concentrar nossos esforços nos jogos. Todos de acordo?

Pouco a pouco os votos foram sendo apurados, sendo a proposta da latina a vencedora. Deixou a apuração a largos passos e tão logo já havia ganhado o pátio principal do prédio.  Começou a observar os vários alunos que caminhavam de um lado para o outro, de um lado para o outro e foi acalmando o próprio coração em agonia. Não se arrependia da decisão de se juntar ao diretório, mas sentia o peso da responsabilidade incomodar os ombros.

No instante em que fecharia os olhos teve sua atenção roubada para um borrão negro que deixava o mesmo edifício às pressas. O caminhar era ligeiro, quase um trote. Seria engraçado se não parecesse tão suspeito. Cortou caminho saltando por cima do corrimão da rampa e usou a saída lateral para emboscar e surpreender sua vítima.

– Lauren Jauregui! – A morena de olhos claros saltou meio metro para trás, caindo sentada sobre a grama verde e recém aparada da lateral do grande prédio. Lauren estava muito, muito assustada. Não esperava encontrar ninguém naquele caminho e entender que esse mesmo “alguém” era Karla Camila não lhe acalmou em nada. A pequena latina logo se arrependeu do feito ao ver a morena respirar com dificuldade ainda ao chão. Suas bochechas vermelhas como fogo e seus olhos bem abertos e perturbados. Os lábios quase arroxeados. – Deus, Lauren… M-me desculpe, eu não queria. Céus eu não queria assustá-la dessa forma, era para ser uma brincadeira inocente e…

Lauren nem ao menos se deu ao trabalho de responder. Levantou-se como pode e pôs-se a correr para longe dali. Para longe de Karla.

E assim o resto do dia passou. Com Camila agoniada e arrependida pela infeliz brincadeira, e uma Lauren extremamente mal humorada.

Já era o fim da tarde quando a de olhos claros deixou sua última classe. Levava nas costas a velha mochila de couro, um presente herdado da avó, e contra o peito a caderneta de desenhos.  Suas mãos estavam coloridas e os dedos sujos tinta. Laranja, verde, vermelho e azul, essas eram algumas das cores. Felizmente tivera uma maravilhosa e relaxante aula de pintura livre e isso bastou para deixá-la mais alegre. Era boa em pintar. Excelente seria a palavra ideal. Fora inclusive elogiada pelo professor e deixava a sala com um tímido sorriso de dever cumprido estampado no rosto.

 Olhou para frente e sentiu seu sorriso morrer ao se dar conta da desagradável presença. – O que você quer aqui?

 – Lauren, eu… – Com desanimo evidente Camila respirou fundo. Vinha ensaiando um belo pedido de desculpas durante o caminho, mas também se preparou para os ataques da mais alta. – Vim apenas para me desculpar pelo que aconteceu mais cedo. Não foi a minha intenção fazê-la se assustar, pelo menos não daquela forma. Eu pensei que seria uma brincadeira inocente, mas estou envergonhada pelo que aconteceu.

No momento em que terminou de falar tinha já os olhos fechados e preparava-se para as ofensas, mas nada veio. Abriu apenas um olho para espiar o que impedia a morena de respondê-la cogitando inclusive a possibilidade de não encontrá-la mais ali. Contudo, não esperava que a mais alta estivesse completamente hipnotizada por suas pernas descobertas.

Lauren, por outro lado, simplesmente não conseguia mover os olhos daquela região. Analisava as pernas bem torneadas da menor e admirava o quão belas ficavam com aquele vestido branco. Sem qualquer chance de escape perdeu-se naquelas curvas acentuadas. Um misto de admiração e atração. Uma forte e indesejada atração, diga-se de passagem. 

Camila coçava a nuca e mordia o lábio inferior enquanto falava. – Então… Você gosta das minhas pernas ou do meu vestido? Dessa posição eu não posso definir onde estão os seus olhos. – Metade dela falava a verdade e a outra metade quis apenas brincar com o fato.

E despertando do transe Lauren sentiu as bochechas queimando, mas não somente elas. Cada parte do rosto pálido gradativamente enrubescia pela vergonha. Subiu os olhos ligando-os aos castanhos chocolate de Camila e viu o pequeno sorriso que a menor lhe dava. Parecia ser sincero e não havia nenhum traço de deboche. Resolveu então que sairia por cima da situação e seria honesta. – Me desculpe. Não quero que me entenda mal, mas é que… Você fica muito bem de vestido.

Mas por essa resposta a latina não esperava. Estava confusa agora. Lauren estaria flertando? Ou seria esse apenas um inocente comentário de uma mulher para outra? Não sabia dizer, mas gostou de como soou a rouca voz da outra e de como os olhos verdes lhe admiravam. Não achou o ato vulgar, e sim cortês, algo como um elogio. Grudou as mãos frente ao próprio corpo e começou a esfregá-las lentamente em um gesto nervoso. – Obrigada. – O que mais poderia dizer? – Você também tem pernas bonitas. – Poucas eram as vezes em que deixavam-na sem palavras, mas ali estava uma estranha morena de olhos de esmeralda que lhe desconcertava ao extremo.

– Mesmo?

Lauren soou tão inocente na resposta que causou divertimento na menor. – É. Claro.

– Mas estou usando jeans. Como pode dizer?

– Bom, elas parecem bonitas daqui. E tenho certeza que você também ficaria bem usando um vestido como o que eu estou usando agora. – Extrovertida como era se esqueceu da regra básica da Jauregui: “pode ver, mas não pode tocar”. Tocou-a na cintura com uma cutucada e a proximidade trouxe o reforço do cheiro doce que saía tanto da pele morena quanto da pele pálida. Os cheiros combinavam. – Talvez fosse melhor optar por um número a mais, afinal suas pernas são mais longas do que as minhas e não queremos a sua calcinha aparecendo por aí, não é mesmo? – Piscou.

Mas Lauren não usava calcinhas e por isso mesmo dessa vez foi ela a não prender o riso ainda tímido. Afastou-se do toque com discrição. – De qualquer forma eu não tenho nenhum. – Resolveu esclarecer quando viu a dúvida brotar nos olhos escuros. – Vestido. Nunca tive ou usei algum. – E lá estava… Mais uma resposta que a sagaz latina jamais teria previsto e igualmente carregada de inocência.

Camila aproveitou o momento para analisar com minúcia a garota de pé a menos de dois passos de distância. Usava jeans azul, largo e desbotado. Alguns rasgos que começavam na altura das coxas e terminavam nos joelhos e que exibiam flashes de uma pele extremamente clara e delicada. A blusa era preta, lisa. Sem nenhuma estampa e de mangas longas, embora fosse o tecido bastante fino para suportar o calor do dia. Nos pés os mesmos coturnos que lembrava tê-la visto usar no dia anterior e os cabelos negros soltos e rebeldes, mas na medida exata. Lauren não lhe parecia fazer o estilo “garotinha” como em muitos dias gostava em si, mas nem por isso menos incrível. Para Camila, Lauren era resolutamente: linda. Sem tirar e nem por. Uma das poucas mulheres cuja presença somente já lhe tirava o fôlego. – Gosto do seu estilo. – Disse em voz alta aquele pedaço de pensamento que não planejava dividir.

Sentiu vergonha é claro, mas sequer podia imaginar que a garota maior tinha internamente vibrado com aquele simples comentário. Não, Lauren não era assim tão inocente ou ignorante da própria beleza, mas já havia se acostumado as implicâncias das outras garotas com o seu estilo.

E com o seu jeito…

E com o seu corpo…

Lembrava-se bem ainda hoje. Descobriu-se assim, de fato, aos cinco anos. É claro, os sinais vinham sendo disparados muito antes disso, embora fervorosamente ignorados pelos pais em desespero. O modo de falar, o modo de agir e de se enxergar… Crianças aos cinco anos de idade em sua maioria, como também Lauren, operam no mundo de forma simbólica e puramente intuitiva. As coisas são como vêem, mas nem pela pouca idade Lauren deixava de ver. Não sabia sobre si porque não havia mais ninguém exatamente igual a ela para ser visto. Não era como os amiguinhos. Era mais como as amiguinhas, mas não completamente.

Na casa dos oito anos já entendia melhor e é claro, sofria um pouco mais. Ainda tinha muito do mundo concreto em si e era isso que o pênis simbolizava. A realidade chata, fatual e concreta do que nascera. Mas sua jovem cabecinha já era igualmente capaz de fazer o caminho inverso e abstrair de toda a realidade de forma a construir conceitos mais complexos para a idade como o de: sim, eu tenho um pintinho, mas não, não sou como os meninos.

Curiosa é a forma como crianças entendem nessa idade algo que ao nos tornarmos adultos a maioria de nós luta para compreender: o que temos entre as pernas não nos faz meninos ou meninas. Como nos sentimos é o que faz.

Mas foi aos doze anos que sua vida mudou drasticamente. Como a maior parte das crianças nessa idade era capaz de ver, pensar, abstrair e analisar a todo vapor. Era esperta. Criava hipóteses e testava pequenas teorias sobre si mesma. É isso que significavam os sequestros dos batons, as tardes perdidas dentro do armário da mãe e as longas horas de choro e reflexão antes de dormir. E foi também nessa idade em que descobriu o grande segredo guardado a sete chaves pela família e o motivo das várias consultas ao longo dos anos.

Nascera sim com o aparelho reprodutor masculino.

Mas também com o feminino, embora este não tenha se desenvolvido completamente. Ou para melhor se dizer, apenas vestígios do que se sabiam ser órgãos reprodutores femininos.

Lauren não entendeu o que tudo aquilo significava, mas captou a ideia principal: sim, era diferente. Bastante. Tanto que até os médicos conseguiram detectar através dos exames.

Revelado não somente o segredo como a luta interna da garota, ainda aos doze os pais foram finalmente instruídos a aceitar o fato de que aquele jovem serzinho de olhos brilhantes dentro de casa era uma mulher e não um homem. Agora de uma vez por todas. Assim sendo a escola mudou, o corte de cabelo e a dinâmica de casa pouco a pouco também. Pequenos gestos como referir-se à ela dessa simples forma: ela. Lauren. Mulher.

Por último, mas não menos importante… Mudaram-se também as roupas.

Foi na tarde de um domingo chuvoso que a mãe a levara para as compras em um dos shoppings da cidade. Começaram em uma grande loja de departamentos e muito para o alívio da morena, a mãe sem discutir ou pestanejar ignorou a sessão masculina partindo diretamente para as prateleiras cobertas de rosa, rosa chá, rosa bebê, rosa pink e brilho. Muito, muito brilho, Lauren se lembra. O problema é que aquela foi também uma aventura frustrante… Ali descobriu não gostar de rosa. Mas é claro, um pouco da imaturidade inerente aos doze não a deixou compreender naquele exato instante que nem toda garota gosta de rosa. Gostar de “rosa”, para o espanto geral de toda a nação, não é um atributo intrínseco ao sexo feminino. Quem inventou essa estúpida regra afinal de contas?!

De qualquer maneira, Lauren e a mãe, Clara, seguiram na tarefa e essa é a história de como pouco a pouco o estilo de hoje foi tomando forma. Para qualquer um que a olhasse, como Camila inocentemente fazia, acharia estar na presença de mais uma dessas garotas sem frescuras e de preferências despojadas. Uma entre as várias que apenas prefere calças a vestidos. Coturnos e botas aos saltos. Normalmente, mas não como uma regra definitiva e onde mora o pecado nisso afinal de contas? Nem toda mulher deve ou quer se vestir como uma boneca. Roupas são apenas roupas. Fantasias. E fantasias mudam.

Para ser justa ainda havia uma porção de coisas sobre a sua condição que Lauren não entendia. Coisas da genética, dos tais vestígios, da própria biologia e também do seu psicológico. Não é como se “pesquisar” fosse algo fácil de se fazer antigamente. Sentia-se vigiada e julgada dentro de casa. Sentia-se provocada e maltratada na escola. Miami e essa universidade significavam não somente o recomeço, mas a chance de pela primeira vez respirar livremente. De descobrir mais sobre si mesma, se entender, se construir e quem sabe um dia, se aceitar.

– Obrigada, Karla. – Por todas essas razões estava realmente agradecida pelo comentário.

– Camila. Prefiro que me chamem pelo segundo nome… Camila. O importante é, estou perdoada? Pelo que fiz mais cedo?

– É. Tudo bem. Dessa vez. – Lauren era dura na queda. Não abaixava a guarda por muito tempo, mas tudo bem, a menor achava até muito divertido esse jeitão aborrecido da maior.

– Você tinha voltado à biblioteca, não é? Por isso estava saindo daquele prédio.

– E novamente… Isso não é da sua conta.

– Não precisa voltar com a grosseria dona Lauren Jauregui. Eu só queria ajudar.

– Qual é a dessa de ficar falando meu nome e sobrenome a todo momento?

– Meu Deus, garota. Como você é difícil de ser agradada. – A expressão da morena a essa altura era de poucos amigos. Não a conhecia ainda tão bem, mas esse pouco já sabia dizer, Lauren não gostava de sentir-se acuada. Precisava de tempo. De espaço. E de alguma intimidade, e intimidade bem, isso não se força. – Tudo bem, eu desisto. Por hoje. Já estou feliz que tenha me perdoado. – Levou uma das mãos para dentro da bolsa e de lá retirou um amontoado de chaves. O chaveiro era uma banana, não que isso importasse, mas a de olhos claros não deixou de notar. – Está ficando tarde e acho que esse é o meu momento para ir embora e deixá-la em paz. 

– Tanto faz. – Mentiu. Mas só um pouquinho porque “bem pouquinha” era também a sua vontade ficar jogando conversas fora na companhia da menor.

– Quer uma carona? – A latina agitou as chaves.

– Não, obrigada. – Negou com a rapidez de um foguete. – Os novos dormitórios não ficam tão distantes assim.

Negou com um sorriso no rosto. Lauren era definitivamente uma figura difícil. – Tudo bem. Nos vemos por aí? – As duas jovens mulheres começaram a se afastar até que a fina voz de Camila voltou a ser ouvida. – Ei Lauren? – Teve a atenção da maior. – Você é diferente.

Os belos olhos verdes quase saltaram do rosto. – C-como?

– Você é diferente. Das outras pessoas. Eu ainda não sei o que é, mas você é. E é diferente. – As pálidas palmas das mãos transpiraram em uma velocidade tão grande que se as esfregasse em qualquer superfície as tintas sairiam. Camila notou o nervosismo. E notou o suor repentino. “Como ela sabia? O que ela sabia? Teria deixado algum rastro nos livros em que pesquisou? Teria algo no corpo denunciado? Era a pequena assim tão angelical e feminina que podia sentir a diferença que irradiava de outros corpos?” As perguntas se criavam sozinhas na cabeça da maior. – Está tudo bem, Lauren Jauregui. Eu muito me agrado com o diferente. – Camila piscou e mostrou a língua em um gesto travesso. – Diferente é bom, Lauren Jauregui. Diferente deixa o mundo mais colorido. – E assim que Camila partiu através do estacionamento tudo o que restou a outra foi admirar as próprias mãos. Pintadas. Diferentes. Coloridas. 



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