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História Identidade - "...cuidar de você..."


Escrita por: ISBB5H

Capítulo 9 - "...cuidar de você..."


Twitter: ISBB5H

 

Dizem que o teatro surgiu, entre muitas outras coisas, do apelo desesperado dos homens por uma cura para a tristeza que pertence à realidade. São criados os papéis e construídas as histórias que fogem à vida prática e que dá aos homens o direito de serem outros, de encenarem a luta por novos ideais e dá aos homens enfim, a possibilidade de escreverem finais felizes.  

Mas o problema é que a lógica dos papéis só se aplica às peças, pois na vida real esses mesmos apenas servem para nos engessar. Fora dos palcos e longe da platéia, a designação de papéis não é a cura, mas a doença em si.

Seja justificado pela raça, pela classe social ou por algo mais básico como o próprio gênero, os papéis sociais são a base de uma (falsa) ditadura de sensatez e moralidade. Às mulheres a beleza, a delicadeza e a meiguice tão próximas da perfeição. Aos homens a virilidade, a força e a dureza. Papéis. Personagens. E é tão terrível a forma como a maioria das pessoas ao longo de toda uma vida se contorce e se deforma para caber no molde desses mesmos personagens.

– E então, quem é essa garota misteriosa? – O garoto inquiriu. De onde estava assistia a morena maior se fazer de escudo para Karla e achava divertida a débil tentativa. Examinou Lauren com olhos famintos, se demorando nas pernas, nas curvas que julgou mais acentuadas, seios e olhos. Achou-a bonita demais para ser esquecida. Definitivamente uma caloura. – Faça melhor, não me diga nada. – Afirmou diante do silêncio das garotas. – A diversão será maior se eu descobrir sozinho.

– Você… – A menor pressionou os dedos que seguravam a carne da cintura de Lauren assim que ouviu a primeira palavra. Não queria que a morena desse início a uma discussão com o garoto.

– Não vale à pena. – Foi o que sussurrou contra o ouvido da outra e esperou que o curto apelo fosse o suficiente. E foi. Lauren podia dizer como a situação incomodava a latina e mesmo todo o desejo de confrontar Jeremy tinha o exato peso de um grão de areia se comparado ao peso de qualquer interesse de Camila.

– Eu ainda vou descobrir o seu nome, garota. Bonita desse jeito você não será um mistério por muito tempo. – Piscou para os olhos claros. – Aproveite o restante do seu dia, Karla. – Jeremy foi se afastando lentamente e somente ao ponto em que sua figura desapareceu de vista foi que as duas mulheres se permitiram relaxar. Lauren deixou que o escudo protetor baixasse e Camila que o alívio, mesmo que mínino, tornasse a preenchê-la.

– Qual é o problema desse cara?

– Uma história antiga de Dinah.

– E por que ele não vai atrás dela? Qual o problema dele com você?!

A latina baixou os olhos fitando os pés. – Eles namoraram por algum tempo durante o primeiro ano de faculdade. Até acredito que ele realmente tenha amado minha amiga, mas a verdade é que quando um não quer, dois não brigam. Dinah e ele não poderiam mais incompatíveis e ele era o único que se fazia de cego para o problema. Muitas brigas e diversas discussões depois, eu a convenci a repensar a relação e dessa reflexão surgiu o término. Jeremy me procurou logo após para que eu o ajudasse a recuperá-la e foi quando expliquei à ele exatamente as mesmas coisas que havia dito à ela. Todas as palavras rudes, os comportamentos toscos, o tratamento indelicado na frente dos colegas e os gestos impensados funcionaram como minas sendo pouco a pouco implantadas naquele namoro. – Karla balançou a cabeça tentando expulsar as memórias de Dinah sendo maltratada. – Eu não sei por que é ensinada a alguns homens a reprodução dessa espécie de energia violenta e todo esse senso desmedido de orgulho masculino, mas para mim essas não são definições de “homem”, e sim de machismo.

– É você quem ele culpa pelo fim da relação.

– Não digo que ele me culpa inteiramente. Jeremy não tem ideias assim tão distorcidas, acredite se quiser. Ele bem sabe ser razoável quando quer. Mas sabemos que ele acredita na minha parcela de culpa por implantar em Dinah ideias de repudio aos homens pelo simples fato de que eu…

– Gosta de mulheres! – Lauren concluiu voltando a se enfurecer. Vinha dedicando grande parte de sua, há tão pouco adquirida, maioridade à procura de um lugar em que se encaixasse e ao combate por hora apenas interno à determinados rótulos sociais e se enojava com comportamentos dessa natureza. E de novo, infelizmente, são esses mesmos papéis pré-determinados que ditam a vida que levamos. Homens devem agir como verdadeiros machões. Mulheres devem valorizar seus homens à qualquer custo. Lésbicas se interessarão por toda e qualquer mulher em que colocarem os olhos e odiarão todos os homens que povoarem a face da Terra. Gays entenderão de moda. Gordinhas serão engraçadas e gordinhos desengonçados.

– Lo, por favor… Não dê à Jeremy mais atenção do que o necessário. É isso o que ele quer. Incomodar. Não se trata apenas de Dinah e eu, mas de uma disputa antiga entre os vários Núcleos dessa universidade. A maioria deles nos odeia pela distribuição de verbas que todos sabemos ser injusta. 

– Não espere que eu fique parada enquanto ele faz aquilo que bem entende, Camila.

– Eu não quero que você arrume encrenca com ele.

– E eu quero que ele te deixe em paz. – O desabafo feito no mais turrão dos tons arrancou um sorriso bobo de Camila. Adorava a personalidade explosiva de Lauren, tanto quanto se encantava com seu jeito protetor.

– Eu acredito que um pouco antes de sermos interrompidas você estava prestes a me perguntar algo, estou certa?

Os olhos voltaram a se encarar enquanto as bochechas esquentavam. – Bom, eu só queria…

– Karla Camila!

– Mas que inferno! – Lauren gritou de volta para quem quer que as tivesse interrompido agora pela segunda vez.

– Vamos nos atrasar para a aula. – Era Dinah que sinalizava para que a amiga se apressasse e ainda gargalhando da morena de olhos claros, Camila se inclinou para abraçá-la. Apertou os braços em torno da figura pálida e deixou que seu corpo se aconchegasse ao da maior por mais alguns segundos antes de declarar melancólica.

– Eu preciso ir agora. Nos vemos depois? – Perguntou incerta.

– Claro. Vejo você depois. – Terminaram de se despedir agora muito mais tímidas do que há segundos atrás, pois eram assistidas pelos olhos curiosos de Dinah e alguns outros amigos de Karla.

– Eu acho que vocês se resolveram muito bem. – Dinah provocou a amiga enquanto se dirigiam para a próxima aula. O restante dos colegas preferiu nada comentar, mas o silêncio não incomodava Camila. Caminharam como uma frente de força até o bloco 3 alheios aos olhares e cochichos durante o trajeto, e sequer anteciparam o que estava por vir.

Já dentro do prédio, a latina seguiu acompanhada até seu armário, que para a surpresa de todos ali presentes já estava aberto. Vendo seus pertences espalhados pelo chão e alguns de seus livros completamente danificados, tudo o que restava dentro do compartimento era o jaleco. Retirou-o com cuidado de dentro do armário enquanto os amigos gritavam e se agitavam furiosos pelo atentado e esticou o tecido lentamente, dando-se conta da pichação feita à caneta vermelha: “vadia desonesta”, leu com os olhos derramando poucas lágrimas.

Esse era o pior e mais injusto aspecto sobre os rótulos e papéis… Alguns deles trazem algo além do julgamento. Alguns vêm acompanhados de descabidas e adiantadas sentenças.

[…]

– E então? O que aconteceu depois? Vocês se beijaram um pouco mais? Estão namorando? Marcaram um encontro? Para onde vão? Que roupa vai usar?

– Ei, ei, ei! Diminua as perguntas! – A de olhos claros exclamou incomodada pela afobação de Normani que já a media com os olhos enquanto abria a porta do armário no dormitório de Lauren. – É óbvio que não estamos namorando, quanta estupidez!

– E quanto ao encontro? Vocês marcaram alguma coisa, não é?

– Bem…

– Laur, eu não acredito! Como pôde perder essa oportunidade? – Normani repreendeu a amiga com um belo golpe nas costas.

– Isso deveria doer? – Zombou da pouca força de Normani.

– Não é minha culpa que você é mais forte do que eu. Aliás, você malha? Faz natação? Seus ombros…

– São mais largos, eu já sei! Não precisa me dizer. – Resmungou algo que ouvia constantemente da mãe.

– Sim, mas isso não é ruim. É bonito. Veja, você deveria usar os ombros descobertos no seu encontro com Karla. O que é bonito é para se mostrar, Laur.

A fala trouxe surpresa para a garota de olhos claros. Desde quando ter os ombros largos era algo para se orgulhar? Não parecia ser sempre que sua mãe mencionava o assunto. – V-você acha mesmo? Acha bonito?

– Mas é claro. Torna sua postura mais elegante. Queria eu ter ombros assim. – Declarou simplesmente. – O que foi? Ninguém nunca te disse isso?

– Não. Nunca. – Sussurrou envergonhada.

– Você não está habituada a receber elogios, não é mesmo? – Normani perguntou já sensibilizada pela postura da amiga. Em determinados momentos parecia forte como uma parede de pedras, e em outros frágil como uma flor. – Bom, se as pessoas falharam em lhe dizer o quão bela você é, eu pretendo recompensá-la por isso, pois você minha amiga, é uma das mulheres mais bonitas que já conheci.

– Não seja exagerada, Mani.

A morena alegre puxou consigo algumas peças do armário de Lauren e as jogou sobre a cama. – Você tem pernas grossas e deveria exibi-las, mas como vejo poucos shorts, nenhuma saia e um único vestido, eu sugiro calças justas como esta. – Apontou para o jeans branco e rasgado. – E quanto aos ombros já nos resolvemos, não é mesmo? Essa camiseta será perfeita.

– Espera, espera… O que está fazendo? Não tem encontro nenhum.

– É claro que tem.

– Eu não fiz o convite.

– Mas você irá buscá-la após a aula. – A expressão embasbaca de Lauren encorajou a amiga a prosseguir.  – Você já beijou a garota, o resto não pode ser assim tão complicado. Apenas esteja no bloco 3 no último horário e receba a sua garota na saída. Convide-a para comer algo, tomar alguma coisa ou apenas para conversarem… Tome uma atitude, Laur!

– Eu, eu não sei se é uma boa ideia.

– É uma ótima ideia. É uma ideia minha. – Rebateu muito certa do que fazia. – Agora diga-me, você é contra o uso de um pouco de maquiagem?

– Maquiagem. – Repetiu com uma careta se formando. Lauren se permitia o uso do básico em se tratando de cosméticos, mas muito mais pela inexperiência ao usá-los ainda quando vivia com os pais, do que por ser contrária a ideia.

– Pense ser como uma exposição de quadros, Laur.  Todas as mulheres são. Em alguns dias somos os corredores que exibem quadros mais sóbrios e simples, pinturas mais suaves. E em outros dias somos os corredores com os quadros mais ornados, coloridos e elegantes. Todos os corredores guardam suas belezas. Encontra-se prazer ao transitar por todos eles, não percebe?  

[…]

Ao deixar a sala de aula mais ligeira do que qualquer outro aluno, Camila lançou-se com desespero para fora do prédio ignorando os chamados de Dinah. Tinha pressa em ver-se livre de toda a pressão trazida pelos últimos horários de aula.

Os boatos, que durante a manhã e o início da tarde surgiram fracos, tomaram forma e adquiriram potência ao longo do avançar das horas. Entre os calouros, principalmente, era determinante o poder do questionamento quanto à legalidade da última eleição estudantil.

Não se dizia que a latina sofria sozinha o peso das acusações, mas era justo afirmar que grande parte da atenção trazida dirigia-se exclusivamente à ela. Fora o seu nome o citado para a compra de votos. Era o seu nome o mais conhecido entre os alunos dos diferentes Núcleos, justamente pelo encanto que provocava em todos que nela pousavam os olhos. Era sempre alegre, inteligente e participativa. Gostava de conversar, conhecer pessoas e defendia seus ideais com frequência para quem quisesse ouvir. Expunha-se e pela frequente exposição pagava agora um preço mais alto que os colegas diante da falsa acusação.

Agarrou a alça da bolsa com mais força e escondeu o único livro que levava debaixo dos braços, já buscando pelo chaveiro de banana no compartimento designado. Encontrou-o no lugar de sempre e elevou a cabeça deparando-se com uma figura recostada em seu carro.

Como vinha da direção oposta, via-a de costas, mas apenas isso era o suficiente para reconhecê-la, pois já não o fazia apenas com os olhos. Começara a fazê-lo também o coração. – Lauren?

A morena virou-se lentamente. Tinha os cabelos agora bagunçados, o colar desajeitado, um pouco fora do lugar. O traçado levemente torto do delineador foi notado, embora não houvesse modo ou maneira de impedir o destaque quase hipnotizante do material escuro contra os lindos olhos verdes. Lauren era simplesmente bonita demais para ser real. – Oi.

– O que está fazendo aqui?

– Eu vim para buscá-la.                              

– Me buscar? Por que? – Não que não estivesse grata, mas estava também extremamente surpresa.

Lauren franziu o cenho. – Bom… Não tem um porquê. Eu apenas estou aqui.

Camila sorriu transbordando carinho. – E você tem planos de ficar? Aqui? – Ambas as garotas bem sabiam naquele instante que o “aqui” não era um lugar. Não era o estacionamento, o bloco ou o campus. “Aqui” era um algo em alguém. Um espaço em uma pessoa. No coração de Camila. No coração de Lauren.

– Planos ainda não tenho, mas a vontade já cresceu em mim.

Karla se aproximou devagar. Esperou uma atitude da maior que veio na forma de um aperto gostoso. Encontraram-se a meio caminho, na forma de um abraço seguro e suspiraram juntas. – Pois então fique aqui comigo. Em mim. E não me deixe sozinha nesta noite.

– Soa como um pedido para cuidar de você.

– E se eu pedisse você cuidaria?

– Eu não sei por que, como ou quando aconteceu, mas isso é tudo o que eu mais quero fazer. – Em um mundo cuja consciência é determinada pela realidade em que vivemos, é essencial que saibamos nos livrar dos papéis pré-escritos e que nos são oferecidos ao longo da vida. Toda a forma de felicidade e satisfação depende da construção de um alguém novo, inédito e livre das amarras de tudo o que é pré-fabricado. E para Lauren, especificamente, este marcava o dia da descoberta de parte dessa construção. A descoberta de que construímos nossa fundamental capacidade de cuidar de nós mesmos, ao descobrirmos que somos capazes, eventualmente, de cuidar de mais alguém. – Ei, Camila? 

– Sim?

– Você quer sair comigo?


Notas Finais


Agora vai! hahaha


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