- E ele apenas ficou lá, como se não fosse um grande babaca com todo mundo. – Kylie comentava enquanto bebia mais um gole da sua vitamina de frutas. – E olha que eu queria ter falado umas poucas e boas, mas a minha boa educação não permitiu.
- Eu teria falado e que se danasse a boa educação. – Hanna comentou enquanto vasculhava o refeitório com os olhos. Ela e o irmão procuravam Cam no refeitório, mas não havia nem sinal dele.
Grande parte do assunto da mesa fora focado na atitude de Cam hoje, o que eu achei um absurdo. Eles estavam dando importância demais para uma coisa tão pífia, mas fiquei calada. Eu estava beliscando meu lanche – um salgado estranho que Alexia comprou – enquanto observava todo mundo. Mariana trocava teorias com Kylie e Hanna sobre o que pode ter levado Cam a se sentar conosco no primeiro período e Alexia cantarolava alguma coisa enquanto virava as folhas do caderno, pouco atenta à conversa ao redor.
Eu também estava distraída, pensando em coisas aleatórias e sem sentido, sem muita vontade de participar da conversa, que por sinal, diminuiu um pouco o fluxo. Mal notei quando Hanna deslizou pelo banco até se aproximar mais de mim, me cutucando entre as costelas para chamar minha atenção, que estava focada em lugar nenhum.
- O que você acha daquele garoto, Sam? – Hanna perguntou. Olhei na mesma direção que ela e vi um rapaz vasculhando o refeitório com os olhos, como alguns de nós da mesa poucos segundos atrás. Tinha aberto a boca para dizer que nem mesmo conhecia o sujeito quando ele se virou para a nossa mesa.
Era Mikael. O tempo desacelerou um pouco, o suficiente para que eu pudesse fazer uma resolução de tudo o que tinha acontecido até aquele momento.
É como uma peça ensaiada onde todos sabem as suas falas e o presente é nosso palco. Todos os personagens estão prontos, preparados em seus atos e até eu faço parte do elenco. É uma história clichê.
- Oi, Samantha? – Mikael sorriu para mim, bem próximo da mesa.
- Sim? – Sorrio de volta. Foi inevitável.
- Avise ao seu pai para ir à fazenda dar uma olhada nas peças que eu arranjei, O.K.? – Ele perguntou.
- Claro. – Disse, ainda sorrindo.
- Obrigado. Acho que te vejo amanhã, certo?
- Claro. – Repeti. Não havia nada mais a ser dito.
Ele acenou com a cabeça e se virou, dando alguns passos para se afastar e ir até outra mesa, com seus amigos. Nesse momento – nesse exato momento –, Cam Slander aparece, como se tudo estivesse programado para acontecer. Eles se encontram e se encaram. Não consigo olhar o rosto de Mikael, mas o olhar cheio de ódio de Cam deve equivaler ao dele. Era uma curta batalha visual, era uma rixa que ninguém mais entendia. Era como o bem contra o mal, o mocinho contra o vilão.
Tudo isso, a troca de olhares, não durou mais que três segundos, mas parecia vir de uma eternidade atrás. Era profundo, o sentimento entre eles, talvez até mais do que eu imaginava, se é que eu tinha esse direito.
Os dois bufaram simultaneamente, se virando em sincronia. Eram tão iguais, esse dois. Ninguém percebia.
Era como uma peça. Era o mocinho contra o vilão. Era uma história clichê.
***
Os minutos do último período se arrastavam tortuosamente enquanto a professora Grace, de sociologia, corrigia alguns trabalhos que passara aos alunos. Não havia ninguém que eu conhecia na turma e ninguém parecia interessado em me conhecer, tão pouco. Rabisquei toda a parte superior do meu caderno, entediada.
Olhei novamente para o relógio acima da lousa. Faltavam cinco minutos. Guardei o caderno na minha mochila e permaneci com a caneta nas mãos, só para ter algo com o que mexer. Batuquei com os dedos na mesa, esperando o sinal tocar.
Pensei na melodia de uma música, algo bem natural, quando a voz dela me veio à mente, cantando a mesma música. Assustei-me. Com a voz, me veio outra lembrança, algo bem mais doloroso.
Nós duas, conversando pelo telefone.
Era uma discussão.
Ela chorava. Eu gritava. Alguns minutos haviam se passado, depois e um longo silêncio, quando ela fez o pedido. Neguei-lhe.
Estava olhando para o teto do quarto quando ela desligou. Não retornou mais minhas ligações. Não pude sair de casa aquela noite.
O sinal tocou.
Pulei da cadeira como se tivesse levado um choque. Não compreendi, a começo, o motivo de estar tão apressada. Minhas mãos tremiam enquanto eu acelerava pelos corredores, esbarrando em alguém aqui e ali. Quando vi a porta de saída – tão próxima! – meu coração acelerou. Vários alunos literalmente se acotovelavam para sair enquanto eu me aproximava.
Minha boca estava seca e meu peito, oprimido. Desviei no ultimo corredor, não muito confiante para enfrentar a multidão de alunos na porta. Estava pensando em esperar o fluxo diminuir, mas aquela necessidade de sair havia batido ainda mais forte. Encostei o corpo na parede enquanto alguns alunos ainda passavam, distraídos. Ali não havia mais ninguém nas salas, mas o corredor parecia apertado.
Escorreguei até o chão, escondendo a cabeça entre os braços. As lembranças dela pareciam preencher o ambiente ao redor e eu quase hiperventilava.
- Sam? – Alguém me chamou. – Samantha? Você está bem?
- Acho que ela não está bem. – Outra voz disse.
Não reconheci nenhuma das duas. Parecia que falavam através de uma parede, suas vozes abafadas.
- Será que está passando mal?
- Acho que não.
- Acho que ela está tendo um ataque de pânico.
- Meu deus! O que a gente faz?
- Sam? Sam?
Não consegui reunir forças suficientes para falar alguma coisa.
- Tem alguma coisa errada. Não é melhor chamar alguém?
- Aposto que tem algum assistente aqui ainda.
- Ela está em pânico. Chamar alguém desconhecido só deve piorar. Eu não ia querer isso se estivesse no lugar dela.
- É, mas a gente não pode ajudar em muita coisa. Não sabemos nem o que está acontecendo. Algum adulto pode saber.
- Ou talvez não saibam. Talvez a gente só precise tirar ela daqui. O que você sabe sobre ataques de pânico?
- Quase nada. Não é a minha área.
- Se o que eu aprendi nos filmes serviu de alguma coisa, a gente devia levar ela lá para fora. Espaços fechados não ajudam quem está em pânico ou choque.
- A gente não pode levar ela para fora. Tem um monte de gente lá. E eles são desconhecidos.
- Tem o campinho ao redor do refeitório.
- Então só precisamos pensar em um jeito de tirar ela daqui.
- Aposto que não vai adiantar pedir para ela nos acompanhar.
- Vamos tentar levantar ela. Você pega um lado e eu, o outro.
Há essa hora, eu hiperventilava e sentia que desmaiaria a qualquer instante. Eu estava me afogando, me afogando, me afogando, me afogando. Algum peso me puxava para baixo, cada vez mais fundo e a água já cobria meu rosto. Eu não conseguia respirar. A pressão só piorava e meu peito parecia prestes a explodir.
- Mas gente, o que está acontecendo? – Outra voz se intrometeu na conversa.
- Você é forte. Ajuda a gente a levar a Sam para fora, ela está passando mal.
- Porque não pediram ajuda a um adulto?
- É um ataque de pânico!
- E o que isso tem a ver? Ela precisa de ajuda!
- Então ajude ela de uma vez!
As vozes estavam exaltadas, mas eu quase não ouvia. Eu afundava, cada vez mais. Nem mesmo tentava resistir, só deixava a força me puxar para baixo. Eu merecia isso. Eu merecia isso.
Senti alguém me pegar no colo, tentando me tirar de dentro da água.
- Sam? Sam, está tudo bem. Se acalme. Respira.
Queria dizer que eu não conseguia, queria dizer para me deixar afogar. Eu merecia. Mas continuavam me puxando, me puxando para fora d´água, mesmo que outra mão agarrasse meu pé, querendo me ver afundar. Eu merecia.
Foi nesse momento, quando eu sentia que meu corpo se partiria ao meio, que a brisa fria do fim da tarde tocou meu rosto suado. Colocaram-me no chão.
Meus olhos estavam fechados enquanto minhas mãos apertavam os dois lados da minha cabeça, meu corpo oscilando na grama. Estava frio, mas eu estava fora d´água. Eu respirei, respirei, respirei e respirei.
- Sam? Olha pra gente, querida.
- Já passou. – Senti a voz de Alexia perto de mim. Acho que ela afagava meu cabelo. – Pode abrir os olhos agora. Está tudo bem.
Respirei fundo.
Hanna, Kylie e Alexia me olhavam com preocupação.
- Tá se sentindo melhor? – Kylie perguntou. Ele estava bem próximo de mim, a mão depositada em minha coxa.
- Estou. – Disse, meio trêmula. – E um pouco constrangida também.
Hanna riu sob a respiração.
- Relaxa. Só a gente viu isso.
- Foi um ataque de pânico? – Alexia perguntou.
- Não sei. – Eu disse. – Eu só precisava sair dali de dentro. Eu só precisava sair.
- Talvez seja claustrofobia. – Kylie disse. – Vi sobre isso uma vez, na internet.
- Já aconteceu antes? – Hanna se aproximou e se sentou de frente para mim. Ela dava palmadinhas em minha perna.
- Só uma vez.
- Foi parecido com o que aconteceu hoje?
- Foi pior.
- É difícil imaginar alguma coisa pior do que o que você estava passando ali. – Alexia sorri. – Eu estava quase tendo um treco.
- Eu também. – Hanna comentou com leveza. – Eu tinha quase certeza que Kylie ia te derrubar.
- Jamais. – Ele flexiona os músculos, brincando. – Espero que tenha aproveitado o passeio.
Sorri. Sem pensar, apoiei a cabeça no ombro de Kylie enquanto meus amigos me consolavam. Era relaxante, estar ali com eles.
- Mas você está bem mesmo? – Alexia perguntou, meio preocupada.
- Estou, estou. – Disse, me levantando. – Só um pouco tremula, mas vai passar, eu acho.
- Você tem certeza? A gente pode ficar aqui mais um pouco, com você. – Kylie disse, se levantando também.
- Sei pai vem te buscar? – Hanna perguntou.
- Sim. Acho até que ele já deve estar me esperando.
- Então vamos. – Alexia nos chamou.
Atravessamos os corredores vazios da escola até a porta, que também estava vazia. Fizemos o percurso em silêncio, com eles me acompanhando de perto, como se eu fosse cair a qualquer momento.
Havia apenas dois carros na frente do prédio. Um impala amarelo e uma caminhonete prata.
- Acho que vejo vocês amanhã. – Sorri.
- Claro. – As meninas disseram e foram para o carro.
- Te vejo amanhã. – Kylie disse, sorrindo. – Se cuida.
Fui até a caminhonete do meu pai, entrando no veiculo.
- Os amigos novos? – Ele perguntou, sorrindo.
- Sim. – Sorri de volta, brevemente.
Dirigimos de volta para a Fazenda.
Ninguém mais soube do ocorrido
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