Harry tomou consciência do que o rodeava de repente, assim como quem está abstraído nos seus pensamentos e é importunado por uma voz.
Estava deitado numa cama, na frente dos seus olhos estendia-se um tecto branco, e uma claridade pouco intensa iluminava a divisão. A luz não era desagradável, e não o ofuscou.
No ar pairava um cheiro a álcool e desinfectante, era tão familiar que imediatamente Harry soube onde se encontrava. Num hospital. Tentou erguer-se o suficiente de modo a conseguir encostar as costas ao suporte da cama. O quarto era espaçoso, tinha uma parede toda envidraçada que dava para o jardim. Aquele jardim também o homem reconhecia. Estava, portanto, em St.Mungo’s.
O relógio de ponteiros, preso na parede em frente à cama, indicava que eram seis e quarenta e cinco da tarde. Lá fora, o céu já purpureava.
Harry sentia-se zonzo e nauseado. Desconfiou que deveria estar fortemente medicado à base de várias poções. Coçou os olhos com cuidado, para espantar o sono, e procurou a varinha. Ao não a encontrar, pensou que deveria estar guardada, algures no quarto, ou com alguém responsável.
Foi com igual precaução que afastou os lençóis do corpo para poder examinar a barriga. Estava enfaixada, nada conseguiu entrever da ferida. Voltou a deitar-se, o movimento provocou-lhe uma leve dor no abdómen, que o fez ciciar.
- Maldito devorador da morte… - Reclamou alto, lembrando-se do que o conduzira àquele internamento.
Todos sabem que ser Auror é um emprego heróico, ousado e perigoso. Afinal, perseguir feiticeiros das trevas é garantia de que, volta não volta, se recebe uma maldição feia em cima. Mas Harry, desde criança, nunca fora de fugir aos perigos. Ou não fosse ele um valoroso Gryffindor, e uma das personalidades mais importantes do século por ter vencido Lord Voldemort e retornado a paz ao mundo bruxo.
Uma curandeira abriu a porta e adentrou na divisão. Viu que o seu paciente havia recobrado os sentidos. Tinha o rosto coberto por uma máscara, e uma touca verde lima com o símbolo de St.Mungo’s (um osso e uma varinha cruzados formando uma cruz) adornava-lhe a cabeça, pelo que era difícil a Harry perceber se a conhecia ou não. Tudo o que conseguia ver dela eram um par de olhos castanhos e pequenas cicatrizes na testa, daquelas que ficam quando se coça muito uma borbulha e ela rebenta.
- Senhor Potter, está acordado! – Constatou animadamente. – Vou mandar enviar um Patronos à sua família agora mesmo. Como se sente?
- Bem... – Mentiu, porque queria respostas e, se dissesse que as dores voltavam pouco a pouco a apoderar-se do seu corpo, a curandeira iria dar-lhe mais analgésico. – O que aconteceu? Só me lembro de me terem acertado com um feitiço e mais nada.
A curandeira analisou o estado de Harry, os seus reflexos, a cor da língua, mediu-lhe a pulsação...
- Não sabemos que feitiço foi lançado sobre si, Mr.Potter, mas deixou-o com um corte bastante profundo e do qual saía muito pus. Foi feio, tivemos que reunir todas as nossas capacidades mágicas para evitar que a infecção se alastrasse. Esteve dormindo cinco dias desde então.
Harry assentiu com a cabeça, agradecendo silenciosamente pelas informações que lhe tinham sido prestadas. A curandeira anotou algumas informações na sua prancheta e disse-lhe, então:
- Pronto, tudo em ordem! Está estável, vai ver que terá uma óptima recuperação. – Harry sorriu, achava a mulher muito simpática. Antes de partir, voltou-se, e as longas pestanas postiças desceram, mostrando o seu constrangimento. – Senhor Potter, sei que não é o melhor momento mas… poderia conceder-me um autógrafo? Olhe que até trago papel e pena.
Harry riu mas parou abruptamente porque o seu ferimento decidiu protestar.
- Certamente. – Respondeu e assinou o papel em branco que a curandeira lhe estendeu. A sua caligrafia não era a melhor, mas as pessoas não se importavam. E Harry estava habituado a dar autógrafos nas ocasiões mais inesperadas. Uma pessoa aprende a lidar com a fama.
- Obrigada. – Agradeceu a curandeira. Tossiu discretamente. Estava constipada. Era por isso que usava máscara, para não contaminar os pacientes. – Logo a sua família estará ali na porta, deve querer vê-los. Se se sentir com muitas dores, puxe esse cordão, que fará soar uma sineta. – Instruiu e partiu do quarto.
Meia hora depois vieram as visitas. Albus, James e Lily entraram a correr e lançaram-se todos os três ao mesmo tempo para cima do pai, abraçando-o ternamente. Harry conteve-se para não soltar um gemido. Não queria preocupar a família.
- Meninos, calma, ainda matam o vosso pobre pai! Tenham mais cuidado! – Repreendeu Ginny. Logo as três crianças se afastaram, porque não queriam piorar a saúde do pai. Ginny beijou apaixonadamente o marido e afagou-lhe o cabelo. A cicatriz em forma de raio ali estava, a sua marca de identidade mais evidente. – Como estás?
- Vivo! – A mulher lançou-lhe um olhar admoestador. – Pronto, uma curandeira passou por aqui e disse-me que ia recuperar rapidamente.
- Essa tua saúde de ferro… - Ginny sorriu, aliviada. – Pregaste-nos um susto mesmo grande. E eu já devia estar habituada.
- Pai, pai, vens connosco à semi-final de Quidditch, não vens? Prometeste que ias! É daqui a cinco dias, vais ficar bom até lá, não vais? – Pressionou James. Ele era o primogénito, tinha naquele momento dez anos. Era um reguilas, já mostrava que honrava de quem herdara o nome. James Sirius Potter.
- Jay, o teu pai está doente e tu só pensas em Quidditch? É lógico que Harry não vai poder ir. – Ginny censurou-o. Então viu o brilho nos olhos de Harry e a sua boca curvou-se para formar uma carranca de desagrado. – Nem penses nisso! – Mas o marido já levantava a mão para pedir um high five ao filho mais velho.
- Mas claro, filhão. – Sentiu-se ser fuzilado pelo olhar de Ginny e hesitou. – Quero dizer, eu vou ver, mas caso não possa ir vou querer que me tragam o melhor relato do jogo.
- Poxa, a Inglaterra numa semifinal. – Continuou James. – Desta vez vamos ganhar.
- Espero que a Bulgária ganhe… - Opinou Albus, que era fã de Viktor Krum. O rapaz era dois anos mais novo que James. Era mais calmo e introspectivo que o irmão, o que o fazia um bom alvo para as suas partidas.
- Seu antipatriota! – Acusou James, e deu-lhe um carolo na cabeça.
- Patro-quê?
Entretanto Lily, a mais novinha, com apenas seis anos, que não se interessava muito por desporto em geral, ignorou a conversa dos irmãos e puxou a manga da camisa de hospital do pai.
- Papá, trouxe doces! – E depositou um saquinho de feijões de todos os sabores de Bertie Bott no seu colo.
- Podes comer isso? – Questionou Ginny, arqueando uma sobrancelha, desconfiada.
- Devo poder. – Respondeu, olhando para a mulher com olhos de cachorro que pede um biscoito.
- Bom, eu vou levar as crianças, que já está na hora de irem para a cama. Ron está ali fora, quer ver-te também. – Avisou Ginny. Albus e Lily saíram do quarto por espontânea vontade, acenando para o pai em despedida, mas James teve que ser arrastado pelo colarinho da camisola, e foi protestando.
Ron entrou logo de seguida. Tinha o braço esquerdo enfaixado, da luta contra os devoradores da morte onde participara com Harry, mas fora isso parecia completamente são.
- E aí, eleito? Conseguiram estacar aquela infecção que te estava a tornar todo cinzento e macilento?
- Dizem que sim, mas nem sei. Não me vi ainda ao espelho. Vê tu se estou cinzento. – Ron riu. – Mas diz-me o que aconteceu. Como resolveram a situação depois que eu apaguei? Escapou algum devorador da morte? Algum dos nossos ficou ferido? – A ansiedade fez com que Harry se contorcesse e os lençóis deslizaram do seu colo.
- Acertaram-me com um Diffindo no braço, mas fora isso ninguém mais ficou ferido. Quero dizer, teve também o tal feitiço que te lançaram. Ainda não sabemos o que raio é, nem a Hermione, que é sabichona, o reconhece. Magia negra, é claro. Conseguimos capturar quase todos os devoradores da morte, mas houve alguns que morreram por acidente. E outros suicidaram-se quando os apanhamos, para não irem para Azkaban. – Harry bocejou. Os medicamentos estavam a deixá-lo com sono. – Ah, quase me esquecia… - Ron procurou no bolso do sobretudo castanho um cartão. Ele tentara ser cuidadoso, mas mesmo assim o cartão de melhoras, feito com purpurinas e lápis de cera, acabara amachucado nas pontas. – Os miúdos lá em casa perguntaram por ti. A Rose até te fez isto! – Pousou o cartão na mesa-de-cabeceira. – A Hermione queria vir ver-te, mas está presa no trabalho. Ainda se mata, a teimosa, de tanto usar aquele seu cérebro brilhante. Mas vem amanhã logo de manhã cedo e vai trazer as crianças.
- Com quem ficaram a Rose e o Hugo? – Balbuciou Harry, com um pé na realidade e um no mundo dos sonhos.
- A Luna está a tomar conta deles! Mas bom, vou deixar-te descansar, campeão! Depois, amanhã, vou ver se passo por aqui para te dar mais pormenores sobre como terminou a missão. Não vou estar a maçar-te sobre quem ficou preso, quem morreu e quem conseguiu apanhar quem!
Assim que Ron saiu do quarto, Harry imediatamente adormeceu. Esperava uma noite completa de sono reparador, mas devia ter adivinhado que isso num hospital é difícil de se ter, com a movimentação dos medi-bruxos e o constante sair e entrar de pacientes. O seu sono foi tão leve, de facto, que quando sentiu que entreabriam a porta, discretamente, acordou sobressaltado.
- Sou eu, senhor Potter! – Ouviu sussurrar e reconheceu a voz da curandeira que lhe pedira um autógrafo aquela tarde. – Vim só dar-lhe a beber uma poção. Tome-a e volte a dormir. – Harry resmungou. Estava escuro, não havia qualquer luz naquele quarto, e a penumbra só era espantada pelo pouco luar que entrava pela janela. Pareceu-lhe que o ponteiro das horas, no relógio pregado na parede, marcava as três da manhã, mas não conseguia precisar com certeza.
Voltou-se na cama e procurou relaxar, após ter tomado a tal poção, que até era agradavelmente doce. Mal sentiu quando a curandeira o deslocou para uma maca, nessa altura estava já demasiado sedado. Mas a sensação de estar a ser levado, naquela maca, flutuando, pintou o sonho que estava a ter com pinceladas de recordações do pré-internamento.
Quando ele tinha chegado ao hospital estava a sangrar. Ele tinha levantado a mão até ao nível dos olhos e visto um líquido escuro a escorrer pelo seu antebraço. A agitação à sua volta era imensa. Tinha entrado de emergência, tinham-no priorizado a todos aqueles pacientes. E eram tantos. O hospital naquela noite estava cheio, a rebentar pelas costuras. Ele bem vira um monte de caras naquela recepção. Uma jovem mulher chorava, a sua pele cheia de inchaços cutâneos que pareciam extremamente dolorosos. Um homem tremia todo. Uma mulher tinha uma criança meio adormecida, ou meio moribunda, no colo. Um velho apoiava-se numa parede, mal conseguia permanecer em pé por um qualquer motivo. Uma grávida gritava, contorcia-se de dores na sua cadeira. Gritava que estava a sentir o seu bebé torto dentro da barriga.
- Está a perder muito sangue, chamem um medi-bruxo! – Uma voz masculina havia dito. – Não usem um Episkey ainda, temos que retirar esse veneno da ferida.
Era tudo isto de que se ia lembrando, pouco a pouco, enquanto estava a ser transportado naquela noite de Junho pelos corredores de St.Mungo’s. Mas desta vez não ia sofrer nenhum tratamento.
A curandeira cobriu-o com um pano branco, como se faz aos defuntos, para que não reconhecessem quem levava naquela maca.
E conseguiu, de facto, tirar Harry Potter do hospital sem ninguém se aperceber.
O alerta só foi dado eram já quatro da manhã.
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