Angeline
Poderia dizer que acordei com raios de sol fracos batendo no meu rosto e que, devagar abri os meus olhos já maquiados como o das garotas colírios da Tv, levantando com um sorriso colgate ao espreguiçar. Mas, sendo franca, isso seria uma mentira!
O tempo nunca poderia estar tão feio.
Naquela manhã, o céu estava quase tão negro quanto a noite, o vento soprava tão forte que fazia barulho ao quase arrancar as árvores do solo. Levantei-me uma hora antecipada do horário da escola com trovoadas ensurdecedoras. Elas clareavam o quarto de uma forma que fazia parecer um filme de terror dos anos oitenta. Quando fui ao banheiro escovar os dentes, eu poderia jurar que vi a silhueta do Freddy Krueger com suas garras aterrorizantes do lado de fora da minha janela, mesmo que aquele cômodo ficasse no segundo andar da casa.
Apaguei a luz e avancei pelos corredores como um flash, apenas parei quando cheguei na cozinha, onde encontrei meu irmão preparando seu café da manhã na bancada.
Permaneci encarando o mesmo fazer seus afazeres até torna-se a virar e notar minha presença. No meu campo de visão eu pude ver seu corpo ter uma descarga de adrenalina, talvez fosse esse o motivo dele ter soltado um grito rouco e derrubado uma pequena porcentagem de leite da sua tigela com granola e aveia.
— Não sou tão horrível quando acordo pra você se assustar dessa forma. — Afirmei desanimada, finalmente decidindo movimentar e pegar algo na geladeira.
— O que tu achou que eu fizesse quando eu visse uma guria descabelada e pálida parada ao pé da escada da minha casa?! Aplaudisse?! — Dei de ombros.
— Seria mais convidativo. — Peguei uma xícara preta detalhada com finas tiras amarelas e coloquei café, sem mesmo reparar o fato de Matheus estar começando a retomar o sotaque gaúcho. — O que você está fazendo acordado uma hora dessas?
— Eu sou um vampiro, não durmo.
— Brilha no sol também? — Sentei na cadeira ao lado oposto da mesa onde ele estava.
Os fios loiros do cabelo de Matheus estavam desengrenhados, seus olhos verde-escuros pareciam mais fundos e cansados, característica que combinava com sua cara amassada de sono e a voz rouca.
— Sou um vampiro, não purpurina. — Pela janela vimos um raio passar e soltar um clarão. Matheus estremeceu. — Odeio dias de chuva.
— Você ainda tem medo de raios? — Arqueei uma sobrancelha, curiosa.
— Não é, tecnicamente, medo. Eu só não dou muito certo com tempestades turbulentas desse jeito.
Outro estrondo foi ouvido do lado de fora, dessa vez, mais alto que os demais. Em questão de segundos as luzes acesas da casa piscaram e apagaram-se, eu e Matheus permanecemos na mesma posição, como se tivéssemos prevendo que isso aconteceria.
— Angie?
— Oi.
— A luz da cozinha apagou.
— Eu percebi.
O silêncio só não foi maior por causa dos relâmpagos que clareavam momentaneamente o céu.
— Poderia iluminar a cozinha com minha luz própria, mas não quero desperdiça-la com isso. — Ele se gabou.
Matheus era, de fato, um típico garoto Tumblr com sua aparência: os traços do seu rosto eram quase tão perfeitamente desenhados que mesmo com cara de sono e cansado ele parecia um modelo de revista adolescente, mas é claro que não iria falar isso para o mesmo e inflar seu ego quase exageradamente grande. Ele quase nunca passava despercebido quando saíamos juntos aos olhos de quase toda pessoa do sexo feminino – menos minha mãe, eu e pessoas que não sentiam atração por homens. Porém, até mesmo confesso que se não fôssemos irmãos, tentaria alguma coisa, embora eu não aprovasse as atitudes dele em relação as garotas que se envolve apenas para depois partir o coração das mesmas.
— Só se for a luz dessa tua cara feia. — Retruquei, ele revirou os olhos.
— Vem cá, tu é chata assim mesmo ou fez curso profissionalizante?
— Eu fiz doutorado em implicância fraternal — respondi de imediato, arrancando um sorriso dele.
Mais tarde, em torno das seis e meia, decidimos tomar coragem e sair no meio daquele temporal para ele me dar uma carona para escola e ir pra faculdade. Abri a porta me dando de cara com um holocausto, o guarda chuva já aberto quase foi arrancado das minhas mãos com o vendaval, o pior disso era escutar as reclamações do meu irmão sobre estragar o cabelo bem atrás de mim. Quando finalmente entramos no carro, partimos para a escola.
— Gente, parece o dilúvio isso aqui! — Felps exclamou ao entrar na cantina que estava mais lotada que normalmente.
A chuva continuou forte e incessável desde que eu havia chegado. Até o momento, ela fez um cano estourar próximo ao banheiro das meninas que fez o pátio central da escola ser inundado junto com algumas salas de aula que precisaram ser evacuadas imediatamente.
Enquanto boa parte da escola estava em desuso, a cantina estava sendo usada como refúgio, já que era o único que parecia estar menos molhado (as goteiras infinitas nos tetos cheios de infiltração e as janelas que deixavam escapar fios de água pelo vidro transparente são uma excessão) e grande o suficiente para abrigar todos os alunos mal humorados que tagarelavam, reclamavam ou estavam se divertindo com o estresse alheio por ali. Não sobrara mais nenhuma mesa, todas estavam entupidas, embora as pessoas estivessem sentando até mesmo no chão, o que naquela hora me parecia uma boa ideia.
— Olha pra mim! — Falei entre os dentes apontando os dedos indicadores para eu mesma. — Estou horrível!
Meu cabelo estava preso e eu não tinha mais controle dos cachos, já desistira de tentar segurar o batom na minha boca, algo que me deixou estranhamente branca demais. Pode não parecer, mas acredite, meu estado era triste.
— Você não é a única, tem gente que está pior. — Felipe esboçou um riso com o lábio e cruzou os braços, indicando com a cabeça Lydia que recentemente entrara pela porta acompanhada de Rafael que segurava nos seus ombros.
Parei de reclamar sobre minha aparência imediatamente, a situação dela era muito pior: o rímel escorreu dos olhos até as bochechas, seu batom vermelho borrou levemente como se ela estivesse passado a mão no rosto manchado sem querer, os fios lisos de cabelo estavam cheios e meio molhados da mesma forma que aconteceria se saísse do banheiro e o deixasse secar naturalmente, algo que quase nunca dá um resultado muito bom. A blusa xadrez de Rafael estava perdida nos seus ombros e braços, embora não tenha adiantado muito já que ela batia os dentes de frio e a roupa pingava gotas grossas acompanhada de seu sapato que pareciam mais pra galochas molhadas.
— Eu tive que salvar ela lá fora, coitada! A sala dela foi uma das que inundou e eu corri pra ajudar porque ela não sabia que o pessoal estava vindo se abrigar na cantina. — Rafa afirmou comprimido os lábios para não rir da situação de Lydia – que nos olhava com cara de poucos amigos misturada com frustração.
Ele estava tão encharcado quanto ela, seus cabelos que estavam começando a ficar grande demais, grudavam no seu rosto risonho da mesma forma que a camisa de uniforme colavam na sua pele.
— Nossa, parece que você foi estuprada por uns quarenta negões. — Felps comentou enquanto tirava seu moletom e entregava para a morena.
— Ah obrigada, muito considerável da sua parte dizer isso. — Foi irônica, arrancando a blusa das mãos dele.
— Só estava brincando.
— CALA A BOCA! — Tanto ele, quanto Rafael e eu nos surpreendemos ao ver ela berrar daquele jeito. — Tô puta hoje, não notaram? — Protestou, eu tirei o prendedor do meu cabelo e entreguei para ela que aceitou sem cerimônias. Meu cabelo estava horrível, sim, mas ela parecia estar pior. — Sabe por quê está chovendo? Porque minha dignidade está chorando de decepção nesse momento. — Lydia falou torcendo a barra da sua blusa aliviando a tensão entre a gente.
— Todos estamos parecendo refugiados do Nepal, relaxa. — Felipe disse. Rafael balançou a cabeça freneticamente espirrando água em todos nós, que nem recuamos pelo fato de também estarmos molhados, seu cabelo ficou arrepiado de uma maneira engraçada.
— Eu estou mais. — Retrucou. Um garoto passou pelo corredor escorregando, o mesmo caiu de bunda no chão e gritou, a atenção voltou para ele e uma porcentagem de alunos o apontaram, rindo.
— Nunca vi tanta água na minha vida. — Comentei com certa falta de ânimo, também nunca mencionei tanto essa palavra como agora.
— Espero que não fique esse tempo ruim o dia todo, não quero que minha mãe chegue em casa horrível igual vocês duas. — O loiro disse e eu parei de torcer o meu cabelo para encarar ele com desdém. — Vocês vão né? Eu não quero ter que enfrentar os meus tios de churrasco com piadas ruins sozinho.
— Só vou porque estou sendo obrigada. — Afirmei, erguendo as mãos, Felps começou a assobiar, desviando o olhar dele.
— Não vai dar não. Vou estar muito ocupada deitada na minha cama sem fazer nada. — Lydia disse sendo muito honesta como sempre.
— É uma pena... Ia ter muita comida sabe... Mas é bom que sobra mais pra mim.
O relógio marcava em torno das três da tarde quando a chuva realmente decidiu cessar, eu já estava na casa de Rafael e, por pura conveniência, Felipe e Lydia também. Ísis (que a pouco tempo descobri que era irmã do Lange), saíra para resolver alguns imprevistos.
Por enquanto não fizemos muita bagunça.
— Lydia, para de gastar gás hélio! — Rafael disse irritado jogando uma batatinha recém cortada no cabelo dela que logo foi parar no chão.
— Regra dos cinco segundos! — Felps disse esticando para pegar a batata no chão, enfiando ela na boca mesmo depois de morder um grande pedaço de um dos sanduíches que eu estava preparando. — É deplorável o fato de vocês desperdiçarem comida assim sem nem mesmo ter remorso. — Acrescentou de boca cheia.
— Deplorável é você comendo essa batata do chão! — Lancei um olhar de nojo para ele, que riu da minha expressão pitoresca.
— Quando você disse que iria ter comida aqui, achei que ela já estivesse pronta, e não a gente que teria que preparar! — Lydia reclamou com a voz agudamente alterada pelo gás hélio.
— Você não está fazendo a comida! Você só está sentada nessa cadeira e usando a porcaria do gás hélio todo!
— Lydiazinha você está tão fofa com essa voz, nem parece que queria matar a gente hoje de manhã! — O garoto de cabelos castanhos apertou a bochecha dela.
— Felipezinho, se você continuar com sua mãozinha na minha bochechinha, vai ser a última vez que você vai ter mão! — Ela disse com a voz voltando ao normal de acordo com cada palavra falada. O semblante dele murchou ao ver a garota fuzilar ele pelo olhar.
— Lydiazinha, Felipezinho? — Zombei. — Faz o favor de calarem a boca e acabarem de encher esses malditos balões!
— Tá bom Angiezinha, sua bruxa grosseira! — Felipe retrucou fingindo estar ofendido. Parei de cortar os legumes e virei para trás com a faca na mão.
— É melhor você não me insultar quando eu estiver com algum objeto pontiagudo nas mãos. — Retornei a mesma posição voltando a cortar a comida, Rafael me olhou tão confuso quanto assustado. Escutei as risadas de Lydia atrás de mim.
— Você me dá medo. — O loiro disse.
— É bom mesmo, Rafaelzinho. — Nos encaramos por alguns segundos, movi o tronco e um dos pés para seu lado, como se eu fosse o atacar, o loiro levou um leve susto e recuou, ele balançou a cabeça rindo.
— Doida!
Com os sanduíches, patês, torradas e molhos prontos, partirmos para arrumar a sala. Nós usamos um pano fino, papéis seda e crepom roxos para cobrir a mesa. Quando digo 'nós', me refiro a eu e Rafael, pois Felps e Lydiazinha estavam distraídos demais brincando com os balões, reclamando sobre trabalho escravo e dando a desculpa que já estavam arrumados para não ajudar nos enfeites.
Lydia estava sentada de uma forma relaxada na cadeira puxando um balão pela fita de uma forma preguiçosa. Ela trajava um vestido curto balonê vermelho com um salto quadrado branco. Felps que sentava ao lado dela mexendo com curiosidade uma das mechas de cabelo da garota, vestia uma camisa social preta com bolinhas pequenas verdes de detalhamento, sua calça era uma jeans preta comum acompanhada de um tênis. Eu parecia uma mendiga com meu moletom, Rafael parecia outro mendigo com aquela cara desanimada de sono e a blusa de frio preta pendida nos seus cotovelos, deixando a blusa azul de dentro à mostra.
— O que vocês estão fazendo?! — Ísis entrou de supetão na sala carregando algumas caixas e o bolo, estávamos tão distraídos que nem notamos o barulho do portão da frente. — O pessoal ja está chegando, já está quase na hora, vão se arrumar! — Eu subi desajeitada as escadas e peguei minha mochila com a roupa.
Corri para o banheiro e vesti uma calça jeans rajada com azul marinho e azul claro, coloquei uma camiseta branca e já que fazia um pouco de frio decidir por um camisete xadrez vermelho por cima que havia trago por engano na mochila, mas era melhor que o meu moletom surrado. Calcei um salto alto preto por mais que eu ainda tinha certas dificuldades para me adaptar com eles, borrifei um perfume que eu achei no armário e passei o meu batom vermelho que quase nunca deixo de usar em qualquer tipo de comemoração ou até mesmo uma ida na padaria.
Sai do banheiro trombando com Rafael que parecia apressado.
— Nossa será que você realmente não olha por onde anda? Você ta precisando de um oc... — Avaliando ele melhor, parei e o olhei horrorizada.
— Você que está precisando de eu um óculos aqui, palhaça. — Ele fungou com o semblante estranho e chegou perto do meu pescoço, ato que me fez recuar para trás em defensiva. — E por que você tá usando o perfume da minha irmã?
— Porque eu quero, e troca essa roupa agora, Rafael! — Falei trincando os dentes.
— Me erra, Angeline. — Manifestou-se. — Quem é você pra mandar em mim?!
— Estamos com blusas iguais! — Falei esganiçada.
Seus cabelos estavam um pouco molhados e ele cheirava a lavanda o que me fez constatar de que ele havia tomado um banho para tirar sua cara de sono, algo que resolveu um pouco. Usava uma calça jeans um pouco folgada também preta, mais seu all star comum, porém sua blusa era branca e a única coisa que diferenciava nossas camisas era a cor do xadrez, que a minha era vermelha e a dele azul, embora ainda sim continuasse completamente ridícula aquela situação!
— Ih, rapaz... — Ele me olhou de cima em baixo, reparando assim, o salto me dava um pouco mais de proporcionalidade a sua altura.
— Troca. Isso. Agora. — Falei pausamente.
— Eu não, troca você.
— Isso é patético.
— Você é patética! — Revirei os olhos.
— Eu não tenho roupa pra trocar!
— Problema é seu! Não vou trocar de roupa.
— Ótimo, então não troque.
— Ótimo, não vou trocar.
— Ótimo. — Passei por ele seguindo pelos corredores porém sua voz continuava atrás de mim.
— Ótimo!
— ÓTIMO. — Rebelei indo em direção as escadas, Rafael ficou ao meu lado enquanto eu comecei a descer a mesma.
— ÓTIMO! — Comecei a empurrar ele com os ombros para o lado do corrimão.
— Para de me fechar! — Disse nervosa, ele me empurrou para o lado da parede.
— Você que está me fechando. — Afirmou. Ficamos empurrando um ao outro até acabar de descer todos os degraus, estávamos agindo feito crianças, tanto que chegava a ser completamente estúpido.
— Que que é isso? Estão tentando se fundir? — Felipe comentou, paramos de nos empurrar imediatamente e eu cruzei os braços com cara de poucos amigos, não poderia descrever qual foi a reação de Lange pois estávamos virados de costas um pro outro em torno de alguns segundos. Notei que a sala já havia um número considerável de pessoas e que algumas delas olhavam para a gente com cara estranha. — E eu acho que você deveria parar de ficar com cara emburrada e cumprimentar os que acabaram de chegar. — Complementou à Rafael, apontando para a porta. Escutei ele rir e me virei na sua direção, o loiro andava em direção a dois caras mais velhos e logo os abraçara como se fizesse um longo tempo que não os encontrava.
— Quem são eles? — Perguntei para Felps, ele contraiu os lábios sorrindo.
— São os irmãos dele, eles moram lá em São Paulo também, vieram só por causa da tia Deya.
— Ele tem mais dois irmãos?! — Mais afirmei do que perguntei; estava realmente surpresa, por um grande tempo fiquei pensando que ele era filho único.
— Sim, aquele é Henrique — Felps me explicou educadamente apontando para o homem da esquerda que aparentava ter aproximadamente vinte anos, de barba bem feita e olhos escuros. — E o outro é Felipe. — Indicou o da direita que tinha cabelos médios e pretos, também com barba e olhos castanhos, porém, aparentava ser mais novo e mais espontâneo. Definitivamente, nenhum deles eram nada parecidos com Rafael.
— E aqueles gatinhos ali? — Lydia intrometeu-se colocando a mão no meu ombro, olhando para quatro garotos sentados no sofá brincando de dar socos um nos outros.
— Hã... Você não vai gostar muito de algum deles, Lydia. Quase ninguém gosta. — Felps falou com certo desconforto. Um dos garotos usava óculos de armação quadrada,outro tinha músculos assustadoramente definidos, um deles tinha cabelos enormes formando um coque e o último tinha os cabelos tão loiros que chegavam a ser quase brancos. Sendo sincera, eles eram realmente bonitos porém tinham um ar ruim. — Eles... Bem... São primos do Cellbit, não são pessoas muito legais... Bem, não quando conheci eles, mas talvez seja diferente agora... — Ele respirou pela boca entredentes com as mãos no bolso e franzindo a testa. — Ou não.
Relembrei-me do dia em que nos trancaram dentro do armário empoeirado da escola e o vi ter um ataque de pânico lá dentro por causa de algo que ocorreu no passado dele. Pelo jeito que Felps falou, receei de ser aqueles os primos que Rafael me dissera, e isso, de fato me fez sentir certa raiva deles.
— Ah. — Foi a única coisa que eu consegui pronunciar.
Era em torno das oito quando algumas outras pessoas chegaram, inclusive o pai de Rafael, tinha gente o suficiente para encher toda a sala, após eu acabar de cumprimentar todas, Ísis entrou esbaforida e berrou:
— SE ESCONDAM! ELA ACABOU DE ENTRAR COM O CARRO! — Em questão de segundos, todos os balões, salgados, petiscos e pessoas com excessão de Ísis, Rafael, o pai dele e eu haviam sumido na casa. Apagamos a maioria das luzes e sentamos no sofá como se nada tivesse acontecido.
Rafael sentou ao meu lado no sofá e ficou cabisbaixo enquanto seu pai ficava na nossa frente. A mãe dele entrou e nem mesmo olhou para mesa enfeitada porque concentrou seus olhos no seu marido berrando com Ísis e o loiro.
— ESTOU DESAPONTADO COM VOCÊS! — Fiquei cabisbaixa também, não sabia o que estava acontecendo então não iria estragar nada.
— O que está acontecendo? — Tia Deya disse baixo e confusa.
— ELES. — Apontou para nós. — SÃO UMA DECEPÇÃO PRA NOSSA VIDA. — Falou rígido e Rafael me olhou de relance apertando os lábios para não rir.
— O que eles fizeram, Tiago? — Ela perguntou confusa e realmente muito preocupada, pousada com os olhos em Rafael.
— O que eles fizeram? — Franziu a testa. — O QUE ELE FIZERAM?! NADA MAIS QUE UMA FESTA PRA TI SEM NEM MESMO ME CHAMAR PRA AJUDAR. — Tiago falou estranhamente sério com as mãos na cintura de uma forma rígida. Antes mesmo da ficha dela cair, soltaram um canhão de papel picado, ligaram as luzes, balões esvoaçaram e todos gritaram em couro:
— SURPRESA! — Acenderam as velas de '45 anos' do bolo de imediato e começaram a cantar "parabéns pra você". Rafael correu para abraçar a mãe junto com os outros irmãos que carregavam um buquê de flores, a expressão dela encheu-se de emoção e ela começou a chorar abraçando os filhos que provavelmente fazia muito tempo que não via. Era uma cena e tanta.
Houve discursos, ela partiu o bolo e chorou muito também. Corri para abraçar ela e desejar parabéns.
— Tia Deya, desculpa mas é que eu não tive dinheiro pra comprar presente. — Disse enrusbecida. — Prometo que compro de Natal. — A mulher loira colocou as mãos nos meus ombros com um sorriso orgulhoso.
— Angie, eu que preciso te agradecer. — Olhei para ela confusa. — Rafael... Ele... Sempre foi um menino quieto demais... Sabe... Andava cabisbaixo, não saía do quarto, mal mal comia direito... Mas... Desde que ele te conheceu... Quando tu começou a vir aqui todos os dias... Ele passou a sair mais de casa, a rir mais, jantar na mesa, conversar comigo, um dia ele até me pediu para ensinar ele a dançar valsa! — Sorri desconcertada, me virei e o vi conversando animado com seus irmãos. Tia Deya deu um suspiro. —...Eu nunca o vi tão feliz, tu com toda certeza mudou ele, Angie... Tudo isso que está acontecendo foi por tua causa, e eu vou ser eternamente grata a ti por isso. — Meus olhos marejaram, eu não conseguia falar, então eu só abracei ela mais uma vez, antes de sentir Rafael puxar meus ombros, empolgado.
— Vou roubar ela de você um pouquinho, mãe! — Falou, alegre. — Vamos! O pessoal ta indo lá pro meu quarto, a gente vai jogar verdade ou consequência. — Ele me deu a mão e me puxou para as escadas e eu virei para a mãe dele sorrindo.
Chegamos no seu quarto e nos deparamos com os Felps, Lydia sentados desconfortávelmente ao lado dos primos-panacas dele.
— O que vocês estão fazendo aqui? — Rafael disse curto e grosso.
— Ui! Agora não pode é? Quer privacidade com a sua namorada? — O musculoso provocou ele.
— Não sou namorada dele. — Afirmei, escorreguei os olhos para nossas mãos e notei que estávamos de mãos dadas. Rafael largou a sua mão da minha, envergonhado.
— Bem que eu poderia ser, então. — O garoto loiro comentou.
— Saiam daqui, vocês dois. — Falou impacientemente, apontando para dois dos quatro garotos.
— Mas vocês não iriam jogar verdade ou consequência? Trouxemos até vodka pra quem não quiser cumprir. — O cara musculoso disse enchendo quatro shots e deixando sobre o criado ao lado da cama. — Vamos, vai ser divertido!
— Eu não bebo, Victor. — Ele se aproximou dos garotos. — E você sabe muito bem disso, e eu não vou fazer isso, principalmente no aniversário da minha mãe. Agora, faça-me o favor de sair se você não quiser jogar alguma coisa sem bebida.
— Ah cara, tu não bebe de frouxo que você é. — O garoto loiro comentou.
— Não, mano. Nada a ver. — O garoto de óculos defendeu-o.
— Igor, cala a boca. — O loiro platinado (que mais parecia a réplica da Sia com aquele cabelo) apontou para a cara do rapaz. — Aposto que é aqueles caras que qualquer coisa que acontece volta correndo pro colo dos pais porque não aguenta nada. — Acrescentou, as bochechas de Rafael começaram a queimar, e eu sabia muito bem que não era de raiva. Me aproximei rápido dele e encostei no ombro dele.
— Rafa, deixa eles pra lá.
— Não aguento nada né? Beleza. — Ligeiramente, Rafael pegou um shot e virou na boca, e em seguida outro e mais um.
— O que você está fazendo, para! — Tentei impedi-lo de virar o último, mas falhei. Rafael pareceu desorientado por um tempo, segurei ele nos ombros, olhei para Felipe e para Lydia mas os dois não sabiam o que fazer.
— Vocês, fora daqui, agora. — Lydia disse de uma forma tão brava que me deu medo.
— Nossa, gente! O que você vai fazer garota? Morder minha canela?! — Cosplay da Sia provocou e Victor riu debochado.
— Chega cara, 'cês extrapolaram dessa vez. — Igor disse.
— Verdade. — O de coque concordou manifestando-se pela primeira vez. Estava concentrada demais em Rafael para ver o que estava acontecendo, mas antes que eu percebesse, Lydia arrancou o loiro platinado pelos cabelos com as duas mãos e o puxou para fora.
— Lydia! — Felps exclamou preocupado, ele puxou ela pela cintura e tentou desgrudar-la do garoto, mas parecia impossível.
— Eu vou acabar com você, Jack Frost. — De repente, como um solavanco, tanto ela quanto Felps foram para trás e caíram no chão, o menino arrastou assustado e saiu correndo para a sala.
— Flávio! Cara, tu tá bem? — O grandalhão saiu pisando forte antes de bater a porta lançando um olhar de raiva para a gente.
— Você não tá batendo muito bem da cabeça. — Felipe disse rindo bobo para Lydia, que assentiu olhando para o tufo de cabelo arrancado do garoto entre seus dedos.
— Eles mereceram dessa vez. — Igor disse.
Não prestei atenção em nada depois disso pois quando me virei Rafael estava virando a garrafa de vodka na sua boca, puxei dele rápido e estava na cara que ele não era muito tolerante a bebida. A garrafa estava pela metade e eu praguejei mentalmente por causa disso, ele ia ficar bêbado, eu sabia que ele ia ficar.
— Eles já foram? — Perguntou meio amargurado.
— Sim, eles já foram!
— Ah, ótimo. — Ele abriu a porta cambaleando estranhamente e foi em direção ao banheiro, eu deixei o quarto e o segui. — Fecha a porta! Minha mãe não pode ver isso. — O fiz e instantaneamente ele já estava vomitando na privada.
— Se você der PT, eu não vou te salvar. Eu avisei você, mas seu orgulho é maior. — Sentei no assoalho frio encarando ele.
— Não é hora de dar sermão, ok? Eu já tô meio sonso já. — Falou com a voz falhada.
— Por que você fez isso se sabe que não tem tolerância pra bebida?
— Ah é porque eu gosto de ver o chão dançando, Angeline. — Ironizou antes de botar tudo para fora novamente.
A música estava tão alta que dava pra ouvir dali, fiquei parada balançando a cabeça no ritmo de uma canção muito famosa do Paramore. Eu nem sabia que ainda tinha pessoas que escutavam aquilo, eu nem sabia porque elas pararam primeiramente, aquela música era maravilhosa demais para ser esquecida. Mas faz tanto tempo que não ouvia que esqueci da existência dela, por mais que eu só soubesse o refrão.
— You are the only exception. — Cantarolei baixinho até ver o loiro tirar a cara da privada e ficar fitando o nada por uma porcentagem de segundos para depois começar a rir.
Acho que alguém está bêbado.
— Eu sou muito idiota.
— É mesmo. — Retruquei na hora, ainda balançando meu corpo no ritmo da musiquinha.
— Minha mãe... Sabia que eu pedi ajuda para ela me ensinar a dançar só pra eu dançar contigo no baile? — Falou esticando uma das pernas me encarando de um jeito desleixado.
— É mesmo? — Foi o que eu consegui dizer, minha garganta deu um nó. Estava encarnando nele o bêbado sincero.
— Sim. — Sua voz falhou. — Mas foi inútil porque eu nunca tive chance de dançar com você pois eu sou orgulhoso demais pra te pedir. — Suspirei.
— Quem sabe um dia, não? — Dei de ombros fingindo não estar me importando muito com aquilo. Houve uma curta onda de silêncio.
— Estamos eu e você no banheiro, o que será que o pessoal vai pensar da gente? — Ele riu rouco levantando desastrado. Me pus de pé e tratei de ajudar, afinal, era pra isso que eu estava ali. Rafael deu descarga acenando para seu vômito com uma voz de criança, ato que me fez rir feito uma idiota.
— Vão pensar muita coisa, certamente. — Respondi. — Parece que o destino sempre quer nos prender em lugares pequenos onde estamos sozinhos. Com toda certeza eu não quero ficar num elevador com você, seria a morte.
O loiro conseguiu escovar os dentes por conta própria mas eu me manti cautelosa a qualquer deslize. Ele ria atoa e as vezes desequilibrava, mas até que deu conta de fazer alguma coisa. Quando ele acabou de escovar os dentes eu puxei ele devagar pelos braços, tive uma ideia estúpida.
— Que está fazendo? — Perguntou com o semblante confuso. Balancei seus braços devagar.
— Se lembra um pouco de como se dança valsa?
— Acho que sim. — Arqueou uma sobrancelha e logo voltou a rir de uma forma gostosa.
— Vamos dançar então! — Puxei devagar sua mão para minha cintura e coloquei uma das mãos nos seus ombros aproveitando a metade da música que eu gostava. — Vai ser a única vez que serei legal contigo, olha! Oportunidade inédita. — Balancei devagar com ele, que mal movia os pés direito devido a tontura. Ele riu, novamente.
— Eu gosto dessa música. — Balbuciou e começou a cantar a letra toda errada, mas entrei no embalo e comecei a cantar o último refrão com ele – já que era a única coisa que eu sabia.
— You are the only exception, you are the only exception... — Cantarolamos fora do ritmo e embolados, era engraçado ver aquela situação. Parecíamos dois idiotas, mas a verdade é que... Isso era o que realmente somos.
Idiotas.
Bufei rindo e o puxei pelo braço a caminho da porta já que ele parara com os enjôos.
— Angie... — Me virei para ele, Rafael me encarava em silêncio, eu ainda esperava ele dizer alguma coisa mas tudo que obtive foi o nada.
Ele apenas puxou a minha nuca e me beijou.
Foi tudo tão rápido, e não são cabíveis aqui a porção sentimentos incomuns que eu senti naquele momento, todos eles foram indistinguíveis a não ser pela sensação comum de alegria.
Passara pela minha cabeça que a qualquer momento ele poderia fazer isso, mas não havia levado essa ideia a sério, não importa por quanto tempo me preparasse para seu beijo, eu nunca estaria preparada suficientemente para não fazer meu coração disparar.
E ele disparava, ele pulava fortemente no meu peito, e isso piorava a partir de quando Rafael enroscou o seu braço e puxou minha cintura para perto do seu corpo. Acontecia tudo devagar demais para a certa urgência que eu sentia. Mas estava perfeito para mim. Minhas mãos pararam em seus cabelos, não queria que aquilo acabasse, não queria nunca, por mais que sua boca ainda tivesse gosto de álcool misturado com menta.
Mas acabou.
Ele encostara o seu nariz no meu respirando ofegante, decidi abrir os olhos e eu pude ver detalhadamente sua íris azulada daquele jeito.
— Acho que eu amo você. — Murmurou apenas para eu ouvir, falhando tanto na voz quanto nas pernas, pois ele havia desmaiado.
Eu prometi para mim que se ele desmaiasse eu não iria ajudar, mas era impossível depois daquilo.
Sai do banheiro e fui caminhando ate o quarto onde os meninos estavam. Tentava controlar a adrenalina e fazer minhas mãos pararem de tremer, mas era impossível, até as minhas pernas vacilavam.
— Felps? — Entrei no quarto chamando por ele. Os garotos ainda permaneciam na mesma posição quando eu saí, só que conversavam alegres.
— Onde você estava? Cadê o Rafael?
— Ele tava vomitando lá no banheiro e desmaiou, me ajudem a carregar ele até aqui antes que a mãe dele veja isso e mate a gente? — Perguntei, eles riram.
— Ih, acho que o Rafa está grávido. — Igor disse passando por mim seguindo para o banheiro no fim do corredor. Não havia como eu esconder o sorriso do meu rosto, mesmo vendo aquela cena horrível dos meninos tentando carregar ele para o quarto. Lydia tirou a colcha da cama e eu peguei um travesseiro no armário. Não conseguia pensar mais em nada, apenas no quão macios e delicados seus lábios eram, aquilo me fazia esquecer dos dias e até mesmo do motivo de eu estar indo lá diariamente.
Antes pensava que ele era apenas um garoto popular arrogante e egoísta, mas a partir do tempo e das obrigações... Descobri sua essência e notei que estive errada esse tempo inteiro. Pela primeira vez na vida, de todos os caras babacas que tive uma impressão ruim, ele foi o primeiro a provar que eu estava errada, eu confesso. Eu nunca estive errada, porém, estava errada sobre o fato dele ser popular... Ser egoísta... Sobre não ter sentimentos... Acho que eu estava errada sobre tudo.
Mas afinal, acho que talvez ele seja a única excessão no meio de tudo isso.
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