CAMILA PDV
- Me dê seu braço. – pedi a Ally.
A loira sentou-se melhor na cama e esticou o braço esquerdo para mim. Eu o coloco sobre minha coxa direita e analiso os pontos que dessa vez pareciam ter aguentado. A pele ao redor das suturas estava menos avermelhada e um pouco menos sensível, o que possibilitou que eu passe a ponta dos meus dedos sem que a enfermeira suspirasse de dor. Sua palidez havia passado e as vertigens também.
- Como você está se sentindo? – pergunto, abrindo um saquinho onde as últimas cápsulas de anti-inflamatório se encontravam.
- Eu estou bem. – Ally respondeu. – O que vocês fizeram hoje? Eu dormi o dia todo, não foi?
- Sim, dorminhoca. Já é noite e todos estão na sala. – eu a provoco, ganhando um sorriso genuíno da mesma. – Não aconteceu muita coisa...
O sistema de vigia havia continuado o mesmo. Lauren, Chris e Normani – sim, incrivelmente sim – haviam saído para caçar ou colher uns frutos nas redondezas. Precisávamos pelo menos de uma refeição farta antes de entrar em um condomínio que poderia ter zumbis saindo até de ralos.
Eles voltaram no final da tarde. Amarrados em uma cordinha, Chis segurava três esquilos que havia conseguido capturar. Meu estômago resmungou ao pensar que teríamos que comer aquilo, mas era necessário, já que não podia comer o resto da comida enlatada que tínhamos.
Lauren carregava um saco de pêssegos, frutas vermelhas e algumas nozes que havia achado. A expressão da mulher não era uma das melhores, mas ela pelo menos não era rude com mais ninguém.
Sim, eu havia visto quando ela fora rude com o irmão ontem após ter salvado minha irmãzinha de três zumbis. Mesmo assim eu não conseguia expressar em palavras a minha gratidão por ela ter arriscado a própria vida para manter Sofia viva.
Eu apenas a olhava.
Enquanto os três saíram o restante dividiu entre si tarefas. Eu, Troy e Ally – mesmo dormindo – ficamos na casa cuidando das crianças. Dinah, Taylor e Austin foram até o lago pescar e buscar mais água fresca para nós.
Durante a tarde pude conversar com Troy e percebi como o loiro era gentil. Ele até se disponibilizou em me ensinar como retirar peles de animais, já que precisaríamos fazer aquilo com os esquilos. O seu “talento” para a cozinha se justificava de bicos que precisou fazer antes de conhecer a mãe de Claire.
Claire nos observou durante toda a conversa. A loirinha tentava evitar, mas a tosse já estava lhe irritando. Os olhinhos da pequena já lagrimejavam e ela estava nervosa, não aguentando mais a provável dor em seus pulmões.
Precisamos de remédio. Urgentemente.
“É a culpa do tempo” Troy choramingou, olhando sobre o ombro a filha encolhida no meio de cobertas.
Eu precisava concordar com o homem. Era véspera de Natal. Em Miami não nevava, mas o frio era de cortar.
Minha família sempre foi religiosa e eu me lembrava perfeitamente dos banquetes que fazíamos na noite de Natal. Familiares vinham e celebravam conosco. Era bom. Aconchegante. Feliz.
Agora não temos mais nada, porque infelizmente comemorar essa data parece ser uma piada muito irônica.
- Camila? – a voz de Ally me fez voltar dos devaneios. – Terra chamando Camila... – a loirinha deu um sorrisinho fraco.
- Me desculpe. – murmuro, envolvendo seu braço com gaze.
- Você e a Lauren se resolveram? – elevo o olhar e vejo a enfermeira com uma sobrancelha arqueada.
- O quê? – franzo o cenho, confusa. – Resolvermos sobre o quê?
- Hãm... o abandono dentro da cabine? O roubo da mochila? As vezes que ela salvou sua vida? As vezes que ela salvou a vida da sua irmã? A trombada que você deu nela pelada...
- Espera aí, como você sabe que eu trombei com ela? – pergunto, boquiaberta. Ela dá uma risada fofa e eu bufo, revirando os olhos. – Dinah Jane...
- Não a culpe. Ela gosta da Lauren! – Ally deu de ombros.
Eu a lanço um olhar de descrença enquanto a entregava seus remédios.
- É sério! A Lauren é meio rabugenta, mas é uma boa pessoa. Todos naquele grupo são, até mesmo aquela morena que parece uma modelo.
- Aquela morena que parece uma modelo? – eu não aguento segurar o sorriso. – Normani?
- Ela é desconfiada, mas eu vi quando ela deu quatro barras de cereais para Regina e Sofia. – Ally murmurou e eu ergui o olhar para seu rosto, surpresa.
- É sério?
- Bem sério! Ela retirou de dentro das próprias coisas e ainda afagou o cabelo delas antes de se retirar para que ninguém a visse.
- Por essa eu não esperava... – sussurro, impressionada.
- Ainda tem aquele loiro bonitão. Troy. – Ally fala num muxoxo tímido.
- Hum... – cantarolo, semicerrando os olhos para ela.
- Para, ok?! – a enfermeira revira os olhos. – Não posso falar que um cara é bonito?
- Você falou bonitão. É diferente! – provoco, dando uma risadinha maliciosa.
Ally bufa e prefere não me retrucar.
Guardo as coisas dentro do saquinho e me levanto da cama.
- Quer ajuda para se levantar? – pergunto e Ally assentiu, segurando em minha mão para ficar de pé. – Temos para o cardápio de hoje esquilo assado e sopa de algum peixe que pescaram hoje.
- Hum... que delícia... – Ally resmungou com uma careta de nojo.
Eu ajudei Ally a caminhar até a sala de estar e a se sentar em um banco amadeirado. Naquela tarde, como eu não tinha nada bom para fazer além de ficar na casa, eu decidi dar um arrumada na mesma.
Limpei o máximo que consegui e achei alguns bancos abandonados dentro de um quarto de bugigangas da casa. Consegui organiza-los perto de uma mesa de centro – que locomovi da cozinha para a sala de estar – e ela se tornou nossa mesa de jantar, onde Taylor, Troy e Dinah estavam sentados terminando de preparar a nossa sopa.
Procuro por minha irmã e a acho sentada com Claire e Regina, brincando com o que parecia ser uma mais nova boneca que achara no quarto bagunçado. Sigo meu olhar e então me surpreendo com a cena.
Lauren e Austin, um do lado do outro, e dessa vez sem apontar armas ou soltando marimbondos. A jovem ajudava o rapaz a colocar mais madeira na lareira. Ele quebrava mais os troncos e ela os colocavam de um modo que as chamas não ficassem altas demais.
Pelo visto eles haviam entrado em um acordo silencioso cujo se ele não a atacasse, ela não revidaria.
Eu solto um suspiro de alívio ao perceber que pelo menos isso já havia sido resolvido.
As crianças rapidamente se colocaram perto do fogo e a preparação do jantar continuou. Depois de aquecer minhas mãos, eu me levanto e caminho pela escuridão do corredor da casa de campo. Eu tentava não pensar no assunto, mas ficar ali estava sendo confortável. Distante de qualquer perigo da cidade grande, aquele lugar, em um universo paralelo, poderia ser chamado de “lar”. Encosto-me ao parapeito da janela e observo a noite do lado de fora.
- Acha que vai nevar? – uma voz me retira dos pensamentos.
Olho para o lado e vejo Lauren segurando uma Claire adormecida nos braços. Seu cabelo estava jogado sobre seu ombro esquerdo enquanto a loirinha usava o direito como travesseiro. Uso a luz da lua para ver suas orbitas verdes me estudando atentamente.
- Sempre desejei que Miami nevasse, mas não acho que só porque estamos no fim do mundo que vai nevar. – respondo, olhando novamente pela janela. Por que eu tinha aquele estranho gosto de olhar em seus olhos? – Acho que até hoje nevou apenas uma vez aqui.
- Com esse mundo louco... – ela comenta. Viro-me e vejo um sorriso torto em seu rosto. – Eu não duvido muito que isso aconteça.
- Acho que irá chover.
- Por que acha isso? – Lauren pergunta, unindo as sobrancelhas em dúvida.
Sua pele entrava em um contraste lindo com a luz acinzentada da lua. “Pare de estudar as feições dela, Camila!” meu cérebro grita. Viro-me para a janela novamente, obedecendo.
- Hãm... Vi algumas nuvens no horizonte hoje cedo.
- Espero que não chova amanhã. Senão será mais difícil fazer a viagem até o condomínio Como você sabia da existência dele? – pergunta, olhando-me.
E então fecho os olhos e um flash memórias maravilhosas começou a passar na frente dos meus olhos. Minha família reunida, minha irmã correndo no jardim grande que tínhamos na frente de casa, meu pai beijando o rosto da minha mãe enquanto observava eu brincando com Sofia.
Abro os olhos, negando-me a continuar com aquele martírio.
- Nós morávamos lá. – respondo, em forma de sussurro.
- Oh... – sua boca abre ao perceber o que eu queria dizer.
O silêncio perdurou depois disso, mostrando que Lauren não queria falar sobre aquele assunto. E eu agradecia por isso. Mas aquele silêncio não era mais constrangedor como os outros. Nós duas já estávamos familiarizada com ele.
A dor do passado era grande demais para ser dita.
Pouco depois Troy nos chamou, anunciando que o jantar estava pronto. Não é necessário dizer que eu sentia falta dos temperos ou do meu querido Starbucks. Era aquilo ou mais comida enlatada. Mas, o diferencial daquela noite foi o fato de Dinah Jane não calar a boca um minuto.
A mulher contava sobre coisas engraçadas que aconteceram com ela antes do Apocalipse. A conversa arrancou risadas até Normani que tentava manter o semblante sério. Olhei ao redor e vi Taylor, Troy e Chris rindo. As crianças estavam adormecidas nos braços de seus respectivos parentes.
- Já deve ter passado da meia noite. – a loira alta falou.
- Então já é Natal. – Chris comemorou, erguendo um copo no qual havia um suco natural de pêssego.
- Yeah! – Ally, Troy e Taylor murmuraram ao mesmo tempo, erguendo também seus copos. – Feliz Natal!
Mesmo relutante eu vi Lauren erguer também o seu copo de suco. Sorri e decidi fazer o mesmo. Ao ver que eu segui seu exemplo a mulher mordeu os lábios, segurando um sorriso.
Pela primeira vez ninguém ali sentiu a necessidade de ir dormir até que o sono nos abateu.
Chris e Austin se disponibilizaram em começar com a vigia. Caminhei até o meu quarto alongando meus braços doloridos. Abro a porta e me deparo com Lauren deitada de um lado da cama de casal. Que ótimo, ela já estava dormindo.
Não era como se eu esperasse que ela dissesse: “Ok, fique com a cama que eu dormirei na poltrona.”.
Mentira, eu realmente esperava isso.
Resmungo baixo e retiro meu sobretudo preto, o colocando na parte de trás da poltrona. Eu já estava pronta para sentar no acolchoado quando a mulher se mexeu no colchão. Paraliso sem nem saber o motivo. Os olhos verdes da jovem me encaram como se esperassem alguma coisa. Lauren, ao ver que eu estava confusa, revira os olhos e aponta com a cabeça para o lado vazio na cama.
Engulo seco imediatamente.
- Não, não... – gaguejo, sem graça. – Estou bem na poltrona.
- Sério? – ela pergunta, com um olhar incrédulo. – Você passou o dia todo arrumando a casa. Deve estar cansada. Além do mais... – Lauren continuou, se arrastando para o extremo da cama. – Ela é grande o suficiente para nós duas.
A mulher vira para o lado ficando com as costas para mim com o cobertor até perto da cabeça. Ela simplesmente virou para o lado e dormiu? Pisco várias vezes seguidas para tentar limpar minha mente.
Qual é? Qual seria o problema de dormirmos na mesma cama? Não é como se eu fosse atacá-la no meio da noite ou algo tipo.
Quase como um aviso, ao me mover, minhas costas dão uma fincada. Eu realmente não aguentaria passar a noite na poltrona nem um pouco convidativa.
Inspiro fundo e caminho até a cama. Retiro as botas que eu usava e deito-me sobre a coberta, pois não queria arriscar encostar por acidente na mulher por debaixo do pano. Um suspiro de alívio saiu por meus lábios ao sentir minhas costas contra o colchão macio. Fechei os olhos, buscando a escuridão tranquila de algumas horas, mas ela não veio.
Agora eu simplesmente não conseguia dormir por causa do calor humano emanando ao meu lado. “Ok... isso é compreensível” eu tentava me acalmar mentalmente. Aquela era a primeira vez que eu estava perto de uma pessoa por tanto tempo. Uma pessoa do mesmo sexo que eu. Uma mulher que, para completar, era linda.
“Isso se chama tesão, minha cara” a voz interna da minha mente estava disposta a me atazanar. Porém, o desconforto entre minhas pernas não me deixava mentir. Viro-me de costas para evitar olhá-la pelo canto do olho.
Eu estava ficando louca, era isso. Completamente louca.
- Olhe o que eu achei! – Claire veio até mim, toda feliz.
- O que foi? – pergunto, agachando-me para ficar da altura da menina.
Eu estava na cozinha da casa terminando de arrumar minha mochila para que pudéssemos ir até o condomínio. Dormir na última noite foi uma tarefa muito fácil. Cada vez que eu me remexia na cama, Lauren também o fazia.
E sentir o cheiro da mulher perto de mim não era algo bom.
Era muito bom, mas extremamente errado.
Então a culpa não era totalmente minha se eu acordara com olheiras por causa da noite mal dormida. Ela também não estava lá com seus melhores humores já que, cedo, já havia dado uma patada no irmão que pediu que tomasse cuidado na viagem.
- Eu achei um relógio! – Claire comemorou e abriu as duas mãozinhas que segurava o relógio de pulso feminino.
Eu o peguei e percebi que o utensílio estava em perfeitas condições. Nele marcavam 9h43min. Ele era dourado e tinha detalhes pratas nas laterais. Os ponteiros eram finos e bem feitos. Deveria ter sido uma fortuna.
- E por que você não o deu para Normani, Lauren ou Taylor? – pergunto, tentando ser amigável. – Aposto que elas amariam.
- Eu quero dar para você. – Claire respondeu e abriu um sorriso largo que deixava à mostra sua falha de um molar inferior. – Você é legal, Kaki.
- Pelo visto a Sofia já te ensinou o meu apelido que ela ama, huh? – pergunto, sorrindo.
Meu coração estava aquecido com aquele ato inocente da garota. Ela havia achado um relógio, e aparentemente ninguém do seu grupo também tinha, e decidiu me dar.
Ah, droga, eu sempre fui uma bobona por crianças.
- Eu achei legal o apelido. – Claire replicou e pegou minha mão direita, a abrindo. – Tome. Vai ajudar você na viagem de hoje. Tome cuidado, ok?
- Eu vou tomar, querida, eu vou tomar. – digo e coloco um beijo terno em sua testa.
Ela tenta sorrir, mas de repente, uma crise de tosse a interrompeu. Um chiado acompanhou o catarro escarrado da garganta da menina. Eram os primeiros estágios de uma pneumonia perigosa. A loirinha choraminga, cansada de tossir e eu rapidamente tento chamar sua atenção para a conversa novamente.
- E você tome conta de Sofia e Regina, ok?! Será nosso segredinho.
- Ok! – ela responde, sorrindo e mostrando sua falha do molar.
- Camila? – a voz de Lauren me fez ficar de pé rapidamente.
Viro-me e vejo a jovem me encarando da porta da cozinha. Ela terminava de colocar sua Beretta 92 no cós da calça na parte de trás. Lauren vestia sua inseparável jaqueta preta e uma jeans escura.
- Vamos? – ela chama. – Todos estão te esperando.
- Sim, claro. – digo.
Eu prendo o relógio em meu pulso esquerdo com agilidade e pego minha mochila em cima do balcão. Despeço-me de Claire e caminho ao lado de Lauren até a varanda.
Eu já havia me despedido de Sofia mais cedo, mas a expressão da menininha ainda era emburrada. Ela odiava quando eu saía de perto dela.
Coloco um beijo em sua testa e peço que fosse obediente a Normani que ficaria de olho nela e em Regina. Dinah não agradou muito da ideia, mas teve aceitar a irmã com a morena bonita.
Analiso minha Steyr M. e vejo que tinha apenas mais cinco balas no pente.
É... teria que dar.
Caminho até perto do Nissan de Lauren e vejo que Dinah e Troy conversavam animadamente sobre algum assunto aleatório. O homem terminava de colocar nossas coisas no porta-malas e a loira alta o ajudava. Ela carregava seu machado no cinto da calça e o rapaz a sua AK-47 pendurada nas costas.
- Troy? – a voz de Austin se fez presente. Rapidamente eu vejo o jovem policial caminhar até perto onde estávamos. Christopher estava em seu alcance.
- Sim. – o loiro se virou para ele.
- Fique aqui. Você merece um tempo com a sua filha. Eu vou no seu lugar. – Austin falou.
- Sério? – Troy semicerrou os olhos. – Por quê?
- Quero fazer algo de útil. E ontem deu certo... Se for para ficar aqui, não quero ser um encosto. – o policial falou e me lançou um olhar duro.
Troy olhou para Chris, ainda meio hesitante. Christopher concordou com a cabeça e então o loiro retirou a alça de sua AK-47 das costas e entregou para Austin. O policial posicionou a arma no corpo e caminhou até o carro, sentando-se no banco de trás.
Lauren encarava tudo encostada ao capô do Nissan. Ela não se opôs, mas era visível pela sua carranca que ela não gostara nada daquilo. Logo em seguida ela também adentrou no veículo e se assentou no banco do motorista. Dinah não perdeu tempo, talvez temerosa que os dois já começassem uma briga ali mesmo, e adentrou do outro lado no banco de trás.
Eu me vi apenas com a opção de ir junto a Lauren na parte da frente.
Dinah me lança um olhar sugestivo através do vidro do lado que estava sentada e eu bufo, abrindo a porta do passageiro e assentando-me ao lado de Lauren. Acomodo-me, deixando minha mochila em meus pés e coloco o cinto de segurança.
Lauren faz o mesmo e dá partida no carro, com o barulho do motor roncando baixo. Ela engata a ré e se distancia aos poucos enquanto eu olhava Chris nos observar da varanda.
Ele amava tanto a irmã... Dava para ver em seus olhos.
E por isso eu me perguntava o porquê de ela o tratar daquele jeito.
Lauren faz uma manobra e desce a estrada cascalho do morro. A jovem coloca o carro no ponto morto apenas para poupar gasolina enquanto descíamos. Seu braço esquerdo estava apoiado na janela do carro e uma mão direita no volante.
Eu olho por cima do ombro para Austin e vejo o rapaz perdido em pensamentos encarando a janela. Já Dinah se segurava para não falar algo. Eu suspiro e começo uma contagem regressiva na minha cabeça.
Até quando ela vai suportar?
Mal havíamos pegado a rodovia quando ela sucumbiu ao desejo.
- Jingle bell, jiggle bell... Jingle bell rock. – cantarolava de olhos fechados, evitando obviamente o contato visual. Ela estalava os dedos no ritmo da música. – Jingle bell swing... and jingle bells ring...
Ela abre os olhos e percebe que nós três a encarávamos com uma expressão de “Sério, Jane?”.
- O que foi? – a loira alta pergunta e lança olhares para mim e Austin. E depois olhou Lauren que a encarava através do reflexo do retrovisor. – Eu gostava de Garotas Malvadas, ok? E é Natal!
- Não começa... – Austin comentou rindo e voltando a encarar a paisagem pela janela direita. – Dá última vez que saímos você praticamente recitou as frases do Shrek.
- Minha irmã gostava desse filme... – ela tenta se defender.
- Ata. – o policial resmungou.
- Ah, qual é?! – Dinah revira os olhos e se acomoda melhor no banco. Ela parecia uma criança feliz. – É Natal! Cadê o espírito natalino de vocês! É renascimento da vida!
- O meu espirito natalino morreu quando os mortos voltaram à vida, Jane. – Lauren respondeu enquanto não tirava os olhos da estrada. Sua expressão estava séria e o cenho franzido. A mão direita apertava o volante com força. – Não é o renascimento da vida. É o renascimento da morte!
O sorriso de Dinah desapareceu no mesmo instante. Mesmo que de um jeito duro, Lauren estava dizendo a verdade. E a verdade estava ali fora enquanto passávamos pela rodovia vazia: carros abandonados com sangue seco espirrados nas latarias, um ou dois corpos aleatórios parecendo urubus carnicentos zanzando aqui ou ali, o cheiro de podridão e morte bailando no ar.
Não tinha nada de renascimento da vida ali.
Apenas terror.
A loira decidiu ficar em silêncio e o clima do carro permaneceu desse jeito até que avistamos a rodovia adjacente que nos levaria para o condomínio.
Engulo seco ao ver que aquela rodovia não estava tão vazia assim... Ela parecia um cemitério de carros abandonados.
Lauren resmungou baixo ao ver que teria de diminuir a velocidade e que serpentear em manobras para se livrar dos obstáculos. Olho no relógio e vejo que já são mais que dez e meia da manhã. Ao longe algumas nuvens davam as caras, mas não choveria naquele dia.
Alguns zumbis estavam zanzando perto dos campos e árvores escuras próximas e ao escutarem o barulho do motor, começavam a se mover lentamente em nossa direção.
Ok... Esses ficarão para trás.
Lauren aumenta a velocidade do Nissan quando a quantidade de carros abandonados diminui. Não demorou mais do que dez minutos para chegarmos em frente a um grande portão de entrada azul marinho. Em cada lado dela havia um poste com as lâmpadas quebradas. Ao redor o mato já começava a tomar conta de tudo.
Dinah suspira e abre a porta do banco de trás saindo do carro. Ela olha para os lados procurando por algum intruso e ao ver que estava segura, dá passos firmes e rápidos até o portão.
Mesmo de longe eu pude ver um cadeado enorme segurando duas correntes grossas. Quem esteve ali por último não queria que ninguém mais entrasse... ou saísse.
Austin percebeu que Dinah não teria força suficiente para quebrar aquele cadeado e decidiu sair do carro para ajudá-la.
Sozinha com Lauren no carro eu me arrisquei a olhá-la por cima do ombro. Ela estava compenetrada encarando o portão, como se ainda decidisse se entrava ali ou não.
- Quantas balas você tem? – ela perguntou, sem me olhar.
Eu hesito. Não queria deixar a situação ainda mais desesperadora.
Ao ver meu silêncio Lauren vira o rosto e nossos olhares se cruzam. Pela primeira vez eu vi medo ali estampado.
- Seja honesta, por favor.
Meus olhos quase saltaram de minhas orbitas ao ver as palavras “Por favor” saindo daqueles lábios carnudos.
- Cinco. – sussurro, um pouco atordoada ainda. – E você?
- Um pente completo. Apenas. – responde, com um suspiro cansado. Ela passa as mãos pelo rosto. Seu cabelo estava preso em um coque estratégico. – Por favor, me diga que isso não é suicídio.
- Não sabemos ainda. – respondo, massageando minhas têmporas.
- Nós precisamos de comida, mas... precisamos ainda mais de remédios. – o tom da sua voz era agonizado. – Claire... ela não está bem.
- Eu sei. – murmuro num muxoxo.
- Se não acharmos aqui... se nem gasolina acharmos aqui... eu não sei o que vamos fazer... – seu queixo tremeu, mas ela engoliu o bolo de choro em sua garganta. Lauren inspirou fundo e manteve o controle da situação.
- Se não acharmos gasolina, pegaremos daqueles carros abandonados na estrada, Lauren. Não é possível que não achemos um carro com combustível!
Eu coloco minha mão sobre a sua que ainda segurava firmemente o volante. Com o contato repentino, Lauren rapidamente olha para mim, confusa.
- E se não acharmos remédios aqui dentro, voltaremos até Miami se necessário. Mas nos vamos ajudar Claire, ok?! – digo, olhando em seus olhos verdes.
Ela hesita por alguns segundos, mas finalmente assente com a cabeça e dá um meio sorriso tristonho. Eu lentamente retiro minha mão da sua quando escuto o barulho do cadeado sendo rompido com a quarta machadada de Austin nele.
Os dois voltam para o interior do veículo e Lauren novamente dá partida no Nissan. O portão já estava escancarado quando passamos por ele.
O condomínio foi um dia um bom lugar para se viver. Ele tinha mais que 30 quilômetros quadrados e as casas eram grandes e coloniais, todas padronizadas. A maioria continha garagens enormes que provavelmente guardavam carros caros que fariam jus à classe social dos moradores. As ruas eram amplas, os gramados verdes – graças à umidade constante –, no centro havia uma praça com arcos e arbustos que agora não eram mais podados.
Alguns carros estavam estacionados perto das calçadas ou abandonados no meio da rua, largados às pressas na hora da fuga dos primeiros dias.
Seriam longos 10 quarteirões para revistarmos.
- Não podemos checar tudo hoje. – Lauren quase leu meus pensamentos. – Vamos nos ocupar com aquelas casas ali. – ela apontou para as cinco primeiras do primeiro quarteirão. – Depois vamos dar uma volta de carro para checar o resto.
- Certo. – eu e Dinah murmuramos, mas Austin continuou em silêncio.
Ele odiava receber ordens dela.
A jovem estaciona o carro de um modo estratégico para fugirmos e abre o porta-malas, o deixando pronto para colocarmos qualquer coisa que conseguirmos.
Ao longe podíamos ver alguns andarilhos perambulando preguiçosamente. O cheiro do lugar era uma mistura de borracha queimada, mofo e relva. O silêncio fazia aquele agouro bailar pelos ares.
- Vamos fazer o seguinte. – digo, quando nós quatro nos encontramos parados na calçada. – Aqui é um campo minado. Não sabemos o que há por perto e aqui é grande demais para isso. Aus, você sabe retirar gasolina de carros, não sabe?
- Sim. Só preciso de uma mangueira para puxar de algum tanque. – o policial concorda.
- Ok... você fica encarregado de ir ali... – falo e aponto para dois carros abandonados no fim da rua. – E pegar a gasolina daqueles carros e colocar aqui. – caminho até o porta-malas e pego dois galões de combustível vazios. – Precisamos do tanque cheio e levar os galões para o Nissan de Chris.
Ele assentiu e sequer direcionou o olhar para mim. Suspiro, pensando em quando ele pararia de me evitar.
- Dinah, você vai ficar aqui por perto e vai servir de segurança pra gente. – Lauren falou dessa vez e retirou sua Beretta 92 do cós da calça. – Tome. Me dê seu machado.
As duas trocaram as armas e Dinah logo tratou de subir em cima do Nissan e ficar ali, com uma visão melhor do que poderia se aproximar ao longe.
- Nós entramos. – suspiro, tentando me encorajar mentalmente.
Prendo minha mochila vazia nas costas e coloco minha pistola na parte da frente da calça. Pego minha inseparável faca e espero por Lauren que ainda analisava o machado em mãos. Christopher havia ficado com a sua espingarda.
Caminho pelo jardim da primeira casa e antes de entrar dou uma olhada em suas laterais, procurando por algo. Ao achar nada, subo os três degraus da casa atrás de Lauren que já preparava para abrir a porta.
Ela me olha e apenas com sua expressão eu sabia que ela esperava um sinal. Eu afirmo com a cabeça e ela gira a maçaneta abrindo a porta e dando-me espaço para entrar.
Já entro na casa com minha Steyr M. levantada. Olho para todos os lados procurando por intrusos. Lauren se mantinha ao meu lado, com o machado pronto para atacar.
Um único rosnado típico ecoa na da sala de estar. Lauren faz um sinal com a cabeça e caminha lentamente em direção do cômodo da casa. Eu vou ao outro sentido em direção da cozinha. O piso da casa era de taco, os móveis eram bem desenhados e as cores das paredes eram vivas – graças aos padrões de flores do papel de parede.
Entro na cozinha e meus olhos ardem ao ver a cena na minha frente. Uma ânsia de vômito rapidamente ameaça jogar para fora todo o meu café da manhã que foi baseado em uma barra de cereal e frutas.
No centro da cozinha estava um cadáver podre, totalmente em decomposição. Seu abdômen estava totalmente dilacerado, entranhas estavam espalhadas, a cabeça explodida com um buraco de espingarda. Vermes se remexiam em meio aos músculos expostos.
- O andarilho da sala já se foi. – a voz de Lauren apareceu atrás de mim. – O que f... Ai que merda. – ela resmunga, virando o rosto ao ver a mesma cena que eu encarava.
Com uma careta de nojo eu piso com cuidado sobre as entranhas que tornavam o chão escorregadio. Os mosquitos estavam aos montes ali e eu precisava o tempo inteiro me livrar deles para que não adentrassem na minha boca ou nariz.
- Vou checar no segundo andar. – Lauren avisa e novamente some ao subir as escadas.
Abro os armários e recolho algumas latas de soja e milho que estavam abandonadas no fundo. As jogo em minha mochila e continuo a procurar por todas as portas. No final consegui recolher três latas de milho, duas de soja e alguns sacos de biscoito.
As pessoas pelo visto haviam levado muita coisa quando fugiram.
Abro a geladeira e acho algumas garrafas com água. Eu abria uma para beber quando Lauren apareceu segurando uma sacolinha.
- Achei algumas pomadas antibactericidas e pasta dental. Ninguém merece hálitos cheirosos de manhã, não é? – ela dá uma risadinha.
Eu reviro os olhos e acompanho para fora da casa. Na calçada estava debruçado um zumbi e eu franzo o cenho ao ver que Dinah agora estava sentada no capô.
- Esse filho da mãe apareceu, mas nada que minha linda faca não fizesse o trabalho. – ela murmura, balançando as pernas, entediada.
- Tome e cale-se. – digo, jogando um saco de biscoito para ela.
Ela abre um sorriso de criança e se põe a comer em silêncio. Ao longe Austin trabalhava em retirar gasolina dos carros. Eu e Lauren colocamos o que havíamos achado dentro do porta-malas e partimos em direção da outra casa.
Fizemos a mesma coisa e adentramos, encontrando a casa vazia dessa vez. Essa parecia em perfeito estado e a cozinha estava repleta de comida.
Sorrisos aliviados nasceram em nossos rostos.
Enquanto Lauren dessa vez recolhia a comida na cozinha, eu subi as escadas em direção do segundo andar. Tentava fazer o mínimo barulho possível para não alargar qualquer ser que poderia estar ali. Ergo minha pistola e abro porta por porta dos cômodos, encontrando-os também vazios.
Abro minha mochila e começo a jogar em seu interior cobertores, algumas roupas quentes e outras coisas fúteis, mas que faziam falta. Caminho até o banheiro e abro a porta já provavelmente sabendo que não haveria nada ali.
Meu engano.
No momento que uma fresta é aberta a porta é puxada e um grunhido alto ecoa. Um zumbi moreno, forte, mais parecido com um armário de tão grande caminhou em minha direção com sua boca escancarada parecendo um poço sem fundo. Seus olhos estavam arregalados e brancos. Uma mordida profunda era visível em sua clavícula esquerda.
Seus braços me seguraram pelos ombros e me empurraram em direção da escada. Minhas costas batem no corrimão e em gemo em dor. Eu tentava o empurrar para trás, mas minhas mãos apenas continuavam espalmadas em seu peitoral, que um dia foi definido.
O som de seus dentes batendo me deixou ainda mais desesperada. Ele errava meu ombro apenas por centímetros. Tão perto que eu podia sentir o cheiro da podridão emanando dele. Ele continuava a me pressionar contra o corrimão e meu corpo já começava a se inclinar para baixo.
Ser mordida ou cair de quatro metros?
Pelo menos eu tenho opções para morrer.
Eu inspiro fundo e procuro forças da profundeza de meus músculos já cansados. Meio desengonçada eu dou um chute na perna do zumbi e ele se desestabiliza, pendendo o peso do corpo para o lado. Não perco tempo e inverto nossas posições, o empurrando contra o corrimão. Dou dois chutes seguidos em seu joelho e escuto o barulho aquoso da articulação se rompendo.
O zumbi perde o jogo das pernas e eu termino de empurrá-lo do corrimão. Dois segundos e eu escuro o barulho de sua cabeça explodido no chão do primeiro andar da casa. Respiro várias vezes para acalmar meu coração e inclino para ver o estrago lá em baixo.
Lauren me encarava com a cara toda labuzada de gosma encefálica. Arregalo os olhos ao ver que o zumbi explodiu no chão a poucos centímetros de onde ela estava parada.
- Mais meio metro e esse brutamonte caía em cima de mim... – ela me encarava com um olhar mortal. Seu queixo e roupas pingavam de gosma de zumbi. Apenas seus olhos verdes eram visíveis de longe. – Eu já estava subindo para te ajudar, porra.
- Desculpe... – eu dou de ombros, com um sorrisinho sapeca. – Mas eu sei me virar... Porra.
Ela passa a mão pelo rosto tirando o excesso de gosma e bufa. Mas eu podia ver o sorriso desafiador no canto de seus lábios.
Hum... alguém gosta de ser desafiada.
Deixo-a me encarando e volto a procurar por alguma coisa no banheiro. Abro um armário pequeno e suspiro aliviada ao ver três fracos de antibióticos ali. Teríamos alguma coisa para tentar tratar Claire. Pego eles, mais algumas pastas de creme dental, algumas escovas dentro das embalagens e cacau para os lábios ressecados do frio.
Vasculhamos as casas seguintes e isso nos tomou quase a tarde toda, já que na penúltima, encontramos não apenas dois zumbis, mas sim cinco enfurnados dentro da cozinha. Eu e Lauren precisamos abrir a porta devagar e deixar que cada um saísse de uma vez para que assim os abatêssemos com calma.
Lauren precisou achar água para se limpar. Ela continuava resmungando, mas eu não mais me importava com isso. Na verdade, achava às vezes até fofa sua carranca.
Nosso tanque já estava cheio e Austin terminava de colocar o último galão dentro do porta-malas. Nos acomodamos no Nissan e damos partida. Ao sairmos do condomínio fechamos os portões apenas para que quando voltássemos não encontrássemos mais andarilhos ali.
Sim, voltaríamos, porque ali era um baú cheio de comida e coisas para usarmos. E nos deviríamos, já que era o plano inicial cada um seguindo seu rumo. Portanto, precisaríamos do dobro de coisas.
Logo voltamos para a rodovia principal e não demoramos muito para já estarmos subindo a estrada de cascalho do morro. No céu havia uma misturada laranja do fim do dia.
E então meu coração apertou ao começar a ver corpos de zumbis perto da casa de campo. Era no mínimo uma dúzia de andarilhos com as cabeças explodidas ou rachadas.
- Que porra aconteceu?! – Lauren gagueja, saindo do carro quando mal o estacionou.
Não perco tempo e começo a correr em direção da casa. Meu coração já estava apertado e meus olhos já lagrimejavam ao pensar que o pior poderia ter acontecido com minha irmã.
Chris ao ouvir o barulho de nossos passos apareceu na varanda segurando a espingarda em mãos. Ele dá um suspiro de alívio. Sua roupa estava totalmente manchada de sangue negro.
- Uma dúzia e meia de zumbis subiram o morro. – ele murmura, meio abatido e cansado. – Mas felizmente não perdemos ninguém. Eu acho...
- Cadê minha irmã? – eu pergunto, já adentrando na casa e olhando para todos os lados. – SOFIA!
Ao ouvir minha voz a minha irmãzinha apareceu correndo de dentro de um dos quartos e se jogou em meus braços. Regina também apareceu e correu para Dinah que estava atrás de mim.
- Está tudo bem. – Normani aparece ao lado de Taylor. – Elas estão bem.
- Obrigada! – Dinah falou, exasperada. – Obrigada por tomar conta dela!
- De nada... – Normani murmurou, um pouco envergonhada. A morena segurava uma Claire adormecida nos braços.
- O que você quis dizer com “eu acho”? – eu escutei a voz de Lauren lá de fora.
- Troy... ele... caiu e bateu a cabeça com muita força no chão. Ele está desacordado e sangrando.
Olho para Taylor e Normani e elas concordam com a cabeça, confirmando a fala de Christopher. Coloco Sofia no chão e caminho até o quarto que elas se encontravam. Abro a porta e vejo Ally sentada ao lado do homem na cama, limpando a testa do mesmo com um pano úmido.
- Ele teve uma concussão. – Ally sussurrou e voltou a encarar o loiro. A enfermeira estava agoniada. – Eu não se... se ele vai acordar. Ele está sangrando pelo ouvido esquerdo.
- Sabem que... o problema é realmente se ele acordar, não é? – a voz de Lauren se fez presente ao meu lado e eu dei um passo para o lado assustada.
Ally assentiu com a cabeça e voltou a encarar o loiro.
Se ele acordasse teríamos duas opções:
Se ele ainda for humano, precisaremos achar remédios apropriados rapidamente.
Se ele for um zumbi... Presaremos enfiar uma faca em seu cérebro.
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