História Jordan Wolfe e a Disputa Maldita - Um menino de sutiã

   À medida que o navio ganhava altitude eu sentia que parte de mim estava sendo deixada para trás, me sentia incompleto como se tivessem arrancado um membro do meu corpo. Eu já imaginava que a despedida seria difícil, mas agora era a parte pós cirurgia, a parte da recuperação, e eu tinha que seguir em frente. Manter o foco era essencial para eu completar minha missão.
   Não era a primeira vez que eu viajava em um navôo. Navôos eram embarcações voadoras que serviam como meios de transportes coletivos para viagens de longas distâncias. Eu já estava habituado com com esses navios voadores mas aquele era meio assustador, parecia que ia se partir ao meio a qualquer momento de tão velho e gasto.
   Eu estava parado no convés me recuperando da despedida traumática quando ouvi passos às minhas costas e me virei para olhar. Uma bruxa gorducha com vestes verde musgo e bota que rangiam se aproximou de mim. Ela me olhou como se esperasse que eu tomasse alguma atitude, e só o que pude fazer foi reparar na enorme verruga que ela tinha no nariz.
   - Vai para onde moleque? - seu tom era rabugento.
   - Para o Brasil. - respondi cautelosamente.
   - Vai custar 20 cruzadas. - Cruzada era a moeda bruxa brasileira. Eu tirei um um saco cheio delas do bolso e entreguei para a mulher  - Vai ser uma viagem longa, vou te levar até uma cabine.
   Ela se virou para me mostrar o caminho mas neste momento um garoto miúdo surgiu de uma porta e bloqueou o caminho. Ele usava uma calça jeans e uma blusa de moletom marrom um pouco grande para o seu tamanho e seu rosto estava quase totalmente oculto por uma sombra causada pela aba de seu boné.
   - Deixa que eu levo ele dona Alba, estão precisando de você na cozinha. - sua voz soou um pouco infantil quando falou.
   A bruxa verruguenta saiu resmungando e me deixou sozinho com o garoto. Ele me levou até uma cabine e eu tive que abaixar a cabeça para passar pela porta. O lugar era bem apertado e iluminado por velas. Tinha duas camas, uma encostada na extremidade esquerda e outra na direita. Um armário de madeira havia sido colocado rente à parede de fundo e havia uma porta a um canto, que deduzi ser o banheiro.
   - Acho que é meio pequeno para você. - ele deu uma risadinha no que eu fechei a cara. Agora eu ia ser zuado antes mesmo de chegar na escola? Mas ele se apressou em concertar - ei, calma ai grandão, não falei por mal. - ele entrou na cabine e sentou na cama da esquerda. - É só uma brincadeira.
   Não respondi e continuei de cara amarrada. Aquele garotinho miúdo de voz fina ia ficar tirando onda com minha cara?
   - Ei cara, relaxa, eu sou assim mesmo, gosto de zuar, mas não fique ofendido. - pude perceber sinceridade em sua vozinha.
   Não estava afim de responder, invés disso sentei na cama da direita, ela estalou com o meu peso.
   - Então... escutei você falando que vai para o Brasil... Você estuda em Castelobruxo?
   - Estava fazendo intercâmbio em Uagadou, mas vou voltar pra Castelobruxo esse ano. - respondi de má vontade.
   - Não vai se arrepender - Disse ele com um sorrisinho - esse ano vai acontecer a Disputa Maldita na escola... estou morrendo de ansiedade, ainda bem que as aulas começam amanhã! - ele se levantou e foi até o armário, pegou dois cobertores surrados e jogou um para mim - e ai, qual o seu nome grandão?
   - Me chamo Jordan. - respondi observando o garoto estender o cobertor na sua cama.
   - Prazer Jordan, sou Jô.
   Ele estendeu a mão pequenina e eu a segurei com a minha do tamanho de um chinelo número 40.
   - Que mãozão em meu chapa!  - zombou ele  soltando minha mão - agora eu vou dormir grandão,  trabalhei aqui durante as férias para ganhar um trocado e não vejo a hora de me ver livre deste lugar amanhã! - Ele tirou a calça ficando só com uma cueca preta - se não se importa eu só durmo de roupa íntima. - Disse ele tirando a camisa.
   Meu queixo caiu. Arregalei os olhos pois não acreditava no que estava vendo.
   O menino estava usando um top e tinha seios. Tudo bem que não eram grandes seios, mas eram seios! Minha cabeça deu um nó. Será que ele tinha alguma doença que fazia os mamilos crescerem? Baixei os olhos e vi que não tinha volume nenhum em sua cueca e minha ficha foi caindo.
   - Você... É menino ou menina? - a pergunta indelicada escapou da minha boca.
   Jô sorriu para mim.
   - Eu sou lésbica. - Disse.
   - Mas...
   - Sim, eu jogo no mesmo time que você.
   Ela se deitou na cama e se cobriu. Eu ri meio constrangido.
   - Você me enganou baixinha.
   - Acho melhor você se preocupar em como vai caber nessa cama. - retrucou ela.
   - Nada que um exímio transfigurador não possa resolver! - eu saquei a varinha e apontei para a cama e com um agito a transformei em uma cama maior. Eu sempre gostei de transfiguração, sempre foi minha matéria preferida e o motivo de eu ir para a África. Uagadou era referência em transfiguração e auto-transfiguração e hoje eu tinha orgulho de dizer que era um excelente transfigurador e tinha realizado meu sonho de me tornar um animago.
   Desejei boa noite a Jô, apaguei as velas e me deitei, ainda rindo de tudo aquilo. Se Zahara estivesse ali ela riria também. Ela achava engraçado todas as mancadas que eu dava e eu amava bancar o palhaço para fazê-la sorrir. Lembrei-me do seu sorriso na praia e dos nossos patronos. A saudade era tão grande que eu sentia uma dor rasgando o meu peito.
   Eu não sei quanto tempo demorei a dormir ou quando comecei a sonhar, só sei que era um sonho muito real pois era uma lembrança de algo que vivi a três anos atrás...
   No sonho fazia uma noite agradável e Zahara e eu estávamos deitados no Jardim da escola. Ela amava as estrelas e conhecia cada constelação existente.
   - É lindo não é? - ela suspirou olhando para o céu.
   - Não tanto quanto você. - respondi sorrindo.
   - Estou falando sério Jordan. Eu acho as estrelas tão fascinantes! Elas são tão... misteriosas e guardam tantos segredos...
   - Segredos?
   - Imagina só tudo que elas veem la de cima: as broncas que os pais dão nos filhos, as brigas entre irmãos, os amigos que saem juntos para se divertir, os casais apaixonados... - sua última frase saiu como um sussurro.
   Eu me apoiei no cotovelo para ver seu rosto.
   - Então quer dizer que você só me trouxe aqui para as estrelas testemunharem mais um caso de amor? - indaguei.
   - Não é mais um caso. É o caso. Pode ter certeza que as estrelas jamais viram e jamais verão um amor como o nosso.
   Eu olhei em seus olhos sentindo meu coração disparar.
   - Você é linda... - me aproximei para beijar sua boca mas ela me empurrou para a grama.
   - Algum professor pode ver! - ela corou e voltou olhar as estrelas. Minutos depois ela apontou o dedo para o céu. - Está vendo aquela constelação ali?
   Eu segui seu dedo e vi uma constelação que tinha estudado em astronomia mas não lembrava o nome.
   - Estou.
   - É a constelação Leão, a do meu signo.
   - Espera, seu signo é leão? - me apoiei no cotovelo novamente.
   - É sim por quê?
   - Olhe só que interessante... Expecto Patronum!
   Um grande leão patreado saiu da ponta da minha varinha e passou a correr pelo ar.
   - Uau! Isso é inacreditável! - sua expressão estava extasiada - Agora só falta você me dizer que seu signo é...
   - Áries. - completei excitado.
   - Ah para... olha isso... Expecto Patronum! - Um cordeiro prateado saiu da ponta de sua varinha e começou a correr junto do leão.
   Nós dois rimos, meio incrédulos, e eu tombei meu corpo para cima do dela de modo que meu rosto ficasse a centímetros do seu.
   - Você sabe o que isso significa não sabe? Até as estrelas torcem para a gente ficar junto.
   - Isso significa que eu vou estar sempre com você meu amor, quando você conjurar um patrono, quando você olhar para as estrelas, eu sempre vou estar lá, porque eu te amo.
   - Eu te amo Zahara Enam, e as estrelas nunca testemunharam um amor assim. - Eu fechei os olhos e aproximei meu rosto tentando encontrar seus lábios até que algo acertou minha cabeça.
   - Acorda grandão! - Jô havia jogado o travesseiro em mim e eu acordei assustado. Me sentei na cama com a mente ainda naquele sonho vívido.
   - Já é de manhã?
   - É sim. E por que você dorme fazendo biquinho em? - ela riu e me passou uma bandeja com uma xícara de café e biscoitos - come logo, chegamos ao Brasil!