No outro dia, acordo ainda revoltada pela briga de ontem com Shawn. Nunca achei que algo assim poderia acabar acontecendo entre nós dois mas, adivinhe, aconteceu.
Me levanto e vou para o lugar que sempre vou quando estou revoltada, o rinque. Não espero encontrar ninguém lá quando eu chegar, pois ainda é cedo e as pessoas não vão muito até lá pela manhã. Pego um táxi, com a mochila pendurada no ombro. Meus patins já estão quase inteiramente secos, apenas um pouco úmidos, mas até eu colocá-los nos pés, vão estar em estado melhor.
Não acredito que consegui brigar com Shawn justo agora. Justo quando ele ia lançar Ruin, quando estávamos nos dando bem e quando achei que poderia talvez ser um pouco mais do que uma amiga para ele. De repente, me lembro da sensação de seus lábios contra os meus e do jeito que ele me segurou enquanto me beijava, e um calor se espalha por todo o meu corpo. Penso no quanto eu daria apenas para sentir aquilo de novo, e depois sou atingida pelo fato de que provavelmente não vai acontecer.
Eu me obrigo a pensar de outra maneira sobre o caso. Lembre-se do que ele te disse. Ele não te quer aqui e nunca quis. Pelo menos foi isso que Shawn deixou em evidência ontem. Foi isso que me deixou mais revoltada. Ele sempre me disse que gostava de mim, que me amava como pessoa e amiga e que adorava me ter ao seu lado, mas dizendo aquilo, era como se tudo tivesse sido uma farsa.
Me recuso a pensar que essa é a mesma pessoa pela qual me apaixonei há quatro anos, a pessoa insegura sobre si mesmo, que postava vídeos de seis segundos em uma rede social, sem a mínima esperança de algum dia ser reconhecido por alguém. Não, essa não é a mesma pessoa sobre a qual estou pensando agora.
Também não estou falando sobre o Shawn Mendes que conheço como amigo e parceiro, que é fofo, gentil, engraçado e carinhoso com toda e qualquer pessoa pela qual encontra em sua vida. Não, a pessoa que gritou comigo ontem é alguém completamente diferente.
Me dou conta de que essa pessoa é, na verdade, o Shawn de dentro. O Shawn que perde a paciência, o Shawn que se irrita e se deixa magoar igualmente. O Shawn que quase nunca é visto por ninguém nesse mundo, que é muito bem escondido por uma barreira de sorrisos e felicidade. Também não estou falando que isso é tudo mentira, que o Shawn que exibe sorrisos para todos é uma farsa, porque sei que isso não é verdade, que ele está sim vivendo um sonho, e que está mais feliz do que nunca, mas mesmo assim... Todos às vezes precisamos nos expressar.
Sometimes it all gets a little too much. É sobre isso que me refiro agora. O Shawn que escreveu essa música, o Shawn que chegou em um ponto da situação em que não aguentou mais e jogou tudo para fora, essa é a pessoa que gritou comigo ontem. E eu não o culpo. Pois não ser influenciado pela doença da fama, não mudar quem você é por dentro, é algo realmente difícil de se fazer, e ainda assim ele conseguiu impedir que isso acontecesse.
Mas ainda assim não consigo perdoar tudo o que me aconteceu ontem. Não consigo perdoar o impacto das palavras que me atingiram como socos. Apenas consigo entender o motivo. Não irei perdoar tão cedo.
Saio do táxi e entro rapidamente pelas portas do rinque. Passo reto pela pessoa que está parada na entrada e que me dá bom dia, e me sinto um pouco mal por ser tão estúpida. Não reconheço a pessoa, mas deve ser alguém que trabalha por aqui.
Coloco os patins com pressa e entro na pista, tentando detectar alguma diferença em seu funcionamento ou no modo como se ajeitam aos meus pés, mas só percebo uma leve resistência em alguns movimentos, nada que realmente me atrapalhe.
Começo a treinar as mesmas coisas de ontem e percebo o quão exausto meu corpo está. Quase não consigo fazer as coisas mais básicas, mas mesmo assim, começo a treinar o Double Flip, seguido do Double Loop, novamente.
Fico treinando por várias horas seguidas, até que minhas pernas começam a doer, e então sei que devo me esforçar um pouco mais.
Reparo que algumas poucas pessoas estão sentadas pelas arquibancadas, mas ninguém além de mim na pista. Estou caindo em muitos dos Double Flips que faço, e a dor não é pequena. O impacto vai sempre no mesmo lugar, no lado de minha coxa esquerda, e rolo para o lado toda vez que atinjo o chão.
Há um momento em que pulo mais alto e giro bastante, quase acertando, mas quando caio no chão, minha bunda atinge o gelo por primeiro, mas a maior parte do impacto é em outro lugar. Atrás de minha cabeça.
A dor é tão intensa que não consigo fazer nada; Não consigo chorar, gritar ou me mexer, apenas ficar parada deitada da costas no chão.
Quando a dor diminui, rolo para o lado e fico de joelhos, encolhendo meu corpo em uma bola e colocando as mãos em minha nuca, onde atingi o chão. Minhas pernas e costas também doem, mas o que mais me atrapalha é a cabeça. Fico no chão, ao contrário do que sempre faço. Por mais intensa que fosse a dor, eu sempre levantava, sempre, porque sabia que alguém iria me ajudar a fazer aquilo parar, e que tudo ficaria bem. Mas agora estou sozinha; sei que estou sozinha, e não há ninguém aqui para me socorrer.
Parece que estou mudando meu jeito de pensar.
Tento abrir os olhos e vejo alguns pontos de luz, e depois tudo fica preto. Mas como assim? Pisco e levanto a cabeça, tentando olhar envolta, mas só vejo preto, e mais preto.
Começo a entrar em pânico. O que está acontecendo? Onde estou? Ainda sinto o frio do gelo sobre mim, molhando um pouco minhas roupas, mas não consigo reconhecer mais nada além disso; ha apenas a vasta escuridão ao meu redor.
Alguma coisa, braços, me agarram e me levantam, me puxando para uma posição ajoelhada. Continuo sem ver nada e sem saber o que está acontecendo, então começo a me debater para forçar minha liberdade. Minha mente gira com o movimento repentino e sinto minha cabeça pesar. Com isso, sei que duas coisas podem acontecer agora. Ou eu vou vomitar, ou...
Mas a escuridão me envolve por completo e eu me entrego à forma pacífica de seu silêncio, me deixando ficar inconsciente do que acontece no resto do mundo.
P.O.V. Shawn
Fico parado na frente da proteção de vidro, sem criar coragem para avançar. Às vezes me abaixo para que não possa ser visto, mas na maior parte do tempo, apenas fico totalmente ereto, observando.
Vim aqui com o propósito de tentar me desculpar com Ally, mas não consigo. Estou parado aqui, tentando criar coragem para ir até lá como no primeiro dia em que a vi patinando. Estou me sentindo um pedaço de lixo, na verdade, por causa do que falei. E não acho que talvez possa ser desculpado por ela.
Não custa nada tentar.
Fico apenas observando ela patinar, me lembrando das palavras duras que ela também jogou contra mim ontem. Vejo que ela está cansada, que seu corpo está cansado, e que ela deveria parar. Nos últimos dias, tenho reparado que ela ficou meio magra; quando eu seguro sua mão, está ainda mais fina do que já é normalmente. Talvez seja impressão minha, mas acho que há alguma coisa errada.
De vez em quando dou alguns passos para a frente, me aproximando mais da entrada da pista. Paro ao lado do vidro de entrada e espero. Vejo Ally começar a repetir o salto que está fazendo há algum tempo e, novamente, cair no chão. Mas ela bate a cabeça, e o impacto parece ser forte. Quase me lanço para a frente e grito seu nome, mas não quero ser notado. Ela está bem.
Conforme o tempo passa, percebo que ela na verdade não está bem. Depois da queda, Ally não se levantou, e está caída de costas no gelo, sem se mover. Agora estou realmente preocupado. Começo a me locomover pelo gelo o mais rápido que posso tomando o cuidado necessário para não cair. Não tenho tempo para colocar patins agora, então vou escorregando pelo gelo até chegar até Ally. A agonia de não poder estar logo com ela e de ajudá-la ameaça me consumir por inteiro. Quando estou quase perto o bastante para tocar em Ally, ela se vira e fica de joelhos, encolhendo o corpo em uma posição de dor. Ela nunca fica tão mal de não se levantar; ao menos se senta para indicar que está tudo bem.
Isso não é uma coisa normal.
Finalmente consigo chegar perto o bastante e me jogo para a frente, agarrando o corpo quase inconsciente de Ally e a puxando para perto de mim. Ela grita e esperneia, mas logo seus braços perdem a força e ela fica completamente imóvel sobre mim.
Sei que não vou conseguir sair daqui sozinho, não com o peso do corpo dela somado com o meu, então pego meu celular e ligo correndo para Cassie. Sei que ela vai entender a gravidade da situação quando souber que é sobre Ally, então ela é a primeira pessoa sobre a qual penso.
Com sorte, Cassie diz que não está muito longe e que logo vai chegar. Volto minha atenção para o rosto de Ally, que está incrivelmente pálido. Tocando sua bochecha, percebo que também está frio, assim como suas mãos. Ponho dois dedos ao lado de sua mandíbula para sentir o pulso, que está um pouco fraco, mas constante, e inclino meu rosto para verificar a respiração. Esta tudo certo, ela só desmaiou.
Então por quê meu coração ainda bate rápido e pânico se espalha por meu peito??
Se acalme, Shawn. Ela está bem. Ally está bem.
- Shawn! – Alguém grita atrás de mim e viro a cabeça. Vejo Cassie parada na entrada da pista, aparentemente em dúvida sobre entrar ou não, o cabelo ruivo preso em um coque no topo da cabeça.
- Pegue o carrinho! Não vale a pena vir andando. – Grito de longe e me viro de volta para Ally. Agora os lábios dela estão com uma cor azulada, por mais que esteja calor aqui. Seguro seu rosto com minhas mãos, tentando esquentar a pele fria e me inclino para baixo, encostando minha testa na dela.
Quando Cassie chega perto com o carrinho, ela me ajuda a colocar Ally em meu colo quando sento e depois vamos para a saída. Cassie já tem dezoito anos e uma carteira de motorista, então ela nos leva até o apartamento de Ally, enquanto tento cuidar dela no banco de trás, deitando sua cabeça em minhas pernas.
- Não seria melhor a gente levar ela para o médico? – Cassie pergunta em certo ponto.
- Não... Eu acho que sei o que aconteceu. – E fico em silêncio. Tenho uma vontade enorme de beijar Ally agora, mas sei que não é o momento. E não mereço isso.
Chegando na casa dela, eu a carrego para dentro rapidamente enquanto Cassie liga para um médico, apenas por precaução. Ponho Ally com cuidado no sofá e apoio sua cabeça em uma almofada. Cassie me passa o telefone para que eu possa explicar o quanto sei da situação, e então ele diz o que eu já sabia. Não é nada sério. Meu palpite estava certo.
Desligo o telefone e me ajoelho ao lado da cabeça de Ally no sofá, olhando seriamente para ela. Me viro e vejo o telefone dela sobre a mesa, com uma mensagem de sua mãe piscando na tela.
Olhando para ver se Cassie não vem, desbloqueio o celular e vejo as mensagens anteriores.
Beth: Oi filha, lembra que você ia logo nos visitar no Brasil?
Ally: Sim, mãe. Estava pensando nisso hoje...
Beth: Tem um voo bom para o começo da semana que vem, você acha que consegue ficar pronta até lá?
Ally: Com certeza! Estou afim de voltar mesmo...
Beth: Muito bem, vou comprar sua passagem, logo passo as informações para você ter o ticket.
Ally: Ok, obrigada, preciso ir mãe!
Beth: Ok, te amo filha!
As mensagens acabam por aí. E me sinto ainda pior do que já estava me sentindo antes, porque sei que eu a incentivei a pensar mais sobre a ida ao Brasil. E agora vou ter menos tempo para ficar com Ally do que eu achava, primeiro porque ela não vai falar comigo e segundo porque vai embora. E eu causei isso.
Bloqueioo o celular e solto um suspiro olhando para ela. Parece tão pacífica assim, quieta e adormecida. Me aproximo dela dou um beijo em sua testa, me proibindo de tocá-la mais do que isso.
Vou embora depois de pedir a Cassie que fique com Ally até ela acordar, e que não diga uma palavra sobre eu ter estado aqui.
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