Voltei para casa. Poderia ser Berlim ou, mais do que isso, poderia ser a casa de meus pais longe de tudo. Apenas os campos, as maçãs e meu antigo quarto com todas as minhas lembranças de criança. Minha mãe ainda o mantinha da mesma forma depois de tanto tempo. As poucas vezes que retornei ainda pude ver as bonecas sobre a cama devidamente penteadas e com seus vestidos limpos e cheirosos. A caixa de música que ganhei no meu aniversário de 10 anos, tocava o primeiro movimento da Sonata ao Luar de Beethoven e eu lembro que todas as vezes que ouvia tinha a sensação que não viveria muito. Estranho. Todas as vezes que recordo os acordes da Sonata sinto um frio pelo corpo e não consigo manter a concentração em qualquer outra coisa. Alguns anos atrás quando me sentia triste eu fazia esse exercício - recordava cada nota dessa música e perdia-me na confusão de meus calafrios para que a tristeza abandonasse meu corpo. Funcionava.
Estava sentada na sala silenciosa do meu apartamento e ouvia os sons de Beethoven na minha cabeça, mas não conseguia expulsar aqueles calafrios. Isso costumava funcionar. Não mais. Eu não me atrevi a colocar os pés na rua desde que saí da sala de Kristoff fazia dois dias. Dois longos dias enfurnada naquele lugar pequeno e sem vida. A minha própria vida parecia esvair-se naquele sentimento de medo. Repeti todos os diálogos que travei com meu pai, Kristoff e a visita de Hook. Palavra por palavra. Sensação por sensação. Eu estava com medo. Notas graves de um piano são como as batidas do coração com medo, todo o corpo responde com receio de que algo vai desmoronar sem avisar.
Do lado de fora daquelas paredes sufocantes nada de novo acontecera e eu tinha certeza ou alguém já teria batido à porta ou, o pior, entrado sem avisar. O sofá já tinha as marcas certas do meu corpo e a cama revirava-se num emaranhado de tecidos amassados. Eu tentei ler, tentei ouvir música num pequeno gramofone que trouxera de Berlim. Presente de Elsa. A curiosidade para saber sobre sua chegada até tentou fazer-me remexer na minha angústia, mas estava cansada demais para ir atrás de algo que poderia não ser tão agradável como fora em outro tempo.
Eu não queria seguir na missão. Não queria observar, perseguir, abordar, prender. Eu não queria matar. A Sonata levava meus pensamentos para Munique, mas eu teria que responder em Berlim por minhas escolhas em Paris. Não haveria de tentar projetar minha mente em qualquer outro lugar da Europa, eu sempre cairia nas implicações da guerra. Eu queria essa guerra? Até um certo momento no passado sim. Convicta de que o Partido Nacional-Socialista tinha as melhores pretensões e atitudes para levantar a Alemanha ao seu patamar de grande nação. A grande nação ariana! Os discursos inflamados do Führer, a alegria dos jovens alistados, a disposição dos civis em contribuir para a causa e o sentimento de superioridade da raça alemã. Eu queria tudo isso? Olhando para estes móveis de madeira adornada e tecidos bordados parecia que tudo aquilo não passava de uma pantomima extremista - Hitler falava e o povo repetia, aplaudia, reverenciava. Essa pantomima que nos obriga a usar máscaras e dançar uma música fúnebre, tão soturna quanto as notas graves de um piano lamentando à luz do luar. Obrigação? Eu não tenho obrigação com nada disso! O que eu estava fazendo ali dentro daquele apartamento frio refletindo sobre obrigações que não me pertenciam de fato? Eu não queria estar ali, não queria me subordinar à ordens que iriam contrariar minhas convicções e elas não correspondem ao que meu pai ordena que faça. Não. Eu não queria ser obrigada a dispender todo o meu tempo perseguindo pessoas que estavam buscando o direito de se manterem vivas e de protegerem os seus. E eu? Eu estava seguindo ordens de pessoas que queriam a dominação de outras pessoas. Se fosse só o terrível desejo de dominar já seria um ganho, mas o que estava por trás das ações dessa dominação eu não tinha coragem de repensar.
Eu fiquei zonza com tantas lembranças e pensamentos tortos. Levantei-me do sofá e desliguei o gramofone. Olhei por um bom tempo o disco na bandeja e corri os dedos sobre ele. Sonata ao Luar. Virei o corpo buscando pela janela e olhei as luzes de Paris. Mas não foram as luzes da cidade que fizeram meus olhos brilharem. Foi um papel colorido que só pude ver uma ponta a princípio caído debaixo do sofá. Quando apanhei aquele pequeno folheto todo cheio de letras contornadas e suas cores diversas meus olhos se encheram de um desatino que precisei sentar-me novamente e observar melhor aquela folha em minhas mãos.
Les magnifiques
La comédie des malentendus
Théâtre de l'Odéon
Apenas uma pessoa que esteve ali naquele sofá poderia ter um panfleto daqueles nas mãos.
Pense rápido, Emma!
Já não era tão cedo e não tinha certeza que chegaria a tempo para assistir ao espetáculo. Na verdade eu não queria assistir a espetáculo algum. Eu queria Regina. De todos os meus medos saltando pelo corpo nas notas da Sonata, a névoa de meu pesadelo estava por toda a parte e era por Regina que meu coração tinha medo. Só assim compreendi que a música que ouvira para confundir meus medos seria inútil, ela jamais funcionaria, pois meus medos não diziam respeito a mim. Meus medos eram por Regina.
Henry deve ter deixado cair enquanto esteve no apartamento. Era lá, afinal, que seu grupo se reunia e se apresentava. Encontrara o que tanto o general insistia que era importante - uma comédia de enganos. Parece uma grande brincadeira comigo, mas não era. Uma comédia reunia um grupo que agia contra o nazismo e eu era participante dessa peça como a pessoa que cerraria o pano. Não poderia. Depois de tudo que acabara de compreender ao som da Sonata, não poderia ganhar as ruas de Paris novamente para fazer tudo ao contrário. Fazer tudo errado.
“Está no lugar errado, no exército errado fazendo as coisas erradas.”
As palavras de Henry faziam muito mais sentido agora. Se as respostas para minhas indagações eram que não deveria estar ali fazendo o que fora ordenada fazer, então eu teria que decidir naquele instante que rumo tomaria minha visita ao Théâtre de l'Odéon naquela noite. E não pensava que seria para ver Regina por simples desejo. Não. A morena tomara um significado muito maior durante aqueles dias. Caso não desencadeasse tantas dúvidas dentro de mim eu estaria agora acionando a Gestapo e tomando frente à invasão daquele teatro certa de que pegaria todos os rebeldes necessários para deixar os soldados torturadores felizes. Regina era mais do que uma mulher por quem eu estava apaixonada, eu precisa estar próxima para aprender a sobreviver aqueles tempos sombrios sem esconder-me embaixo de uma patente.
Tamanha era minha ansiedade por estar logo dentro do teatro que levei um tempo recorde para vestir-me adequadamente e estar pronta para sair. O teatro não ficava muito longe e depois de tanto tempo reclusa um pouco de diversão não me faria mal.
A brisa do fim da tarde era contraditória diante das pessoas amedrontadas passando por mim. Mais soldados. Aviões passando sobre nossas cabeças deixando uma interrogação de um possível bombardeio. Tudo era terrivelmente frio e sombrio. Assim como eu estava. Mas caminhando por aquelas ruas depois de tanto sofrer com minhas angústias tinha algo diferente dentro de mim. O peso das responsabilidades já não era incômodo.
Quando cheguei ao teatro duvidei que teria alguma apresentação, não haviam muitas pessoas e as poucas que entravam lá eram alemães e poucos franceses dispostos a encarar uma volta perigosa para casa. Paguei por meu ingresso e entrei. Quase que ao mesmo tempo em que consegui um lugar satisfatório na plateia o espetáculo começou. Músicas e atores zanzando por todos os lados usando roupas de palhaços nas cores francesas. Usavam instrumentos musicais de brinquedo acompanhando os reais músicos que se escondiam no fosso à frente do palco. O texto deixou-me um pouco apreensiva - uma alusão à guerra. Sim, esses franceses são abusados. Logo reconheci Henry entre os artistas - usava calças largas azuis, tinha o rosto pintado de branco e usava um casaco vermelho longo recheado de medalhas exageradamente grandes. Usavam o cenário de uma disputa de terras entre fazendeiros para imitar nossos exércitos, o deles e o nosso. Tudo muito sutil, mas temi por alguém logo perceber e causar alguma ameaça, por isso olhei ao redor tentando reconhecer algum rosto entre os alemães que estavam ali. Aparentemente não via ninguém familiar.
- Que prazer tê-la aqui! - aquela voz rouca vinda da poltrona de trás fez meu corpo inteiro arrepiar - Sente-se aqui comigo, senhorita Swan. - eu não poderia negar aquele convite e, com certo embaraço, pedi licença ao casal que estava ao meu lado e passei para a fileira onde Regina estava.
- Então é aqui que vocês se escondem. - disse a ela baixo - Sabe que esta é a minha missão, não sabe?
- Claro! - a morena sorriu sem tirar os olhos do palco e eu não tirava os olhos dela - Você está aqui não para nos observar, mas para nos assistir! - lançou-me um olhar irônico - Então, por favor, aproveite o espetáculo. Teremos tempo para conversar ao final de tudo.
De alguma maneira senti segurança por estar li e permiti-me saborear a peça de teatro. Dois fazendeiros brigando por uma porção de terreno e com suas famílias inusitadas apimentando a rusga. Tínhamos o presidente francês Albert Lebrun e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill como compadres investindo suas carroças sobre Hitler e Heinrich Heimmler que eram dois irmãos agricultores que protegiam-se com cercas de arame farpado. Pensava mais cedo sobre a pantomima da guerra e eis que ela está diante de mim bem representada por palhaços.
Ao fim do espetáculo senti a mão de Regina apertando a minha sobre a poltrona e suas sobrancelhas arqueadas compunham aquele castanho olhar invasivo. Ela foi-se levantando.
- Venha. Os artistas desse grupo são fantásticos, vai gostar de conhecê-los.
Ela levava-me para o abismo da minha carreira definitivamente. A partir do momento em que eu cruzasse os limites daqueles camarins eu estaria conhecendo todas as pessoas por quem os alemães buscavam e eu saberia os rostos de todos eles. Nosso treinamento incluia essa habilidade de marcar as faces de nossos alvos - cada expressão e cada detalhe particular - tudo servia para reconhecermos o indivíduo mesmo que se passasse cinquenta anos. Mesmo assim a segui por aqueles corredores que não estavam cheios, mas via pessoas para lá e para cá guardando roupas, tirando perucas, desamarrando gravatas e conversando.
- Quem é a loira, Regina? - entramos num camarim onde um grupo conversava todos sentados em cadeiras, poltronas e caixas. Quem perguntava era uma mulher de cabelos pretos bem curtos, rosto arredondado e olhos vibrantes. Retirava o branco da maquiagem e olhava-nos pelo espelho.
- Quero que conheçam Emma Swan! - quando ouviram meu nome um silêncio medonho desceu sobre aquele lugar e eu fiquei muito assustada, mas Regina queria mais exposição - Ou melhor, a major da SS alemã Emma Swanchkopf.
Há quanto tempo eu não ouvia meu sobrenome anunciado de forma completa, mas em um situação não tão favorável para eu me orgulhar dele.
- Ela é filha do general Swan! - exclamou um rapaz alto com barba por fazer e olhos azuis - Regina, você ficou maluca?! - enquanto todos esperavam uma explicação de forma bem hostil, a morena calmamente ficou parada ao meu lado sem tirar o sorriso dos lábios.
- August, tenha calma. Emma está aqui porque sua missão secreta é nos vigiar... - todos foram se levantando e eu dei um passo para trás sentindo que minha vida começava a correr risco pelos olhares raivosos que lançavam sobre mim. A atriz de cabelos curtinhos saltou da penteadeira onde estava e apanhou um punhal.
- Regina, você tem ideia do que está fazendo?
- Sim, Blanchard e não banque a corajosa, guarde essa arma! - Regina parecia exercer uma certa autoridade entre aquele grupo, mas ainda assim eu não me sentia segura o suficiente e também não tentei emitir nenhuma palavra, apenas baixei os olhos e esperei as ações da morena. Henry entrou de uma vez pela porta atrás de nós e parou ao meu lado colocando a mão em meu ombro. Como sempre, o sorriso fácil nos lábios.
- Gostou da peça, major? - ele passou por mim indo retirar sua maquiagem.
- Caso alguns de vocês ainda não saibam, mas foi Emma quem tirou Henry da Gestapo na noite que foi preso. Devemos isso à ela.
- Tem certeza que foi por benevolência?
- Eu não tornaria a duvidar de mim, Gram! - ela atirou naquele rapaz no canto do camarim um ar soberbo e ele imediatamente se calou - Emma não fará nada contra nós. Precisamos dela assim como precisamos do nosso contato dentro da Gestapo. - olhou diretamente nos meus olhos e sorriu - Sua missão termina aqui, major.
Dito isso, a morena misturou-se entre o grupo, assim como Henry, mas alguns ainda observavam-me ali de pé sem coragem para mover um músculo. Quando percebi uma jovem com cabelos castanhos longos e mechas avermelhadas aproximou-se de mim e agarrou minha mão com vontade.
- É a rainha de espadas?
- Emma, cuidado com Ruby! - Regina alertou-me já servindo duas taças de champanhe - Ela é romena, cigana e tem um conhecimento vasto em tarôs! Vai dizer toda sua vida através das cartas! - gargalhou seguida.
- Por que eu sou a rainha de espadas? - minha curiosidade chegara no limite. Essa mulher sabia a alcunha que eu dera à mim mesma durante os preparativos para a missão. No meu castelo de cartas eu era a rainha de espadas.
A cigana puxou-me pela mão e caminhamos juntas por entre as pessoas até sentarmos no sofá maior ao fundo do camarim. Regina chegou em seguida e sentou-se do outro lado entregando-me o champanhe e brindamos.
- Morte aos nazistas! - August, o rapaz mais exaltado que olhou-me com desprezo, ergueu sua taça bem mais alto e gritou aquilo olhando para mim. Eu mantive minha taça erguida na altura da boca, mas fez-se o silêncio novamente e todos estavam olhando para mim, inclusive Regina.
- Você é convidada, senhorita Swan, faça o seu brinde! - ela piscou para mim e olhou novamente para as pessoas naquele camarim.
- Ao fim da guerra. - eu não pensei em outra coisa a não ser desejar que aquilo acabasse. Novamente voltei meus olhos para a cigana ao meu lado enquanto Regina falava com a atriz de cabelos curtos.
- Você tem uma sensibilidade muito aguçada, major Swan. É sempre clara e objetiva em sua rotina, não é? - ela me sorriu, mas eu não expressei nenhuma alteração - Você tenta não deixar-se levar por ilusões e é muito crítica, isso é bem a natureza dos alemães!... Não perde a calma facilmente a não ser que consigam chegar ao seu limite de tolerância. - Ruby ficou séria de repente e isso trouxe-me desconforto - É uma boa líder e seu trabalho é exemplar, mas não deveria estar aqui. Ultimamente anda bem confusa, não é?... Precisa tomar cuidado com seus desapegos, major. - Regina virou-se nesse momento para dar atenção ao que a cigana falava - Você não se prende e por isso torna-se fria na maioria de suas atitudes.
- Bem como um oficial nazista em serviço! - a morena ao meu lado completou aquilo ironicamente e tomou um gole de sua taça.
- E a rainha de copas? - perguntei de estalo e Regina gargalhou.
- Cortando algumas cabeças por aí!... Emma, vai mesmo dar atenção à Ruby?
A cigana romena tornou seus olhos tranquilos para mim como se o que Regina falava não tivesse nada a ver com ela. Suspirou e sorriu.
- Você bem sabe o que ela representa, Emma. - olhou Regina conversando com Henry e levantou-se indo até onde o outro rapaz que acusava-me com o olhar.
Eles falavam sobre a peça, sobre suas famílias e sobre o próximo espetáculo - olhares sutis sobre mim e sussurros - eles não me queiram ali. Senti-me desconfortável todo o tempo em que fiquei naquele lugar. Regina sabia e por causa disso não demorou a se levantar e despedir-se de todos.
- Precisamos ir. - olhou para mim e estendeu sua mão - Vamos, Swan! Hoje você vai para a minha casa.
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