A estação de trem estava lotada e Lorde Shaido se sentia observado. Partiria para Boandis com urgência desejando chegar a tempo para as despedidas e últimas homenagens ao seu avô. Era doloroso pensar que não o veria nunca mais.
Daria início nos processos para assumir o cargo de governador para o qual sempre fora preparado. Desejava que seu avô estivesse ao seu lado para lhe dar sábios conselhos. Era a hora de, finalmente, fazer algo útil e mostrar o quanto podia oferecer ao seu povo. Agora não era mais um garotinho cheio de dúvidas e sentimentos controversos, não se sentia mais um inútil e tinha plena ciência das suas capacidades. Quando pensava nos sentimentos que tinha quando adolescente sobre isso, via que as coisas realmente mudam com o tempo.
Lorde Shaido tinha grande influência no Coirlem, por isso, seus pedidos nunca eram negados. Por partir no mesmo dia, não recebeu a carta do seu avô, que só chegou em Imperah no dia seguinte. Quando ele chegasse em Boandis, três dias depois, nada saberia sobre o pedido de Lorde Levi em relação ao casamento com Lady Mclin.
A viagem de três dias pareceu a mais longa de sua vida. O trem tinha algumas paradas em cidades específicas, onde embarcavam e desembarcavam passageiros. A cabine de Lorde Shaido era privada, o que lhe dava maior conforto e privacidade, no entanto, tornava a viagem mais solitária e lhe dava tempo para pensar em muitas coisas desnecessárias.
Carregava alguns livros para leitura, mas seu humor não era para ler, pensar na perda do seu avô, no sofrimento da sua família, na maldição de Boandis, no futuro que lhe aguardava e as responsabilidades como governador... Estava sobrecarregado, triste e sozinho.
Pensou em muitas pessoas, pela primeira vez, reencontrou seus amigos de infância Codhe e Khei, era um péssimo momento para reencontros e ainda não havia conseguido perdoá-los por romper a amizade que para ele era tão importante. Nunca questionou o porquê, mas se sentia desprezado e isso o magoava cada vez que lembrava.
Pensou em seu avô e como estaria sua avó, Lady Levi. Com certeza muito abatida, já era idosa e ele temeu perdê-la também, caso ela não suportasse a falta do esposo. Pensou em sua mãe e como ela fora uma mulher forte ao seguir sozinha. Shaido tinha apenas três anos de idade quando seu pai faleceu, por isso, só o conhecia por retratos e por tudo quanto sua mãe e avós contavam. Seu pai foi um homem nobre e bom, viveu pouco, não teve a oportunidade de fazer muito, era o filho favorito do governador e quando Shaido nasceu, se tornou o neto favorito.
Pensou em Lady Mclin, como seria essa dama que todos falavam e cujos poderes mágicos eram tão diferentes ao ponto de lhe atribuírem o título de bruxa? Lorde Shaido sempre pensou que bruxas fossem más, porém, ao que todos diziam, Lady Mclin era a bondade em pessoa, ajudava a todos sem pedir nada em troca. Mesmo assim, recebia presentes em retribuição pela sua benevolência e parecia ter acumulado uma fortuna em pouco tempo.
Lorde Shaido queria saber além de toda essa bondade, principalmente, o motivo de não ter sido capaz de curar seu avô. Será mesmo que sendo uma bruxa era de todo boa? E pensando em bruxas, lembrou-se de Loren, como ela estaria? Não havia mais tido notícias dela, era compreensível, já que ela não fazia muita diferença na vida de ninguém.
Lembrava-se do quanto ela se empenhava em buscar a magia, mas, como nunca teve notícias de que ela algum dia tivesse tido sucesso, acabou não se preocupando mais com ela.
Pensou em Belle, e esse era o único pensamento que lhe acalmava e preenchia seu coração. Lembrar-se de Belle, envolta na magia azul, era como mergulhar em um mar calmo e tranquilo, um acalento de respostas e certezas, uma sensação de que tudo seria resolvido. Belle era o semblante da positividade, era bom pensar nela e lembrar-se da sua presença. Fechar os olhos e se concentrar unicamente nela, imaginando-a ao seu lado sorrindo, o abraçando e o confortando, o encorajava.
O azul de Belle combinava com o azul do mar de Boandis, ela lhe seria uma boa esposa e juntos poderiam governar sabiamente. Sentia que poderia alcançar seu coração, só precisava saber a forma correta de conquistá-la e fazê-la sorrir tão natural e gentil como ela sorriu naquela noite para Lorde Meyne.
Quando se deu conta de estar se lembrando do sorriso de Belle para Lorde Meyne, aquela sensação agradável se desfez. Era hora de focar seus pensamentos em qualquer outra coisa, porque era inadmissível gastar um segundo do seu tempo para se lembrar de alguém tão insuportável e arrogante quanto aquele Lorde Albino. Fatalmente, Lorde Shaido havia detestado aquele lorde de porcelana e poderia citar inúmeros motivos para a sua antipatia.
Ele descobriu durante a viagem que muitas pessoas em Imperah e de outras regiões já sabiam do falecimento de Lorde Levi. Ficou surpreso pela popularidade do seu avô até em reinos mais distantes. A cada parada que o trem fazia, mais pessoas embarcavam.
Naturalmente, muitos estavam indo a Boandis prestar auxílio e condolências, fosse para o povo temeroso sobre a maldição ou por respeito à família enlutada. Isso fazia sentido na mente de Shaido, por isso, seu coração estava um pouco mais confortado sabendo que havia muitas pessoas em Les Marcheé preocupadas com os últimos acontecimentos.
O que ele não esperava descobrir era que a maioria dessas pessoas eram seus seguidores anônimos, cheios de amor e devoção por ele. Empenhavam-se como podiam para apoiá-lo, mesmo quando ele sequer tinha noção sobre esse fato. Havia uma legião de homens que o tinham em grande estima, como exemplo de liderança, força e convicção. Mulheres o idolatravam por seu caráter, força e perfeição; eram nobres de alta estirpe até humildes de vilarejos.
Ele não tinha ideia do quanto ganhara fama em Imperah e por muitas outras regiões por onde seu nome era citado como exemplo. Ele tinha uma noção sobre sua influência e destaque na capital, mas não imaginava sobre o restante de Les Marcheé. Ao se deparar com esses fatos, viu a dimensão que seu poder havia alcançado e certo orgulho cresceu em seu coração, motivando-o a se tornar um excelente governador, para não decepcionar todos aqueles que lhe creditavam como o melhor dos melhores.
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Na cidade de Boandis, dava-se início às homenagens de despedida ao príncipe Lorde Thon Levi. Era tradição que as homenagens durassem vários dias quando se tratava de alguém importante.
Lorde Shaido era muito esperado, se não fosse o motivo de sua volta uma tragédia, o teriam recebido com festa e grande euforia. Contudo, no momento não era tal recepção apropriada, tendo em vista que ninguém ali estava feliz ou esperançoso; afinal, perderam seu grande líder após uma grande catástrofe sem explicação.
Por essas coisas que aconteceram em Boandis sem que ninguém pudesse impedir, nem mesmo a poderosa Lady Mclin, o povo silenciosamente se revoltou e imediatamente ela foi desacreditada. Porque o povo de Boandis, em sua simplicidade de pensamento, consideravam ela de poder igual dos nobres de Bellephorte, evidentemente, isso não era verdade.
Quando ela se mostrou incapaz de salvar Boandis da maldição e, a seguir, não foi capaz de curar Lorde Levi deixando-o morrer, o povo teve a certeza absoluta de que Lady Mclin não era tão boa e honesta como esperavam.
Ouviram-se murmúrios de injúrias, acusações de que ela seria a causadora daquela maldição, para subjugar o povo sob seu poder e que deixara Lorde Levi morrer propositalmente, para roubar-lhe o governo e ainda, que ela própria havia colocado nele o mal mortal.
Nada disso era verdade, Lady Mclin era tão inocente e triste quanto qualquer outro cidadão de Boandis. No entanto, os boatos logo se espalharam chegaram ao seu conhecimento. Ela carregava um fardo grande nos últimos dias, além da tristeza do momento, pensava que não suportaria ser acusada injustamente, na verdade jamais esperou por isso.
Desde quando recebeu o dom daquela magia estranha, ela decidiu usar somente para o bem, de forma justa e benéfica. Sempre ajudou de coração amplo e aberto, procurando fazer o certo, honrado e verdadeiro. Nunca cobrou nada em troca, mas aceitava com amor e gratidão tudo o que lhe era oferecido de bom grado.
Tinha cuidado até mesmo com suas palavras, para nunca ofender ou magoar alguém. Amava todos daquela cidade, cada ser vivo que ali vivia, pessoas, animais e plantas. Nem mesmo ousava chutar uma pedra, porque, talvez ela tivesse alguma emoção e fosse se magoar. Por isso, ao saber dos rumores a seu respeito, foi o pior choque que teve em sua vida. Não imaginava que, do dia para a noite, tudo o que havia feito de bom fosse ignorado.
Surpreendeu-se em ver como o coração das pessoas são facilmente tomados por qualquer tipo de comoção sem nem ao menos verificar se é verdade ou não. Naquele momento, Lady Mclin entendeu muito do que Lorde Shaido lhe dizia na infância, sobre a magia ser apenas para os nobres, não nobres de posses e riquezas, porque Boandis era rica e próspera tendo muitos nobres desse tipo; mas nobres de coração e sabedoria.
Realmente, não era possível, nem justo ou benéfico, que pessoas sem senso ou juízo algum dominassem a magia, era muito perigoso. Ela finalmente entendeu porque a magia era escassa em Boandis, levando em consideração o pensamento coletivo do povo.
Lady Mclin sentiu pena deles e pensou que talvez eles não merecessem seu auxílio, já que tudo o que fez de bom durante os últimos anos não havia representado muito. Quem sabe fosse melhor nunca ter feito nada de bom e usado seus poderes para benefício próprio, como faziam as bruxas do passado.
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