Já era tarde quando Codhe retornou ao palácio de Isle após assistir uma palestra de pirotecnia. Aguardava os resultados dos exames finais para a sua formatura.
Entrou no seu apartamento e assim que fechou a porta atrás de si, sentiu uma presença estranha, como se alguém estivesse ali. Alguém muito poderoso, cuja aura emanava um calor como o fogo. Se tivesse um invasor em seu quarto, deveria se defender; invocou seu fogo mágico e através das fagulhas procurou o invasor.
Caminhou a passos lentos, olhando atentamente para todos os lados. A presença estava mais forte na medida que se aproximava do seu quarto. Começou a ficar irritado e seu sangue fluiu rapidamente. Apressou os passos e adentrou o quarto abrindo a porta com magia e violência, fazendo grande estrondo e derrubando alguns quadros da parede.
Ficou terrivelmente irritado ao se deparar com o livro aberto no chão ao lado da cama. Do livro, emanava grande poder, e Codhe quase podia ver o dragão saindo daquelas páginas e tomando forma física, engolindo com chamas tudo ao seu redor.
Uma cena catastrófica. Não sabia o porquê daquilo estar acontecendo, mas sentiu que algo lhe chamava e isso o enfureceu porque não conseguia saber que tipo de chamado era aquele.
— Você quer sair, não é mesmo, maldito! — Codhe falava com o livro, que agora lançava labaredas para todos os lados. — Você quer que eu o liberte? É para isso que você me chama? Quem é você?
Codhe se aproximou criando com seus poderes um escuro mágico para se proteger do fogo, que parecia ficar mais raivoso à medida que era questionado.
Tinha vida própria, era visível e estava furioso, mas Codhe não tinha mais medo ou receio, estava exaurido com tanto mistério. Se era liberdade que aquele dragão queria, ele daria, mas não seria de graça, queria respostas.
— Quem é você... QUEM É VOCÊ? — Deixou-se levar pela raiva e atacou o livro com magia e violência.
Foi um ato impensado que resultou em grandes estragos no seu quarto. O livro revidou e as chamas ultrapassaram as paredes se expandindo para a sala. Codhe se assustou, porque se deu conta das proporções de seu poder, estava colocando em risco o palácio inteiro, pois uma magia daquele nível faria o fogo consumir tudo rapidamente.
Imediatamente, tratou de acalmar as chamas com domínio e precisão, coragem e poder. Chamou o fogo de volta para si e aprisionou-o, silenciando aquele grande escarcéu em poucos segundos, inclusive as chamas que provinham daquele livro. Quando percebeu o que havia acabado de fazer, se surpreendeu. Era nesses momentos que se dava conta da verdade nos elogios que recebia de seus Mestres.
Olhou para o livro chamuscado jogado no chão. Caminhou até ele ainda com ira e surpresa em seus pensamentos, olhou as páginas no chão, as que continham o poema haviam se soltado e a xilogravura do dragão estava somente pela metade. Juntou as páginas e sentiu certo remorso por estragar tão bela gravura. Como um pedido de desculpas, Codhe leu em voz alta o que ainda era legível do poema:
“E doógucen bi ennerje, obe doógucen bi ennerje, gadi sea ni ribmle ce esjuve phalbe?” (A dúvida me assalta, uma dúvida me assalta. Você não se lembra da antiga forma?)
“E doógucen bi ennerje, obe doógucen bi ennerje, sea inphila buniludaálcue.” (A dúvida me assalta, uma dúvida me assalta. Não espero misericórdia.)
“Jio dasnara í koi nao Ventura."( Teu consolo é que sou Ventura.)
Leu pausadamente aquela língua tão estranha, mas, estranhamente, entendeu o que estava lendo. Ao terminar pronunciou em voz alta aquele nome magnificamente poderoso:
— Ventura...
Seu olhar ficou perdido por alguns instantes até se achar com a visão daquele nome escrito no livro: "Ventura".
Não era um nome estranho, pelo contrário, era o nome que em sua casa mais se ouvia falar, Ventura, a Musa que não escondia o destino e revelava a verdade para ser feita a justiça. Abismado, se perguntou como não havia notado aquele nome antes, ou talvez ele não estivesse ali anteriormente?
Continuou com sua leitura em voz alta:
"Das dúvidas, cante a Ventura. Quando cair deverá chorar, quando se perder na ilusão, deverá saber que nada se eterniza.
Quando estiver cego pelo medo e ódio, não morrerá.
Eu estarei aqui, sou justiça, musa e beldade.
Quando estiver perdido nessa nuvem escura, será inverno novamente e isso será a diferença entre você e os outros.
Nessa nuvem fria você não se perderá. Eu vou estar perto.
Olhe para mim, sou como o fogo e falo a verdade...
Olhe para minha justiça."
Codhe fechou os olhos meditando naquelas palavras. Sentiu que algo dentro de si havia mudado ao ler e pronunciar aquelas palavras em alto e claro tom, era como o rito final de um encantamento lhe dando novo poder. Era uma promessa, um destino. Era Ventura, a Musa que lhe dava uma nova magia, uma nova verdade, um novo desafio, ela o estava chamando e dando-lhe algo precioso: Um propósito.
Ele sabia que não era de graça, ela falava de lembranças, de tempos antigos, de justiça, de outras formas e sobre não ter misericórdia. Era isso que Codhe precisava entender para dominar por completo o poder que acabara de receber.
"E doógucen bi ennerje." (A dúvida me assalta.)
De que dúvida Ventura lhe falava? Tinha dúvidas de que ele seria capaz de realizar os objetivos propostos por ela?
"Gadi sea ni ribmle ce esjuve phalbe? " (Você não se lembra da antiga forma?)
De qual forma ela se referia? Codhe olhou para as páginas soltas em sua mão, aquelas com a figura que agora estava deformada pelo fogo. Sim, ele agora sabia da antiga forma, da ruína de Les Marcheé, do inimigo que foi derrotado pelas Musas e selado para sempre. O dragão de fogo, aquela forma bestial de chamas escarlate. Isso não era uma memória, era uma lembrança vinda diretamente de Ventura.
"E doógucen bi ennerje, obe doógucen bi ennerje. Sea inphila buniludaálcue". (A dúvida me assalta, uma dúvida me assalta. Não espero misericórdia.)
Claro que não esperaria misericórdia com o mal, as Musas eram as dádivas para o povo, Ventura era a justiça de Proustita. Codhe entendeu seu destino e a incumbência que lhe fora dada, e que não deveria ter misericórdia com o mal, era isso o que Ventura queria.
"Jio dasnara í koi nao Ventura." (Teu consolo é que sou Ventura.)
Codhe entendeu e aceitou, foi lhe dado aquele tempo, o selo estava novamente nas mãos de um Protheroi. Porém, agora com a graça das musas, esperando que ele o dominasse e subjugasse sem misericórdia e com justiça. Ventura estava ao seu lado e para o bem deveria fazê-lo imediatamente enquanto ainda podia olhar para a Musa.
Ventura...
Ela estava ali, não em forma física visível, mas era parte da vida, da mente e do coração, era como as chamas, calor ardente, era um novo poder que dava razão e separava luz de trevas. Codhe podia senti-la, como em um abraço terno e revigorante. Ventura era parte daquele selo.
E aquele selo foi quebrado, aquela porta foi aberta, aquele destino foi talhado e aquele quarto ficou pequeno para tamanho poder que se fez presente. O Palácio de Isle era pequeno, assim como Imperah inteira parecia se tornar mínima diante do poder de Ventura, que se expandiu por todo o reino, mostrando que havia entrado.
Pannastovik sentiu, não apenas emitiu seu aviso como também, inesperadamente, cumprimentou com uma onda poderosa àquele novo Tione. Os Imperadores sentiram, Lorde Thwar procurou em sua mente onde se encontrava a personificação selada do poder e percebeu uma presença ínfima que prosperava junto aquele abertura, se tornando presente e dominante, ganhando forma e personalidade.
Foi por esse poder que Lorde Thwar se tranquilizou e apenas observou o desenvolver daquele episódio. Ele reconheceu aquele poder mais antigo que os céus, era a Justiça de Proustita: Ventura, a Musa esplêndida.
Codhe soube que não poderia voltar atrás, sua escolha havia sido destinada e concretizada. Porém, o preço seria alto e sentiu na pele aquele poder que lhe doía mais que qualquer ferimento, era como fogo lhe dilacerando as entranhas tomando conta de todo o seu ser. Não havia misericórdia, como Ventura havia dito, um teste de força e dominação.
Ele achou que não suportaria, gritou em desespero, dor e angústia. Era por demais pesado e doloroso para si, sabia que enlouqueceria e morreria, mas não teria arrependimentos. Sentiu medo pelo que estava agora livre sobre a terra. Aceitou seu destino, confiou em Ventura e, mesmo sob a mais inimaginável agonia, ainda assim não blasfemou contra a Musa que lhe convocou.
Os Lordes Lynzeths se moveram, mas foram parados e repreendidos, uma ordem suprema os fez pararem e se acalmarem, a Imperatriz Beriune os proibiu de interferir, pois afinal ela sabia que naquele livro estava um selo Tione e era imprescindível que Codhe alcançasse o domínio por si mesmo.
Desde o princípio era a intenção da imperatriz que Codhe possuísse um Tione. Lady Beriune precisava que aquele poder viesse novamente ao mundo, para se unir com os outros Tiones já existentes.
A Tríade se moveu, em espanto e indignação, também foram detidos pela Imperatriz que parecia aguardar ansiosa pelo final. Ao ver que estava próximo e que, provavelmente Codhe não era suficientemente forte para suportar tanto poder, que talvez tenha se precipitado em seu plano, ela deu o sinal para a Tríade avançar e conter. Tarefa ampla e árdua, uma vez que demorou tempo demais.
E no momento derradeiro, Codhe alcançou o controle e viu ganhar forma um ser disforme. Era magia em chamas luminosas, mas ao invés de destruir, davam vida e conforto. Esta foi a última visão que Codhe teve antes de sucumbir à dor, sendo amparado pela forma disforme que o envolveu em labaredas escarlates, protegendo-o da gloriosa imensidão fria e congelante que se fez a seguir.
Codhe se perdeu naquela nuvem fria que lhe pareceu tão escura. Porém, havia essas palavras na profecia:
"Koesca injugil philcuca sinne sogib indole, nileé usgilsa sagebisji i unna nileé e cuphilisñe ci ju i as aojlan. Sinne sogib phue gadi sea ni philcileé, io gao injel phal philja. Arhi phele bub..." ( Quando estiver perdido nessa nuvem escura, será inverno novamente e isso será a diferença entre você e os outros. Nessa nuvem fria você não se perderá, eu vou estar perto. Olhe para mim...)
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