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História Liberté - O Ajuste


Escrita por: caulaty

Capítulo 11 - O Ajuste


25 de maio de 3660

 

E aqui estamos nós. Lembram de mim? Depois desse mergulho perturbador nas lembranças de Kyle, talvez seja um pouco mais simples traçar um paralelo do que houve com esses jovens, já não mais tão jovens. A história que estou lhes mostrando pode ser dividida em dois eventos primordiais: o aniversário do Presidente e o ataque da bomba. Kyle tem pensado muito nessas duas ocasiões; e não é pra menos, sua vida não seria a mesma se qualquer um desses eventos não tivessem acontecido. E Christophe DeLorne, o Toupeira, foi o que acendeu o pavio para que eclodissem essas duas situações da maneira que aconteceram. Ele não foi o culpado, isso eu posso garantir (ao contrário do que ele pensa em suas piores e mais embriagadas noites), mas certamente foi o gás, a chama, o empurrão que faltava. Kyle se alimentava da força dele naquela época, vocês podem perceber. Eu podia ouvir isso na voz dele quando me contava sobre Christophe, o que não era comum porque acredito que ele se sentisse muito exposto toda vez que o nome do Toupeira surgia.

Enfim, meu papel aqui não é falar sobre o passado.

Estamos na biblioteca da casa de Gregory no momento, foquemos no que importa de verdade. Ele convidou Kyle para ajudá-lo a encaixotar livros que doaria, com o argumento de que ele poderia escolher o que quisesse primeiro. Posso dizer que foi uma desculpa para tirá-lo do corre cotidiano e pegá-lo sozinho em uma situação mais íntima. A relação dos dois é estranha, mas fantástica. Gregory e Kyle sempre foram amigos e também sempre foram muito semelhantes de alguma forma, organizados e terrivelmente inteligentes para o seu próprio bem, passionais e racionais ao mesmo tempo. No entanto, ambos também têm um ego que gerou estranhamento a vida toda, mesmo na época em que moraram juntos. Nunca foram os amigos mais íntimos. Mas passaram algo juntos, algo inimaginável que os uniu como dois irmãos. Chegaremos a isso em outro momento.

Gregory fez café para os dois. Kyle está sentado em uma escadinha na biblioteca gigante, com três livros no colo e folheando um quarto em suas mãos.

-Esse daqui também vai? - Pergunta ao dono da casa, mostrando-lhe a capa de “Little Dorrit”, de Charles Dickens.

Gregory o observa por cima dos pequenos óculos redondos de haste dourada, com um cordão em torno do pescoço. Está de pé ao lado da mesa cheia de livros, o nariz avermelhado pela rinite, com um exemplar de “Tom Sawyer” aberto em uma mão. Aperta os olhos para enxergar a capa e então nega com a cabeça.

-Você quer?

-Não, eu já tenho.

Kyle volta a guardar “Little Dorrit” na estante e acolhe os três livros do seu colo embaixo do braço para descer a escada com o apoio de uma mão só. Há uma caixa aberta logo ao lado no chão, onde ele acomoda os livros que serão doados. Gregory toma a xícara cheia de café pelo píres e encontra Kyle no meio do caminho para entregar-lhe.

-Muito obrigado por ter vindo, Kyle. Você foi uma mão na roda pra mim. Você sempre é, aliás.

E é verdade. Eles trabalham juntos e não é incomum que Kyle salve a pele de Gregory na Câmara. Gregory está numa posição de autoridade máxima em South Park, politicamente falando, mas todo mundo sabe que Kyle é seu braço direito e é para ele que sobram os abacaxis piores de descascar, pelo seu perfeccionismo e a sua eficiência. Ele é a única pessoa em quem Gregory confia plena e absolutamente para qualquer tarefa. Gregory é o tipo de pessoa que acredita que, se quer algo bem feito, é ele quem deve fazer.

-Não tem problema. Você me deu a manhã livre mesmo. - Kyle responde com um sorrisinho de provocação, sentando-se à mesa cheia de livros pra beberricar do café.

Gregory apóia uma mão na superfície de madeira e a outra no quadril, um sorriso curto aos poucos se desfazendo na boca, desaparecendo com as covinhas no rosto dele. Usa suspensórios ridículos que fazem com que ele pareça uma criança. Passa algum tempo assim, parado, uma perna cruzada na frente da outra, observando Kyle tomar o café.

-O que foi? - Kyle pergunta quando se dá conta, franzindo as sobrancelhas em desconfiança.

Ele abre os lábios pra responder, depois fecha, depois abre novamente. Por fim, pergunta:

-Como é que ele está?

-Quem?

-O Toupeira, ué. Não se faça de besta, não combina com você.

-Não me fiz. Só não entendo essa pergunta vinda de você. Ele certamente conversa muito mais com você do que com qualquer pessoa.

-Christophe? - Ele pergunta rindo, puxando uma cadeira do outro lado da mesa depois de dar a volta. Senta-se e coloca os dois pés apoiados sobre alguns livros, mostrando os sapatos bem engrachados e a perna mecânica. - Por favor. Não sei das coisas porque ele me conta, sei porque sei. Só preciso olhar para ele e eu sei como ele está. Mas ele anda tão desaparecido, não vai mais à Câmara.

-É, acho que ele não quer encontrar com o Stan depois do que aconteceu. O que eu entendo, mesmo. Até prefiro.

Gregory franze o nariz em uma careta, como se sentisse dor. Seus olhos azuis reluzem na luz do sol que invade a janela estreita à frente dele, na parede oposta. Ele une as mãos sobre a barriga e solta um gemido pensativo.

-Você quer açúcar? - Pergunta a Kyle, que nega com a cabeça. - Bom. Eu não duvido nada que isso ainda seja uma ferida aberta pra ele. E para Stan também, pobre coitado, não sai mais do escritório desde aquele esbarro esquisito. Christophe não me contou muito sobre, mas eu vejo como o Stan anda inquieto. E evitando te ver.

-Ele sempre evitou me ver. Não sempre, mas... Você sabe. - Kyle larga o café, sentindo o estômago revirar de repente. - Porra, Gregory, já faz o quê, catorze anos? O que você quer dizer com “ferida aberta”?

-Ah, querido. Se alguma ferida ali estava fechada, você arregaçou todos os pontos assim que o Toupeira colocou os olhos em você de novo. É por isso que eu me preocupo com ele.

Kyle revira os olhos, endireitando as costas na cadeira sem esconder o desconforto.

-Como você é exagerado.

-Ah, sou? - Gregory tira os pés dos livros e também se senta direito, mais para a beirada, repousando as mãos sobre a mesa. Ajeita o colete vermelho e apoia um cotovelo sobre um livro bem à sua frente, pois quase não se vê a madeira escura do tampo. - E você vai me dizer que não sabia como ele era louco por você naquela época?

-Não foi bem assim.

O pássaro preto e gordo em uma gaiola dourada que Gregory cria na biblioteca começa a eriçar as penas, sacudindo-se no calor do sol, preenchendo o salão com um piar baixinho. Gregory passeia com a língua pela parte interna da bochecha enquanto estuda Kyle com desconfiança, acariciando a capa de couro do livro à sua frente. Mas enxerga convicção naqueles olhos verdes. Suspira de sua forma dramática.

-Ele era tão apaixonado por você, Kyle.

-Pare de falar nessas coisas. - Ele responde rapidamente e se levanta, esquecendo-se do café, voltando para a escadinha. - Esse assunto está morto e enterrado.

-Não estou sugerindo que o desenterre, só estou preocupado com ele. Com todo respeito, não consigo entender o que ele está fazendo na sua casa. Eu já o convidei para vir ficar comigo, mas ele não quer. E quando o seu nome surge, acontece alguma coisa com os olhos dele... Ele tenta esconder, mas eu vejo.

-O quê, Gregory? - Ele pergunta com impaciência. - O que você vê?

Mas o loiro se recolhe. Umedece os lábios, prende a respiração por um tempo e se levanta também, massageando a parte de carne da coxa que teve a perna amputada muitos anos atrás. Às vezes ela dói um pouco, como se os nervos repuxassem.

-Você quer esse “Apanhador no campo de centeio”? - Pergunta, erguendo o livro na mão. - Nunca gostei muito do Salinger. Se você não quiser, bote na caixa de doação.

E assim, para o alívio de Kyle, o assunto morreu.

 

* * *

 

Christophe está sentado na varanda e é noite. Alguns vagalumes verdes como a lua perambulam pelo quintal. A vista da casa de Kyle na montanha é de foder, a das mais bonitas da cidade. A cidade parece tão pequena, um tapete de luz intocável lá embaixo. Ele fuma um paeiro, como lhe é de costume, e inclina-se de tempo em tempo para cuspir em uma lata ali ao lado porque o gosto é tremendamente forte até mesmo para sua boca experiente.

Kyle surge de dentro da casa e ele está tão bonito essa noite. Não há nada de especial; o cabelo laranja um pouco bagunçado, um suéter de lã bege e marrom com uma gola larga que expõe suas clavículas, um casaco preto macio por cima porque o frio é bravo. O que parece mais bonito nele hoje é como a pele reluz tão macia, não há olheiras cansadas delatando a falta de sono e ele parece saudável. Se me perguntar, ele tem dormido melhor com Christophe em casa. Tem dormido melhor por saber que o Toupeira está são e salvo. Kyle teve pesadelos medonhos nos últimos quatro anos a esse respeito.

Eu posso ver nos olhos do Toupeira que ele também enxerga essa beleza confortável em Kyle, não particularmente arrumada, mas real. Ele não chega a sorrir, mas há nos seus olhos o brilho de alguém que gosta do que vê.

Kyle traz dois copos com rum e gelo. Entrega um deles a Christophe e senta ao seu lado, de frente para a cidade adormecida.

-Merci. - O Toupeira agradece, ajeitando-se na cadeira para dar um gole demorado. Chega a gemer com o líquido ardente que desce pela garganta. Ao terminar o gole necessário, suspira fundo. - Porra, que delícia.

-Achou que eu fosse te servir coisa ruim?

-Achei.

Kyle ri pela honestidade simplista dele, porque sabe que Christophe não está brincando. Um silêncio confortável se estabelece entre eles. Esses dois nunca precisaram de palavras para preencher o vazio. Kyle pigarreia e umedece os lábios, beberricando do rum. Já é seu segundo copo da noite.

-Você está bem quieto hoje. - Comenta, tocando o braço exposto de Christophe, pois ele tem as mangas arregaçadas até os cotovelos. - Pensando em alguma coisa?

Ele hesita um pouco para responder, tragando o cigarro sem pressa.

-No Tweek, na verdade.

-Tweek? - Kyle franze a testa. - Que curioso. - Faz uma pausa demorada, incerto de se esse é um assunto que vale a pena escavar ou não. - O que tem ele?

-Nada. Só estava me lembrando dele. Do seu jeito de olhar. - Christophe puxa bem fundo a fumaça e então respira calmamente. - Fiz mal julgamento dele.

-Mas também o transformou em um herói.

Christophe ri um tanto amargamente, coçando atrás da cabeça de forma preguiçosa. Parece levemente chapado e Kyle cogita por um momento que haja mais do que tabaco dentro do seu cigarro. Provavelmente a ponta de alguma erva relaxante. Kyle tem notado que ele utiliza de substâncias anestésicas muito mais do que na outra época; sempre bebeu muito, mas também era um homem preocupado em estar alerta e com todos os sentidos funcionando a cada instante. Agora, ele parecia tentar fugir de alguma coisa. Kyle também notou que ele praticamente não dorme. Toda vez que acorda no meio da noite, o encontra acordado fumando, lendo ou qualquer coisa que o valha.

-Eu não o transformei em nada. Tweek cresceu sozinho. Começou a encarar as coisas pelo que eram.

-Você nunca aceita mérito de nada, mas sempre acha que a culpa é sua.

Christophe o espia pelo canto do olho, irritado. Segura o cigarro bem perto do rosto.

-Não me culpo pelo que aconteceu com ele. Não sou tão egocêntrico. - Ele pausa para dar um gole monstruoso no rum que segura sobre a perna cruzada. Encara as luzes da cidade de forma vaga e distante, mas finalmente diz. - Eu gostaria de poder ter feito alguma coisa, é lógico. Não só pelo Tweek.

-Mas como poderia? - Kyle pergunta, ajeitando os óculos de leitura que se esqueceu de tirar. Ele finalmente se vira de lado na cadeira para encara-lo de frente, mas Christophe não desvia o olhar da cidade. Kyle faz uma pausa longa, os olhos se enchendo de dor. Esfrega o rosto por baixo do óculos e bebe mais. - Meu Deus, que dia foi aquele.

Ele está falando sobre o aniversário do presidente, a primeira grande intervenção de resistência em South Park. A lembrança já o deixa todo arrepiado. Com um suspiro, Kyle continua:

-Eu pensei que você fosse morrer, Toupeira. De verdade.

Ele bate as cinzas na mesma lata em que cospe. Encara o fundo da lata em silêncio por um longo tempo.

-Eu também. - Responde casualmente, soprando a fumaça para o alto.

Novamente recai o silêncio, mas agora é com alguma tensão. Um não está mais na companhia do outro, porque Kyle está profundamente mergulhado em uma lembrança. Posso ver tudo. Dentro da sua mente, há um rastro longo de sangue vivo em um chão imundo, o corpo de Christophe no fim desse caminho, sob uma poça do líquido viscoso que escorre das feridas de bala. Os sons são atordoantes. Atormentaram o sono de Kyle várias vezes, aqueles gritos nas ruas e as metralhadoras dos sapadores, gente correndo do lado de fora, caos, tormenta. E Kyle igualmente besuntado no sangue do Toupeira, também cheio de arranhões e cortes, a própria testa sangrando, a cara suja de lágrimas e terra, mas ele não tinha tempo para chorar ou se limpar porque tudo o que pensava era em estancar aquele sangue maldito que não parava de escorrer. "Não ouse fechar os olhos, seu filho de um cão, eu te caço até no inferno se você me abandonar", Kyle lembra-se de ter gritado, mas Christophe já não ouvia coisa nenhuma.

Essa história é muito boa. Vou deixar que Kyle a conte pra vocês. Mas isso não é nosso foco agora.

-Sabe que... - Kyle murmura com uma voz fraca. - Eu já passei por momentos bem desgraçados, você sabe. Mas aquele foi o momento da minha vida em que eu mais senti medo. - Ele faz uma pausa longa como se esperasse por uma resposta de Christophe, que só cospe na lata e apaga o cigarro dentro dela, logo voltando o olhar para Kyle em silêncio. Kyle, então, continua. - Foi diferente. Sabe? Eu tinha tantos arrependimentos... E eu via você como essa força indetível da natureza que podia passar por cima de tudo. Foi como se só naquele momento eu descobrisse que você também era feito de carne como qualquer um. - Mais uma pausa, dessa vez para um gole do rum que está quase no fim. Ele já se sente um pouco bêbado. - Eu te amava tanto, Christophe. Te ver fragilizado daquele jeito... Só me fez te querer mais. Eu também tinha pavor disso. E de tudo o que nós não viveríamos se você morresse. Era como se... Como se eu fosse ficar sozinho pra sempre se você desaparecesse.

O Toupeira se recosta na cadeira e deixa que a pele absorva aquelas palavras como se fossem uma dose forte de álcool. O silêncio começa a deixar Kyle nervoso, mas antes que ele possa reagir, Christophe ajeita a perna cruzada e respira fundo.

-Você me manteve vivo.

Isso quase soa como uma acusação. Não fala agressivamente, nem com raiva, mas ainda soa como se fosse algo que Kyle não devesse ter feito. E eu posso ver que Kyle não entende exatamente o que ele quer dizer com isso. Christophe remexe o gelo no copo de rum e o finaliza, largando-o sobre a mesinha de madeira que existe entre as cadeiras deles.

-Mais de uma vez. - O Toupeira complementa.

Kyle tira o óculos, sentindo-se um pouco tonto. Pressiona as palmas das mãos sobre os olhos e respira fundo, trêmulo, ainda completamente imerso naquelas memórias.

-E tudo o que aconteceu depois... - Kyle murmura, massageando as têmporas. - Porra, eu fiz tudo errado.

Existe uma mágoa... Ou melhor, existiu uma mágoa muito grande entre eles depois do aniversário do presidente. Mas Christophe nunca foi exatamente verbal; nunca falou sobre o que sentia. Kyle não sabe até que ponto essas feridas continuam abertas. Christophe franze as sobrancelhas por um momento e finalmente o observa com cuidado.

-Você ainda pensa nisso? - Ele pergunta.

"Nisso". "Em nós", é o que ele quis dizer. Joga no ar dubiamente de propósito, algo que ele não faz com frequência. É um homem bastante binário. Mas o faz, talvez por gentileza, para que Kyle entenda como quiser e seja evazivo se assim desejar. De onde eu enxergo as coisas, sem o peso da carne, vejo tão facilmente o quanto Christophe tenta protegê-lo e não sabe como expressar.

-É claro que penso. - Kyle diz sem hesitar. - Você não?

Isso o pega de surpresa. Christophe chega a desviar o rosto, soltando o ar dos pulmões como um cachorro bufando. Ele faz menção de se levantar, mas fica no lugar. Parece um pouco encurralado.

-Eu estou aqui, não estou? Não era você que queria que eu saísse daqui pra não alimentar essas merdas?

-Eu queria, mas você não saiu. - Kyle responde, no início de forma séria, mas começa a sorrir ao final da frase por ouvir o absurdo que dizia.

Christophe leva dois segundos para começar a rir. É um riso fraco, sacudindo a cabeça, inconformado mas satisfeito. Pouco depois o riso virou uma gargalhada. Kyle bate no braço dele, sem conseguir parar de sorrir.

Mas que bonitinho.

-É sério! - Kyle grita, com a cabeça jogada para trás. - É difícil não lembrar de tudo isso com você aqui. É impossível. - Ele fica um tempinho quieto, pensativo. - Você foi embora, eu fiquei com essa merda toda guardada.

Christophe passa daquele riso de escárnio para uma expressão levemente irritada. Tira o isqueiro do bolso e começa a acendê-lo algumas vezes na brincadeira.

-E o que você queria que eu fizesse, Kyle? - Diz de repente, de forma acusatória. - Eu não fugi. Você não foi pra Europa comigo porque você não quis.

Ele se levanta da cadeira ao terminar de falar, dá alguns passos na varanda e coça nuca com a mão livre.

-Isso não é verdade.

-É. É sim.

-Eu não podia! Você sabe muito bem que eu não podia! - Kyle se levanta e se aproxima um pouco dele em defensiva, gesticulando. Christophe se vira para ele com as mãos no quadril e o queixo erguido, em uma posição de enfrentamento.

-Sei sim. Sei e nunca te cobrei isso. - Ele aponta o dedo no rosto de Kyle, apertando o isqueiro na mão, o sotaque francês mais forte conforme ele se exalta. - Mas aí que merda você queria de mim?! Foi você quem me rejeitou durante anos. Você. Eu não tinha que ficar igual a um cachorrinho no seu pé que nem o...

Ele para de falar, o que é muito bom, se você quer saber. Porque Kyle está prontinho pra virar a mão na cara dele caso ele resolva prosseguir.

-O Stan pelo menos nunca teve medo de dizer que me amava.

Christophe umedece os lábios e dá um passo pra trás. Eles estão bem próximos, os dois, e isso se torna sufocante.

-Bom, eu também disse. - O Toupeira encolhe os ombros. - Não foi no seu tempo, nem do seu jeito, mas eu disse. E não mudou porra nenhuma.

-Você acha que eu não queria ter ido contigo?! Mas eu... Porra, Christophe. Eu nunca iria me perdoar.

-Então por que caralhos nós estamos discutindo isso? Não tem mais o que fazer. Você não podia ir, eu não podia ficar. Já era. Se já houve alguma chance, nós perdemos.

Há um momento silencioso entre os dois. Os vagalumes continuam dançando, o vento sopra fraco e mexe com o cabelo do Toupeira. Kyle está protegido pelo corpo dele e o vento quase não o toca. Seus olhos parecem tão tristes. É tudo no mundo que ele não queria escutar da boca de Christophe, por mais que tenha proferido palavras muito parecidas para Gregory mais cedo. Respira pesado e confuso, a tontura piorando; cobre os olhos e tenta esconder a expressão dolorosa.

-Era por isso que eu tive medo de você ficar aqui. Porque eu sabia que isso acabaria acontecendo.

Christophe guarda o isqueiro novamente e passa por Kyle para entrar em casa, mas para na porta com a mão no batente, pressionando a língua por dentro da boca, pensativo. Kyle se vira na direção dele, a coluna um tanto torta, ombros caídos e cabeça levemente deitada para trás, olhos repletos de tristeza. Christophe o encara de volta. Dá dois passos indecisos, o que deixa Kyle atento, preparado para um novo confronto.

Mas Christophe trota na direção dele, a curta distância entre Kyle e a porta, passa um dos seus braços fortes em torno da cintura para puxa-lo contra si e aproxima seu rosto tão rapidamente que Kyle não consegue entender, apenas sente os pés quase se erguendo do chão. Sente também o calor, o hálito de rum e fumo mistos ao cheiro natural daquele corpo, daquele cabelo. Os olhos de Christophe assim tão próximos quase o fuzilam, brilhantes como os de um lobo.

-É isso aqui que você sabia que aconteceria. - Ele murmura entre os dentes, pegando Kyle com força e apertando-o, uma mão nas costas dele e a outra enterrada nos cabelos, respirando pesado. Os dois com os lábios tão próximos, os corpos quentes de álcool e tesão e raiva naquele ar gelado. - É disso aqui que você tem medo.

E então faz menção de soltá-lo porque só queria provar algo. Só queria lembrá-lo da adrenalina, do fogo que é o toque entre os dois, de como isso continua vivo. Mas as mãos de Christophe nem chegam a deixar o corpo de Kyle. Num instante ele alivia o toque, no outro, toma-o de novo e com força, usando a mão na cabeça dele para manter o seu rosto bem perto.

-Ah, puta merda, Kyle. - Ele diz descontrolado e esbaforido sob a respiração, num tom de quem não suporta mais, de quem tomou uma decisão.

E imediatamente o beija.

Bem como deveria ter feito anos atrás. Mas ninguém pediu minha opinião.



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