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História Liberté - A Queda


Escrita por: caulaty

Capítulo 16 - A Queda


11 de novembro de 3644

 

A mulher se chamava Bebe. Bebe Stevens, ela fez questão de nos informar. Aparentemente, não era um apelido, era o nome que lhe foi designado em seu nascimento. Um nome fantasioso que combinava com a sua figura. Suas roupas eram sujas, mas ainda carregavam algum tipo de exuberância de um cabaré de quinta categoria. A parte de cima, rasgada, imitava um veludo falso. O corselet era de couro, a saia também estava rasgada parecia ser estampado de xadrez verde escuro. Não havia luz o suficiente para identificar as cores. Ela usava blush demais nas bochechas, o batom era vermelho escuro completamente borrado. Em seus olhos, havia cílios desenhados sob as pálpebras inferiores, mas as lágrimas faziam com que negro escorresse pelas bochechas. A essa altura, ela não chorava mais.

Quando Tweek finalmente se acalmou, consegui convencê-lo a ficar lá dentro sozinho. Mesmo que tremendo em posição fetal, ele obedeceu. Não queria que ele visse os cadáveres - para ser honesto, eu mesmo não queria ver os cadáveres. Nada poderia ter me preparado para o que eu vi; Roy estava com o crânio completamente destruído, uma oceano de sangue sob ele. Christophe estava imundo, principalmente nas mãos. Havia pingos até mesmo em seu rosto, muitos. Eu não encarei Roy por mais de dois segundos; virei o rosto e fechei os olhos. Christophe começou a falar:

-Nós temos que desaparecer daqui.

-Você mesmo disse que era perigoso. - Stan respondeu, transtornado pra caralho. Havia vômito perto de seu pé, no chão. Ele cobriu a boca e tentou controlar a respiração desritmada. Estava bem próximo da mulher, agachado ao lado dela, provavelmente tentando ajudá-la antes de eu chegar.

-E é. Mas ficar ali dentro não nos protegeu de porra nenhuma. E com esses dois aqui… Andem logo, temos que mover as coisas lá de dentro.

-Esperem. Esperem, por favor! - A mulher finalmente disse. Ela se levantou devagar, revelando pernas compridas, a meia calça rasgada na coxa. Cobria os seios usando os dois braços. Stan também se levantou e Bebe imediatamente agarrou o seu pulso. Christophe a olhou impacientemente por cima do ombro. Ela já estava afastada do cadáver do homem. - Vocês salvaram a minha vida. Por favor, não me deixem aqui… - Ela tremia da cabeça aos pés. Novas lágrimas se formavam em seus olhos. - Outros sapadores vão chegar… Vocês não fazem ideia do que eles fazem quando encontram putas.

Nós três nos olhamos. Christophe e Stan, em especial, trocaram um olhar tenso. Provavelmente porque Stan não aceitaria deixá-la para trás e o Toupeira não aceitaria carregá-la junto. Para a minha surpresa, Christophe virou-se para dar dois passos em direção a ela. Eu não podia ver sua expressão. Alternava meu olhar entre os corpos sem vida, todo o sangue que havia se espalhado por aquele lugar, e as três pessoas que se encaravam nervosamente.

-Você pode andar? - Ele perguntou a Bebe, que afirmou fervorosamente com a cabeça. - Ótimo. Ajude a carregar as coisas.

Foi assim que Bebe se juntou a nós. Dessa maneira simples e esquisita.

 

* * *

 

Stan não queria estar ali. De alguma forma, eu sabia que ele me culpava. E eu não o culpava por isso; minha consciência tentava reforçar pensamentos vazios como “você não pediu para ele te seguir”, mas a verdade era que, de alguma forma, eu pedi sim. Eu o conhecia. Sabia que ele não dormia direito sem o meu corpo por perto e sabia o quanto ele se preocupava comigo. Era o nosso código, era assim que nós funcionávamos. Eu teria feito a mesma coisa se soubesse que ele estava mentindo pra mim. Ele me ressentia, isso era muito claro.

Gregory não estava em casa quando nós chegamos no meio da madrugada com Tweek em estado de choque, uma prostituta semi-nua e Christophe visivelmente puto. Foi até melhor assim, eu não gostaria de ter que explicar nada a ele. Nós deitamos Tweek no sofá, eu dei água com açúcar na boca dele e um remédio para que ele dormisse, Stan deu alguma roupa minha para que Bebe se cobrisse e a conduziu até o banheiro, oferecendo que ela tomasse banho. Ela estava suja de sangue.

Nesse meio tempo, Christophe espiava pela janela entre as persianas como se esperasse que os sapadores ou a polícia militar estivesse fazendo ronda lá embaixo. Talvez ele estivesse esperando ver Gregory chegar logo, mas isso não deveria acontecer antes de raiar o dia. No resto do tempo, ele ficava parado de pé na sombra, os braços cruzados, pensando. Pensava tanto que eu quase podia ver a fumaça saindo pelas orelhas. Ele estava tomando para si a responsabilidade de consertar essa merda. Também devia estar pensando nos Monarcas que passaram a noite nos esperando. Foi só então que me lembrei da bomba, das coisas que o Toupeira disse, mas fiz questão de espantar esses pensamentos porque não era a hora certa.

Stan não voltou depois de mostrar o caminho do banheiro do corredor a Bebe. Eu fui atrás dele.

Encontrei a porta do nosso quarto entreaberta, um filete de luz entrando pela janela pelas cortinas mal fechadas. Stan estava sentado na cama, de costas pra mim. Eu não podia ver seus olhos, mas o desenho deles brotou na minha mente, e por algum motivo, eu sabia o quanto estavam vazios. Cheguei perto o mais cautelosamente possível, como se ele fosse um cervo que eu temia assustar. Sentei-me ao seu lado com alguns centímetros seguros de distância e peguei na sua mão. Ele levou uns três ou quatro segundos para afastar.

-Stan. - Chamei baixinho no escuro. Eu só via a silhueta do rosto dele, esse rosto que parecia ter sido esculpido pelos deuses, se esse tipo de coisa existisse. Talvez por desespero ou por teimosia, levei a mão ao joelho dele e apertei com carinho. - Você está bem?

Ele sorriu, mas foi um sorriso cheio de amargura. Abaixou um pouco a cabeça e sacudiu, inconformado, confuso.

-Como?

Fiz uma pausa.

-Eu sei.

E não consegui encontrar mais nada pra dizer. Eu queria dizer a verdade, dizer que eu saí escondido porque dizer não ao Christophe me era tão difícil, que ele tinha um poder tão estranho sobre mim, mas que isso me fazia mal. Queria dizer que ele tinha razão, que eu não iria mais resistir ao jeito dele de fazer as coisas, que eu queria preservar a humanidade tanto quanto ele e não queria me perder em tudo isso, não queria matar ninguém, que nós poderíamos abandonar aquilo tudo e fugir pra um outro lugar, um lugar melhor. Mas aí eu já não estaria mais dizendo a verdade, estaria apenas acalentando o coração dele. Eu queria tirar qualquer dor que ele estivesse sentindo naquele momento. E não podia.

Então eu não disse nada. Deitei a cabeça no ombro dele e fechei os olhos. Stan não resistiu.

 

* * *

12 de novembro de 3644


Em menos de uma hora, começaria a anoitecer. O fim de tarde era meu horário preferido em South Park; a cidade ficava surpreendentemente bela tomada pela luz laranja do sol poente. Em outras circunstâncias, teria sido agradável sentar no gramado dos fundos da universidade com um copo de chá de maçã verde e discutir com Cartman sobre alguma idiotice à qual eu não dava real importância, discordando pelo simples prazer de contestá-lo. Era o que estaríamos fazendo há poucos meses, como os jovens normais que cumprem com a sua função social para contribuir positivamente com a nossa grande nação. Uma merda de grande nação. Você não imagina o quanto é simples se conformar com o sistema em que está inserido até começar a compreendê-lo. Era isso que eu vivia diariamente naquela época, como se uma cortina de fumaça desaparecesse diante dos meus olhos. Em vez de observar South Park do topo das colinas, exposto ao sol e ao verde que cercava os arredores da universidade – os animais silvestres que apareciam esporadicamente – eu estava cercado pelas paredes altas do galpão imundo, escuro, coberto de suor. Minhas mãos latejavam, contidas em punhos violentos. Meus pés descalços estavam fixos no chão, como foi a primeira coisa que aprendi: você precisa de uma base segura nos pés antes de socar o rosto de alguém. Descalço, a chance de escorregar é menor. O chão estava tão empoeirado que facilitava muito no atrito. Na verdade, tudo naquele galpão estava coberto de poeira, todas as caixas enormes que nos cercavam.

Depois do incidente com os sapadores, veio um dia após o outro e nós precisávamos lidar com isso. Andar para frente. Continuar lutando. Eu não vi mais Tweek e pensei que aquela teria sido a gota d'água para que ele desistisse. Eu estava errado, mas só descobriria isso mais tarde.

Christophe me segurou por trás, pressionando o braço contra o meu pescoço. Fazia tanta força que as veias saltavam, os músculos estremeciam. Eu podia sentir a textura firme da pele nua dele contra a minha, pelo menos no meu ombro, a parte exposta pela regata cinza-chumbo soltava que eu vestia. Aquele roçar era estranhamente erótico e eu tinha metade de uma ereção quase toda vez que treinava com ele. Eu cravei as unhas na sua pele, sentindo os pelos macios que cobriam aquela pele grosseira. Ele grunhia pela força necessária para tirar meus pés do chão, e exatamente como ele havia me ensinado, foi esse o impulso que eu usei para impulsionar o corpo para frente e desequilibrá-lo. Ele não chegou a cair, mas me soltou. Virei de frente para ele e encarei seu rosto coberto de suor, a pele bronzeada reluzindo enquanto ele passava as costas da mão sobre a boca, o peito subindo e descendo rapidamente pela respiração irregular. Ele não levou mais do que um segundo para lançar outro soco, mas eu fui rápido o suficiente para desviar, revidando imediatamente em seu abdômen que ele cometeu o erro de deixar exposto. Erro primário e estúpido que eu tive quase certeza: foi de propósito. Com a outra mão, agarrei seu pulso e o torci, o que trouxe o corpo dele para mais perto do meu. Ele não precisou de muito esforço para se livrar do meu punho.

Alguma coisa acontecia com os olhos de Christophe quando nós treinávamos. Suas pupilas dilatavam como as de um predador. Nós dois mal podíamos respirar e havia algo tão excitante em sentir a pele suada dele contra a minha, a grosseria daquelas mãos que me causavam tanta curiosidade. Eu podia sentir que às vezes o pau dele também endurecia. Ele usava uma daquelas regatas pretas tão velhas que mal havia tecido cobrindo o seu tronco. O peitoral dele ficava exposto às vezes, conforme o movimento do seu corpo. Eu podia ver os pelos no peito dele, levemente mais claros do que os cabelos, e por vez ou outra me perguntava se aqueles pelos desciam pela barriga dele também. Toda vez que eu o acertava no abdômen, podia sentir como os músculos ali eram rígidos, trabalhados. Tantas imagens me perturbavam com o corpo de Christophe assim tão próximo, o cheiro dele me intoxicando, roubando-me a concentração. Tudo sobre ele me excitava, e quanto mais excitado eu ficava, mais forte eu queria socá-lo. Eu perdia o controle muitas vezes e ele me permitia, aguentando cada soco sem recuar, aguardando por uma oportunidade de revidar.

Eu sabia que ele sentia também. A forma como ele cravou as unhas roídas no meu braço e me puxou contra o corpo dele naquela tarde... Eu tive certeza, por um segundo, de que ele iria me beijar. Quase pude sentir o toque rude daquela barba malfeita na minha pele. Sua boca parecia tão seca, entreaberta e expondo os dentes, tão carnuda e suculenta que eu fiquei intimidado ao encará-la por mais de um segundo. Não sei ao certo por quanto tempo ficamos daquele jeito. Seus malditos olhos cor de mel ardiam sobre mim, sem piscar, estudando a minha expressão de forma ilegível. Minhas pernas imediatamente ficaram moles, pelo espasmo muscular, pelo cansaço e pelo que Christophe DeLorne causava no meu corpo. Eu tinha tanta raiva daquele homem. Ele aproximou um pouco mais seu rosto do meu, o suficiente para que eu sentisse sua respiração quente contra minha pele. Isso foi o gatilho necessário para que eu o empurrasse com toda a força acumulada nos meus braços, batendo com as mãos no seu peito de forma barulhenta. A adrenalina da luta ainda corria no nosso organismo. A resposta imediata de Christophe veio debaixo: seu punho colidiu direto com o meu queixo, com uma raiva que não havia antes. Ou pelo menos eu nunca percebi. Provavelmente a raiva sempre esteve nele.

O soco bastou para desnortear todos os meus sentidos. Eu cheguei a me agarrar ao braço dele para não cair, perdendo totalmente a função das pernas, esquecendo-me de como ficar de pé. Quando o soltei, levei minha mão ao meu próprio queixo e abaixei o rosto, tomado pela dor que se alastrava por toda a minha cabeça. Meu estômago se contraiu e eu curvei o tronco para baixo, achando por um segundo que iria vomitar.

-Kyle. - Ele me chamou, mas sua voz era muito distante aos meus ouvidos.

-Tá tudo bem. - Menti, quase sem voz. Meus olhos lacrimejavam deliberadamente, eu podia sentir as lágrimas se misturando com o meu suor. Soltei um grunhido espontâneo, apertando os dedos na minha própria carne. Eu sentia como se meu maxilar tivesse sido deslocado. Não havia experimentado dor real naquele ponto da vida para saber diferenciar.

-Kyle... - Ele repetiu, mais suave dessa vez. Eu podia ouvi-lo um pouco melhor. Ele me puxava contra si, tentando afastar minha mão. - Deixe eu ver.

-Eu disse que tá tudo bem. - Respondi de forma grosseira, firme, afastando-me dele. Meu rosto se contorcia involuntariamente em uma careta de dor e, por algum motivo, eu não queria que ele me visse. Dei as costas para ele. Eu me sentia tonto, literalmente intoxicado. Aquele homem mexia com coisas dentro de mim que eu sequer sabia que existiam e isso se tornava cada vez mais impossível de ignorar. Era tanta raiva, tanta ardência, uma fervura corrosiva que deixava minhas pernas fracas, como se fossem ceder a qualquer instante. É claro que isso também se devia aos espasmos musculares, à agitação do treino. Meu corpo estava inteiro em alerta e parecia que minha pele queimaria se Christophe me tocasse novamente.

Meu estômago ainda doía. Era só o que me faltava vomitar agora também. Por pior que fosse a dor no meu rosto, o sangue me subiu à cabeça e corou a minha face quente por outros motivos; eu queria desaparecer dali. Eu tinha vergonha, mas acima de tudo, tinha medo. Medo do que ele me fazia sentir.

Cambaleei para mais longe dele e me agachei como um bêbado para pegar a garrafa de água que havia no chão, jogando boa parte do conteúdo em meu rosto. Meus cabelos já estavam completamente úmidos de suor. A água estava em temperatura ambiente, não gelada como eu gostaria, mas foi gostoso mesmo assim. Sacudi um pouco a cabeça para me recompor, mas acabei me sentindo pior. Acabei sentando sem querer sentar; meu corpo simplesmente cedeu quando fui colocar a garrafa já tampada de volta no lugar. Caí com as duas mãos no chão empoeirado, grunhindo frustrado, apertando os olhos que ainda estavam cheios de lágrimas.

Podia sentir aqueles olhos desgraçados queimando na minha pele, na lateral da minha cabeça, no meu braço exposto, nas minhas pernas, no meu ombro. Ele nem fazia questão de desviar o olhar de mim, porque ele simplesmente não queria facilitar as coisas. Não queria fingir que nada estava acontecendo. Eu pensei que vomitaria meu próprio coração quando ouvi aquela voz rouca dizendo:

-Eu te quero.

O ar entrava e saía tão rápido dos meus pulmões que comecei a ficar tonto. O que ele disse foi muito pior do que o soco. Eu me senti baleado.

-Não. Não fala isso.

-Até quando você quer fingir que não tem nada acontecendo?!

-Não tem nada acontecendo! - Não sei de onde tirei forças para me levantar e trotar na direção dele, um punho bem fechado, o outro frouxo, apontando o dedo indicador na cara dele. Não cheguei perto o suficiente para que ele pudesse me tocar. Bati no meu próprio peito com a palma e a região ardia, por dentro e por fora. - Eu sou comprometido. Não importa o que você sente, não importa o que eu sinto. Falar disso só vai nos fazer mal.

-Você… - Ele murmurou baixo, mas se conteve. Rolou os lábios por dentro da boca e tentou me dar as costas.

-Eu o quê? - Mas ele não me respondeu de imediato, então me aproximei ainda mais para agarrar o seu braço e forçá-lo a se virar para mim. Tocá-lo queimava. Ele podia sentir também, tanto que virou o corpo inteiro bruscamente, como se eu o tivesse marcado com ferro quente. - Eu o quê?! - Gritei.

-Você é muito pra ele! - Christophe esbravejou, cuspindo na minha cara sem querer. - Você… Caralho, Kyle. - Ele apertou os olhos e correu as duas palmas pelo rosto, subindo pelos cabelos, alisando-os para trás. - Você é muito até pra mim. Você… Você é uma porra de uma força da natureza, essa sua energia… Você não faz bem a ele. Vocês não fazem bem um ao outro.

-Cala essa boca. Você não sabe do que está falando.

-Ele não te entende!

-E você me entende?!

Ele só me encarou de volta com olhos vermelhos. Segurou a respiração por alguns segundos e eu pensei que pudesse ouvir o coração disparado dele batendo dentro do peito, mas na verdade era o meu.

-Não, eu não te entendo. - Christophe finalmente me respondeu, aquele sotaque tornando quase difícil de entender o murmúrio. - Mas eu quero.

Neguei com a cabeça, primeiro sutilmente, depois de forma mais incisiva. Agarrei minha mochila, meus sapatos e saí trotando, passando longe dele para não correr o risco de que ele me segurasse, embora o Toupeira não tenha nem tentado. Corri por aquela maldita floresta descalço, molhado, apertando os sapatos contra o peito, deixando que o choro viesse sem hesitar. Abri um corte no pé com alguma coisa no meio do caminho, mas só fui perceber no dia seguinte.

Quando cheguei em casa, por ajuda divina ou qualquer coisa que o valha, não havia ninguém. Eu estava imundo, com a cara inchada e excitado. Tomei um banho, bati uma punheta e talvez tenha chorado mais um pouco, mas havia muita água quente para que eu percebesse. Já estava mais calmo quando Stan chegou em casa. Assim que ele entrou no quarto, ainda sem tirar o casaco grosso, eu o abracei. Ele sabia que havia algo errado. Era a véspera do aniversário do Presidente, e ele me perguntou se eu estava com medo pelo dia seguinte. Eu apenas o beijei.

Foi a primeira vez que transamos em muito tempo. Ele arrancou o casaco às pressas, segurou meu rosto e meteu a língua na minha boca. Enquanto eu levava de bruços na cama, mordendo meu próprio pulso para tentar fazer silêncio, separava mais as coxas para senti-lo bem fundo e jurava a mim mesmo que conseguiria mantê-lo assim pra sempre. Ele beijou meus ombros, minhas costas, colou o peito por trás de mim e nós nos tornamos um só.

Não pensei em Christophe o tempo inteiro, mas o corpo quente dele me segurando por trás enquanto treinávamos sempre vinha com muita força. Aquele soco. O suor dele em mim.


 

* * *


 

13 de novembro de 3644

 

Foi um desfile bonito, na verdade.

O aniversário do Presidente era sempre um evento cuidadosamente planejado, onde milhares de cidadãos exemplares demonstravam seu valor, não poupando esforço algum para oferecer ao seu maior governante uma homenagem digna. Eu gostava muito de assistir aos desfiles quando garoto. Levava Ike nas costas e lembro de mamãe (pelo menos ainda era assim que eu a chamava na época) gritando para que tivéssemos cuidados e não nos afastássemos muito deles. Eu sempre queria ver mais de perto. Também queria me afastar dela, porque minha mãe sempre assistia ao desfile com lágrimas nos olhos. Os desfiles geralmente reuniam a história da nação, como se fosse um evento de celebração da Velha América. A banda tocava a canção preferida do Presidente e o hino da Nação. A cidade inteira estava lá, como em todos os anos.

Mas era diferente dessa vez, embora ainda não parecesse. Meu coração batia apertado ao ver a quantidade de crianças presentes nesse tipo de cerimônia. Famílias inteiras saíam para comemorar, beber a cerveja artesanal gratuita que distribuíam nas ruas, junto a um cachorro-quente que era minha parte preferida do evento na infância. Havia fogos às vezes; não todo ano, mas nesse, sim. Serpentinas e pessoas desfilando fantasiadas com cores da bandeira da América, que eram as mesmas cores da bandeira da França e da Inglaterra, não por coincidência. Talvez por esse tipo de aliança que Christophe e Gregory tinham liberdade de andar na rua. Havia um desprezo ao que era estrangeiro, um desprezo que todo americano era ensinado a cultivar, mas também havia uma necessidade de coligações. De qualquer forma, tal desprezo pouco pertencia à população civil. As tentativas do Governo de engrandecer nossa Nação eram vãs a um povo que passava fome; não nos víamos como seres superiores porque não podíamos nem sequer alimentar nossos filhos.

Pois bem. A banda de cornetas passava, e entre as cabeças, do outro lado da rua, Christophe e Gregory estavam de pé. Gregory com o queixo levantado e um sorriso nos lábios, Christophe com as duas mãos socadas no bolso do casaco e uma carranca, mastigando alguma coisa. Tabaco? Provavelmente. Havia outras pessoas com eles, que poderiam ou não ser os Monarcas. Eu não conhecia os rostos deles. Nós não estávamos todos em um lugar só; estávamos espalhados por todos os cantos, entre as famílias que participavam das festividades. Eu me perguntava quantas delas não traziam suas crianças para celebrar o aniversário do ditador apenas por medo de serem vistos como infiéis. A adoração ao Presidente era religiosa, praticamente. Você não tinha escolha senão adorá-lo, ou fingir que sim.

Minha mãe, cuja adoração era bastante genuína, faria um discurso no palanque montado no centro da praça logo após o desfile.

Kenny estava logo atrás de mim e eu podia sentir sua ansiedade irradiando. Ele beliscava o tecido da calça em um tique nervoso, mastigava o lábio inferior e mexia compulsivamente a perna esquerda. Estava com medo, era muito claro. Eu o espiava de vez em quando para oferecer um olhar seguro de algo que eu não podia realmente assegurar. Stan estava logo ao meu lado, parecendo muito mais calmo do que eu esperava. E Cartman estava no camburão junto com algumas coisas que nós precisaríamos usar, mas a avenida estava fechada para a passagem de veículos. Ele estacionou na rua de cima. Eu não sabia exatamente sobre o paradeiro de mais ninguém.

-Você está bem? – Perguntei ao Stan.

Ele não me respondeu. Mas eu vi que sua mão cobriu o cabo da arma guardada dentro da sua calça, mesmo que estivesse escondida pela camisa.

Nós estávamos divididos em pequenos grupos com pequenas tarefas. Eu não tinha certeza absoluta do que iria acontecer porque meu cérebro repetia mil e uma vezes a minha obrigação. E eu não podia falhar. Não podia nem dar um tropeço. O tempo todo foi meticulosamente calculado. Só precisávamos esperar Gregory piscar para nós com um olho só – esse era o sinal – e então sairíamos às pressas, pedindo com licença à multidão que estava ao nosso redor. Não poderíamos correr propriamente, porque isso poderia invocar uma atenção desnecessária.

Quando os últimos cavalos passaram, arrastando o carro que carregava a imensa estátua de madeira do Presidente coberta por flores, Gregory piscou. Kenny achou que ele tivesse dado o sinal algumas vezes antes disso, mas seguramos seu braço. Dessa vez, ele foi o primeiro a correr, e nós permitimos. Seguimos logo atrás. Havia sapadores fazendo a segurança do lugar por todos os cantos, homens de branco com metralhadoras destoando entre as criancinhas e os animais. Até mesmo os cachorros ganhavam comida de graça no aniversário do Presidente. Era um dia de festa.

Eu olhei em volta antes de adentrar o beco atrás de Kenny para ter certeza de que ninguém nos vigiava. Kenny empurrava com o ombro a porta emperrada na lateral do prédio velho de tijolos que precisávamos adentrar, porque seguir pela porta da frente era arriscado demais. Stan estava prestes a oferecer ajuda quando a porta se abriu em um estrondo abafado pelas cornetas que ainda tocavam. Entramos no depósito do prédio o mais rápido possível. Stan verificou seu relógio de bolso enquanto subíamos as escadas estreitas do prédio, que nem tinha elevador – e se tivesse, provavelmente não teríamos usado. Não havia ninguém lá dentro. Eu suava frio por dentro da camisa, agarrado ao corrimão vagabundo que tremia com a pressão dos nossos passos. Mas suava frio. Meus músculos já tremiam.

Eram oito andares, se não me falha a memória. Podem ter sido sete ou nove, não faço ideia. Nós três acabamos em um corredorzinho estreito em que as paredes pareciam estar se fechando entre nós. Stan andava na frente agora, porque Kenny pareceu hesitante, olhando de um lado ao outro enquanto procurava os números das portas. 904 era o apartamento desejado. Stan tinha a chave. Sua mão tremia ao coloca-la na fechadura, mas ele respirou fundo.

Ao abrir a porta, espirrou. Limpou embaixo do nariz com o dorso da mão e adentrou o apartamento minúsculo e empoeirado com uma confiança que me preocupava. Cartman havia trazido o a faixa enrolada na noite anterior, e agora aquele rolo repousava no meio da sala vazia, o sol penetrando as janelas fechadas e mostrando perfeitamente as partículas de poeira que subiam com os nossos passos no assoalho de madeira. Os dois foram direto em cima da faixa pesada, imensa. Eu corri para abrir as janelas, mas não sem antes espiar o que acontecia lá embaixo. O desfile havia terminado e as pessoas lentamente se dirigiam ao palanque da praça, onde os discursos começariam. Todos pareciam distraídos o suficiente, mas o vidro da janela estava tão imundo que a visão era limitada. Tive que fazer uma força desgraçada para abrir a primeira janela, a segunda já foi mais fácil. Era larga o suficiente para que pudéssemos passar por ela aquele rolo pesado de papel pardo, carregando-o por cima do ombro, distribuindo o peso entre nós três. Ninguém olhava para cima, de onde podíamos perceber. Kenny enfiou a cara para fora da outra janela e ficou de guarda, até que eu empurrasse o rolo na direção dele, usando o pequeno parapeito como apoio. Segurei aquela faixa nos braços como se fosse um ser vivo, tentando espantar da minha mente o que aconteceria se ela caísse.

No prédio à frente, Clyde e Craig faziam o mesmo serviço. Me perguntei se Tweek estava lá com eles. Ele não aparecia na janela.

-Cadê a lanterna? – Perguntei, aflito.

-Aqui. – Stan disse, retirando-a do bolso.

Eu e Kenny amarrávamos a faixa com força nos ganchos do lado de fora da construção, um de cada lado. Suor pingava da minha testa e eu colocava a língua pra fora da boca sem me dar conta. A faixa continuava bem presa pela amarra no centro.

-E a tesoura? – Perguntei novamente.

-Comigo. – Kenny disse com um sorriso orgulhoso, tentando demonstrar tranquilidade, retirando de dentro do casaco uma tesoura vermelha e cortando o ar com ela, como se quisesse demonstrar que a usaria muito bem.

Eu dei mais uma boa olhada no meu próprio nó, enquanto Stan supervisionava o de Kenny. Esfreguei as duas mãos rapidamente, mesmo que já estivessem quentes. Suadas, até mesmo. Abri os primeiros dois botões da camisa e respirei fundo. Craig e Clyde continuavam na janela e também pareciam ter terminado o serviço, mas eu não conseguia propriamente ver seus rostos por conta da distância. Era uma avenida larga.

Algumas pessoas tinham olhado para cima e percebido nosso movimento, mas não pareceram enxergar nada de terrivelmente anormal. Provavelmente acreditaram que seria mais uma faixa comemorativa, como as diversas outras que enfeitavam os prédios com o rosto do Presidente.

Stan olhou no relógio mais uma vez. Espiei por cima de seu ombro e faltavam dezoito segundos para os ponteiros marcarem 16h30.

-Certo. – Stan murmurou sob a respiração pesada. – Tudo certo.

Ele estava com a lanterna pronta na mão. Fez o sinal: piscou duas vezes na janela. “Estamos prontos”, era o que queria dizer. Levou mais cinco segundos, e eu já começava a hiperventilar quando as duas piscadas de luz vieram do outro lado. Era difícil identificar na claridade do sol, mas tivemos certeza de que eram eles. Era tão raro que o sol atravessasse a camada de poluição que cobria a cidade, mas o Presidente deve ter encomendado especialmente para o seu aniversário que o sol desse o ar de sua graça nos quatro cantos da América.

Lá embaixo, minha mãe já aguardava sobre o palanque, pronta para começar. Eu não podia ver no momento, mas as imagens gravadas pela imprensa que cobria o evento mostrava aquela robusta senhora em seu melhor terninho azul com uma camisa vermelha de babados, ajeitando o microfone do púlpito.

-Agora. – Stan disse quando se fizeram 16h30.

E Kenny cortou a corda que mantinha a faixa enrolada. Eu não esperava que a maldita coisa fosse fazer tanto barulho, mas fez. O peso do papel pardo desenrolando emitiu um estrondo alto o suficiente para que todos os rostos se virassem. A banda já não tocava mais, pois minha mãe já limpava a garganta, pronta para começar a falar, e todos os ouvidos estavam atentos. E todos os olhos foram violentados pelos dizeres:

“MORTE AO PRESIDENTE”

E no prédio oposto:

“NÃO CALARÃO NOSSA VOZ”

O silêncio gerou um mal-estar terrível. Senti como se uma mão alcançasse as minhas entranhas e as retorcesse. Não tive tempo de ficar parado contemplando do topo os efeitos que a mensagem causaria; precisamos correr, e correr rápido, porque os sapadores em poucos segundos receberiam ordens para invadir os prédios. Enquanto eles entravam pela frente, nós saíamos pelos fundos. Enquanto descíamos a escada na própria velocidade da luz (ou o mais próximo disso que um ser humano pode chegar), minha mãe foi a primeira pessoa a quebrar o silêncio torturante que tomou conta da multidão, gritando a plenos pulmões pelos ares da praça enquanto esmurrava o púlpito: “morte aos rebeldes”. Isso também foi algo que só presenciei através de gravações.

E quando chegamos ao beco novamente, não havia mais silêncio algum. Eram centenas, talvez milhares de vozes alvoroçadas, alguns gritando em favor do Presidente, repetindo como eco as palavras de minha mãe, e outros civis expressando gritos de resistência. Todos podiam sentir que havia algo prestes a acontecer e não queriam estar presentes. Alguns começaram a se afastar, outros se aproximaram. O caos nos ajudou a nos infiltrar na multidão novamente. Foi aí que nos perdemos de Kenny. Mas Stan alcançou a mão por trás e agarrou meu pulso com uma firmeza assustadora, puxando-me com ele entre as pessoas. No meio dessa distração, as bandeiras americanas erguidas pelos postes de toda rua já pingavam tinta vermelha que escorria como sangue. Eu não sabia quem era responsável por jogar baldes de tinta nas bandeiras, mas quem quer que fosse, trabalhavam rápido. Os sapadores tinham dificuldade de identificar de onde vinham os gritos de apoio e os gritos de resistência. Era muita gente. Muita gente. Os comandantes erguiam a mão e mandavam segurar fogo.

Estávamos tão longe do púlpito que eu mal podia ouvir minha mãe gritando ao microfone. “Essa escória da América pagará com sangue! Peguem-nos! Peguem cada um deles!”

Então, a voz de minha mãe foi cortada e uma gravação de má qualidade da voz de Gregory substituiu seu espaço nas caixas de som com seu ofensivo sotaque britânico:

“Atenção. Peço a cada um de vocês a devida atenção.

Hoje é uma data bastante especial. Há 58 anos, nascia um homem bastante importante para a história da América. Homem este que carrega o legado anti-democrático da Presidência dessa estimada Nação. Não pensem que nosso ataque é pessoal. Não pensem, tampouco, que desejamos arruinar as festividades desse homem. Gostaríamos apenas de parabeniza-lo por seus grandes feitos.”

Os oficiais sobre o palanque gritavam uns com os outros, com pessoas responsáveis ao lado, mandando que cortassem os fios da gravação ou coisa semelhante. Estavam em pânico. Não compreendiam de onde vinha a voz, como invadiram seu complexo sistema de segurança. Não obtiveram sucesso. As caixas de som continuavam emitindo a mensagem.

“Por deixar 300 milhões de americanos na miséria para alimentar uma guerra que assassinou 500 mil soldados patriotas e 600 mil soldados canadenses. Por exilar, fuzilar e torturar estrangeiros, fechar as fronteiras, tratar a Nação como sua casa de bonecas particular. Por engordar cada vez mais o banquete dos grandes empresários, dos banqueiros, por bancar o derramamento de sangue, por ordenar que seus homens atirem a queima roupa em quem se opuser ao seu governo, a olho nu, em plena luz do dia. Por naturalizar a violência. Mas como disse, não pensem que o ataque é pessoal. Pois o senhor Presidente é apenas o símbolo do sistema que explora cada um de vocês. E quando cortarmos sua cabeça, isso também será simbólico. Levantem-se. Resistam. Unam-se a nós.”

Enquanto a voz de Gregory preenchia o espaço aberto, o primeiro tiro foi dado. Um sapador atirou em um senhor que ergueu o braço em apoio. A coisa aconteceu bem na minha frente. E deixe-me dizer, quando uma multidão eufórica ouve um tiro, é quando o caos se instaura completamente e toda a ordem social vai pro saco. Não sobra nada. No fundo, nós somos todos animais. As pessoas começaram a correr, mas muitos ainda resistiram porque, em multidão, você também se sente seguro. Você é parte do todo. Era justamente isso que eles tentavam evitar. Certamente não queriam que a cidade se enfurecesse assim, em conjunto, em milhares de pessoas. Os sapadores eram muitos, mas não o suficiente.

Stan soltou da minha mão pra correr na direção do velho que havia tomado o tiro, segurando-o em seus braços, tentando levantá-lo para que não pisassem nele. Tentei me aproximar, tentei de verdade, mas a massa de gente desesperada me carregou pra longe dele. Eu o ouvi gritando o meu nome, e gritei o dele, mas não podia vê-lo. Ouvi mais um tiro. As pessoas gritavam. E eu senti que deveria gritar alguma coisa para aquela gente. “Fiquem juntos, não sejam covardes, fiquem por seus filhos”, mas me peguei calado tentando lutar contra o fluxo da maré porque no fundo eu sabia que aqueles tiros não seriam os únicos. E quanto menos gente precisasse morrer naquele dia... Porra. O preço da mudança é alto demais para qualquer um suportar.

Meu maior esforço era chegar à calçada. Eu ficaria visível, mas talvez pudesse encontrar os outros. Dei uma cotovelada bem no rosto de uma mulher por acidente, ou talvez por instinto, pela força com que ela me empurrou. Olhava para trás o tempo inteiro, esperando encontrar pelo menos a cabeça de Stan, os cabelos negros que eu reconheceria em qualquer lugar. E nada. Eu não era alto o suficiente.

Por mais ou menos cinco segundos, tive vontade de chorar. Me questionei que merda eu estava fazendo ali. Mas é só esse o tempo que se tem para sofrer com aquela quantidade de adrenalina correndo no sangue.

Ficou muito pior quando a implosão veio.

No meio do caos, ao longe, parecia que uma bomba havia explodido. O som estremeceu as ruas e os prédios, e o pouco que havia de sanidade nas pessoas – nos sapadores, inclusive – desapareceu. Ninguém sabia o que havia acontecido, mas ninguém estava interessado em saber. As pessoas só corriam. Os tiros começaram. Gente se jogou no chão, mas os pés não pararam para essas pessoas. Eu o fiz quando cheguei na calçada, aterrissei bem ao lado de um pirulito meio mordido que alguma criança deixou para trás, e meu coração doeu. Eu estava próximo a uma barraca de cachorro-quente sem dono, e rastejei para atrás dela, olhando em volta. Encarava todos os rostos que eu podia, buscando Stan, buscando Kenny, Cartman... Christophe. Até mesmo minha mãe. Qualquer rosto conhecido que eu pudesse ter certeza de que estava bem. As pessoas batiam nas portas das casas, implorando para que lhes deixassem entrar. Os sons... Puta merda, os sons. Os sapadores não identificavam mais quem era rebelde ou não. Fuzilavam corpos contra a parede e corriam também dos tiros. Eu tinha uma arma na calça.

Você treina em garrafas e maçãs, mas nunca acha que vai estar pronto pra essa merda.

Então eu vi um rosto conhecido.

Daquele ângulo, com meu rosto próximo ao chão, eu vi Tweek deitado no meio do asfalto de barriga pra baixo, com centenas de pés passando por cima do que era seu corpo. Ele gritava, ainda semi-vivo, mas ninguém parecia ouvir. Ninguém. Eles só corriam. E as mãos finas dele se estendiam para agarrar alguns tornozelos, mas pisaram com tudo sobre seu crânio sabe-se lá quantas vezes, a ponto de o cabelo ser apenas uma massa de sangue, as mãos em carne viva, a roupa rasgada, o rosto coberto de sangue, esfolado. O nariz parecia fora do lugar. Eu me levantei tão rápido que minhas mãos queimaram raspando no cimento. E gritei. E corri. E empurrei com ódio todo ser que passou na minha frente, chamando o nome de Tweek, pronto pra sacar aquela merda de arma e atirar em cada um dos filhos da puta que passavam por cima dele. Mas alguma coisa me impediu de continuar correndo.

Um par de braços grosseiros me agarraram e me restringiram como se não fosse nada. Eu bati as costas contra aquele peito duro e quente, e nem precisei virar para saber a quem pertencia, porque aquele cheiro de almíscar e fumo tão familiar invadiu minhas narinas.

-Me solta! Me solta, seu filho da puta, me solta! Tweek! – Eu gritava com uma voz esganiçada a esse ponto, mas me dei conta de que eu não tinha força nenhuma. Não naquele momento. O movimento seguiu seu rumo e Tweek não se contorcia mais. Eu tentava me debater nos braços de Christophe, que me puxava pra cada vez mais longe de Tweek, arrastando meus pés como se eles nem tocassem o chão. Caí com o tronco pra frente e senti meu rosto todo molhado, lágrimas escorrendo dos meus olhos e nariz. Eu contorcia o rosto em uma careta de dor, como se tivessem enfiado uma faca no meu estômago. Agora eu só murmurava. – Eu não posso deixa-lo, eu não posso...

Ele se enfiou no primeiro beco que pôde encontrar. Esse era muito estreito, a ponto de ele me empurrar pra andar na frente porque não passaríamos os dois enroscados daquela maneira. Recuperei a força nas pernas através do pavor, mas precisava tatear a parede imunda como se eu fosse um homem cego. Aquele caminho dava para um espaço escuro entre dois prédios, sem saída para a outra rua, fechado por uma grade enferrujada. Eu me apoiei sobre umas latas de lixo e comecei a vomitar.

-Ei, ei. – Ele sussurrou atrás de mim, apertando a minha nuca com sua mão gelada, o que era um alívio. Minha cabeça fervia. – Você se feriu?

Acho que eu não tinha nada além de ácido estomacal pra botar pra fora, mas foi isso que saiu. Em pouca quantidade e sem alívio nenhum subsequente. Christophe virou meu corpo mole, apressado para me inspecionar inteiro, procurando um hematoma ou coisa pior.

-Não... – Respondi soando embriagado, com os olhos ardendo demais para enxerga-lo direito. – Nós temos que voltar, eles precisam...

Só então consegui dar uma boa olhada nele. A região embaixo de seus olhos parecia avermelhada e o resto dele estava horrivelmente pálido. Ele estava com uma postura esquisita, os ombros caídos, meio curvado para frente. Um braço cobriu o abdômen assim que eu o encarei.

-Christophe? – Perguntei baixinho, tentando não parecer tão assustado quanto eu estava.

Ele afastou um pouco o braço do abdômen, a manga cheia de sangue. Havia uma mancha imensa do lado direito, mancha que parecia quase marrom no tecido daquela camiseta escura. O tecido estava perfurado. Assim como a carne dele. Havia uma bala ali dentro.



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