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História Liberté - O Nascer


Escrita por: caulaty

Capítulo 17 - O Nascer


26 de maio de 3660

 

Antes que eu narre os próximos eventos do dia 26, há algumas coisas relevantes que eu posso te contar sobre o aniversário do Presidente. Coisas que Kyle nunca presenciou e talvez isso tenha sido melhor para ele. A primeira delas é o que aconteceu com Kenny McCormick depois que ele se perdeu dos seus amigos. Kenny costumava ser um jovem magrelo pelo qual ninguém dava coisa nenhuma, as pernas pareciam duas varetas e ele não tinha todos os dentes na boca. Depois Kenny cresceu para se tornar um homem diferente. Não melhor nem pior, apenas diferente. O importante agora é que Kenny não era particularmente corajoso ou altruísta, pois foi o que cresceu em piores condições de todos eles e aprendeu desde cedo a se importar mais consigo mesmo do que com qualquer outra pessoa. No entanto, ele fazia parte de um grupo de resistência. Isso parece contraditório? Não deveria.

Talvez Kenny fizesse parte de La Resistance naquela época muito mais por si mesmo do que pela causa em si.

Quando os tiros começaram, Kenny correu com suas pernas magras em busca do que todos estavam também procurando: abrigo. Entrou em uma ruela que dava acesso à avenida de cima. Avistou Eric Cartman dentro de uma van buzinando para ele, gritando que ele entrasse. Kenny entrou pela janela, de mal jeito, a antes mesmo que estivesse ajeitado no banco, Cartman enfiou o pé na tábua e arrancou com a van para o mais longe possível. Kenny gritava que ele tinha que voltar, que precisavam encontrar Kyle e Stan. Era só nisso que ele pensava. Kyle e Stan. As duas únicas pessoas que importavam no mundo para Kenny que não tinham relação sanguínea com ele. De qualquer forma, esses apelos todos foram inúteis. Cartman não parou por cerca de vinte minutos. Foi só no meio do caminho que Kenny percebeu Craig Tucker na parte de trás da van, os olhos inchados e vermelhos, o rosto molhado, imóvel. Pareceria morto se não estivesse respirando e sem nenhum ferimento. Encarava o nada. Craig viu Tweek ser pisoteado. Kenny ainda não sabia disso.

-Cartman, pelo amor da sua mãe, de tudo que é mais sagrado... – Kenny murmurava, agora sem histeria, contorcendo-se num choro silencioso. Agarrava a manivela da porta do carro porque precisava apertar alguma coisa com os dedos. – Eles ainda estão lá.

-Escute aqui, Kenny. – Foi a primeira vez que Cartman abrira a boca desde que Kenny entrou na van. Ele mordia a unha de um polegar para tentar manter os nervos sob controle. – Eu só vou dizer isso uma vez. Eles são fortes, entendeu? Eu tenho pena é do sapador que encontrar o Broflovski por aí. E eles estão juntos. Você não pode fazer merda nenhuma por eles se estiver com uma bala na cabeça. Fique quieto.

E com isso, Kenny engoliu o choro e virou para olhar pelo vidro da janela. O caos já havia tomado a rua de cima, os militares buscavam pessoas como ratos, e Cartman esperava um tiro no pneu da van a qualquer segundo. Kenny esperava que Cartman atropelasse alguém por dirigir daquela maneira. E Craig só esperava que Clyde estivesse seguro.

Mas após vinte segundos, Kenny abriu a porta da van ainda em movimento e se lançou para fora, estabacando-se no chão, ignorando os ralados nos joelhos e nas mãos para correr de volta para a multidão. Subiu a rua mais rápido que um felino selvagem, freou quando deu de cara com um homem de branco apontando um fuzil para Clyde, rendido contra a parede. Kenny ergueu o braço direito e gritou “Viva la Resistance” a plenos pulmões. O homem branco não pensou duas vezes antes de exterminá-lo com uma sequência raivosa de tiros – por mais que alguns considerem armas de fogo uma maneira fria de matar -, o que deu tempo o suficiente para que Clyde corresse e entrasse bruscamente pela primeira janela que encontrou. Kenny caiu morto no asfalto e Clyde sobreviveu ao incidente com alguns pequenos arranhões.

Foi muito bom que Kenny tenha acreditado, durante aquele período difícil, que Kyle e Stan estivessem juntos. Mas a verdade é que Stan passou duas horas escondido dentro de uma lata de lixo, completamente sozinho, resgatando um hábito muito antigo de rezar. Não para Deus propriamente, embora ele já tivesse muita fascinação por todos os tipos de religiões naquela época, mas rezava para o destino ou qualquer coisa que o valha. Stan passou aquelas duas horas sem saber sobre Tweek, sem saber onde Kyle estava. Quando saiu, depois que os tiros cessaram naquela região, saiu andando pela calçada com as pernas moles e a roupa besuntada do sangue de outras pessoas que tentou ajudar. Não precisou andar muito para encontrar um rapazinho loiro vestido de forma engraçada, como se vestiam as crianças da era vitoriana, com uma gravata borboleta e uma boina. O menino correu até ele, acreditando que Stan estivesse ferido. Parecia não ter mais de dezessete anos. Tinha a mão perfurada por uma bala, mas mesmo assim tentou ajudar Stan, que se sentia um senhor de mil e um anos. O rapaz se apresentou como Pip. Stan tentou sorrir para ele, mas não conseguiu.

A moça que conheceram poucos dias antes, Bebe Stevens, também estava com eles no dia. Sabe, a verdade é que a única pessoa que Bebe tinha no mundo era sua mãe moribunda que não estaria por perto durante muito tempo. Este pode, ou não, ter sido o motivo pelo qual ela se dispôs a ajudar de qualquer forma que fosse possível os jovens que lhe salvaram a vida. Gregory ofereceu a ela um serviço básico e colocou Wendy para se certificar de que ela não faria nenhuma bobagem. Ele se obrigava a confiar em todas as pessoas que quisessem se juntar à resistência. Bebe sorriu para Wendy no dia em que a conheceu, mas Wendy não retribuiu. Pelo menos não naquele momento. Durante o caos, elas se esconderam juntas atrás do balcão de um bar junto com o dono do estabelecimento e mais alguns civis. As pessoas daquele bar pensaram que as duas eram prostitutas. Não sabiam que estavam dando abrigo a uma rebelde.

Ou duas, no caso.

É engraçado contar esses acontecimentos todos no passado quando eu posso vê-los agora mesmo de onde estou, com tanta clareza. Porque o tempo é simultâneo. E se voltarmos a essa manhã de 3660, com Kyle completando seus trinta e três anos, tirando a camisa em seu quarto escurecido pelo fim de tarde, perceberemos que tudo acontece ao mesmo tempo. Kyle desliza a camiseta branca de algodão sobre a cabeça para e livrar dela, o Toupeira se encosta no batente da porta e cruza os braços, observando-o com atenção, e enquanto isso se dá, o Toupeira também tenta arrombar uma porta com o ombro em 3644, pressionando a ferida de uma bala que deu origem à cicatriz que ele tem no abdômen agora, e ele sangra pelo chão inteiro lá, e Kyle o empurra para arrombar a porta sozinho, movido por uma raiva animalesca que ele não tem agora, dezesseis anos depois, despindo-se na intimidade do quarto. E agora, como homem adulto, Kyle revela a cicatriz imensa que tem no lado esquerdo da parte inferior das costas, quase no lombo, a pele deformada. Kyle não tem essa cicatriz em 3644, arrombando a porta da dispensa de um estabelecimento fechado para dar ao Toupeira um abrigo e um lugar para se deitar.

O Kyle jovem tem medo de que ele morra e não faz ideia dos horrores que ainda vai passar. E está passando agora, pois o tempo é simultâneo. Em algum lugar do tempo, da história de Kyle Broflovski, ele está ganhando essa cicatriz.

Está tudo interligado.

Mas eu ainda me esforço para tentar fazer algum sentido para vocês nessa minha contação. Tentarei me ater ao que se entende como presente nessa história, porque temos detalhes importantes para cobrir.

Christophe DeLorne veste uma camisa preta de botões com as mangas arregaçadas e um jeans escuro que é comprido demais para a perna dele. Está descalço. Se aproxima por trás de Kyle de forma tão sorrateira e silenciosa que ele só percebe quando Christophe está prestes a tocá-lo. Sempre se assusta com esse tipo de coisa. Não gosta de ser surpreendido. A mão de Christophe cobre imediatamente a cicatriz de Kyle para acaricia-la, mesmo sabendo como ele se sente sobre isso. Kyle se afasta como se a mão de Christophe fosse feita de ferro quente, virando-se com certa irritação.

-Não. – Ele diz com firmeza, deitando uma mão no peito largo do Toupeira para mantê-lo afastado.

Não que funcione muito bem. Christophe o encara sem expressão por alguns segundos, então se inclina para roçar os lábios sobre os dele, a ponta do nariz contornando a bochecha de Kyle, as mãos envolvendo sua cintura nua. Ele ainda segura a camisa na mão. Deita o rosto na curva entre o ombro e o pescoço de Christophe, praticamente ronronando como um gatinho. Os dois ainda tem a lembrança do sexo muito viva no corpo, o cheiro e o suor um do outro impregnado. Christophe alisa a pele deformada com o polegar e beija a cicatriz sob o olho de Kyle, que dessa vez permite.

-Não entendo porque você tem vergonha dela. – O Toupeira sussurra ao pé do ouvido dele, referindo-se à pele que nunca se recuperou em suas costas. – É uma marca tão bonita...

-Você é louco.

-É sério.

E para mostrar o quanto é sério, Christophe o empurra de bruços na cama recém-feita. Escorrega as duas mãos pelas laterais do tronco dele, tateando os músculos, a pele mais escura de Christophe contrastando com a dele, tão alva. E o Toupeira se ajoelha no chão e se debruça sobre ele, apoiando o peito na bunda de Kyle, que ri desconfortável e tenta se ajeitar, virando o rosto por cima do ombro. O Toupeira desliza o nariz e os lábios sobre a cicatriz, o que deixa o corpo de Kyle tenso, duro como pedra. Mas Christophe beija a pele com a boca aberta, deixando a saliva se espalhar, lambendo até subir pela coluna vertebral, chegando à metade das costas dele. Suas mãos se enchem com as nádegas de Kyle, ainda cobertas pela calça clara.

-Espera. – Kyle sussurra sob a respiração pesada, a voz contradizendo a palavra. – Nós temos que conversar.

Christophe deixa escapar um gemido abafado, erguendo um pouco a bainha da calça dele, enfiando o rosto ali como um cachorro revirando alguma coisa.

-Sobre o quê?

Se tem uma coisa que deixa Kyle irritado, é quando alguém se faz de sonso. Acredite, eu sei. Já levei muito esporro por isso. Ele finalmente se endireita, sentando no colchão e virando o tronco para enxerga-lo.

-Não se faça de idiota, não combina com você. - Kyle repete as palavras que Gregory disse a ele quando falavam sobre Christophe. Não sei se é algo consciente.

Sabe, eu me sinto horrível pelo Toupeira. O incidente foi na madrugada anterior, há umas seis horas, na verdade. Kyle foi atrás dele logo depois que a coisa toda aconteceu, mas Christophe não estava pronto pra dizer uma palavra. Agora, ele chega avançando como se nada houvesse porque essa é a única maneira que ele tem de se comunicar quando as coisas ficam difíceis.

E Kyle entende isso. Já conhecia o bicho o suficiente. Mas isso não alivia o aperto dentro do seu peito. Ele sempre fica aflito quando não pode ajudar quem ama; Eu sei disso melhor do que ninguém.

-Você está sofrendo de estresse pós-traumático. – Kyle diz a ele calmamente, o que faz com que o Toupeira se levante do chão e ponha as mãos nos quadris, dando alguns passos pra trás. – Podia ter me contado.

O Toupeira dá as costas para ele por não mais de dois segundos, então se vira coçando a barba e procurando a coisa certa pra dizer. Não encontra. Apenas fica ali de pé o encarando de volta, com as pupilas dilatadas, os olhos infantis. Kyle se ergue da cama e caminha até ele com delicadeza, tocando-lhe o ombro, fazendo um carinho em seu braço.

-Você sabe que eu nunca quis te machucar. – Ele diz enfim, com uma voz pequena e envergonhada. – Me desculpe.

-Não tem porque se desculpar por algo que você não teve culpa. Eu só queria que você tivesse conversado comigo sobre o que tem passado. Todos nós passamos por isso em algum nível, Christophe. Você sabe disso. Não lembra como eu estava quando voltei de Washington? Eu estava... Completamente quebrado. Não podia fechar os olhos um segundo que eu pensava que estava preso de novo. Às vezes até com os olhos abertos. E você me ajudou tanto. – Ele faz uma pausa aflita, querendo chegar mais perto dele, mas não se move porque o Toupeira não vira para olhá-lo. Continua encarando o chão.

-Eu podia ter te matado, Kyle.

-Isso não teria acontecido, eu consigo te derrubar fácil. – Kyle tenta dizer com um sorriso, umedecendo os lábios, nervoso. Christophe não sorri, mas pelo menos olha para ele. – Eu gostaria muito que você me deixasse te ajudar também.

Christophe corre a língua sobre os dentes, como sempre faz quando está pensando com muita força. Kyle já conhece esse hábito, sabe como ele funciona. Por fim, o Toupeira se senta na poltrona que fica no canto do quarto, ao lado de um abajur desligado. Suas pernas estão bem separadas e os cotovelos ficam apoiados nas coxas, a cabeça pendendo um pouco pra frente. A cicatriz sob o olho de Kyle se deforma com a expressão curiosa com que encara o outro. Ele não se assusta mais com a vulnerabilidade de Christophe, não senhor. Faz muitos anos que isso passou.

-O que aconteceu com você na França, Christophe? - Kyle pergunta de repente, cortando o silêncio do quarto. Dá dois passos para frente. - O que fizeram com você?

O Toupeira une as duas mãos em frente ao rosto e entorta um pouco a coluna, estreitando os olhos para o chão, sem pressa para responder. E por que teria, não é mesmo?

-Fizeram o que tinham que fazer. E eu fiz o que eu tinha que fazer. É assim que funciona.

Com isso, Kyle não podia discutir.

Então, ele volta a se vestir porque já está atrasado para o trabalho. Isso não faz muito sentido pra mim, visto que ele pode fazer os próprios horários e não é exatamente subordinado de ninguém, mas ele trabalha com rotina. O Toupeira continua quietinho na poltrona, agora com os braços descansando sobre os encostos, as costas relaxadas, observando a cicatriz nas costas de Kyle desaparecer sobre a camisa de tecido fino. Kyle se encara no espelho que está pendurado ao lado da janela durante alguns segundos, a luz do sol novo batendo tão bonita sobre seu rosto.

-Hoje é seu aniversário, não é? - Christophe diz de repente.

Kyle está terminando de fechar os botões da camisa. Olha para ele com um sorriso vago querendo aparecer no rosto, porque não esperava que ele soubesse disso. Aniversários não são mais uma data particularmente importante para ele. Será um dia comum, a princípio. Mas esse momento é delicioso porque a pergunta vem de uma pessoa que despreza aniversários e datas comemorativas em geral.

-Por acaso é sim.

-Você quer… Fazer alguma coisa?

Agora Kyle está sorrindo de verdade e não há vergonha alguma nisso. Como não deveria mesmo haver. Ele caminha até Christophe e segura o rosto dele com as duas mãos, forçando-o a olhar para cima, um encarando o outro. O Toupeira hesita durante alguns instantes como a mula que é, mas suas mãos também acabam subindo pelas coxas de Kyle de forma carinhosa, não tanto sexual. Kyle se inclina para beijar a testa do homem.

-Por favor, esteja aqui quando eu voltar. - Diz a ele.

-Para onde eu iria? - O Toupeira pergunta.

Eu entendo que Kyle tem medo de que ele desapareça de novo depois do que aconteceu. O Christophe de dezesseis anos atrás, aquele que Kyle conheceu, aquele que sangra do tiro de uma arma em 3644 agora mesmo, talvez aquele Christophe sim teria fugido como um bicho depois de ter dado um belo hematoma no pescoço de Kyle como presente de aniversário. Não se pode dizer que ele já não era bastante traumatizado naquela época.

Mas Christophe tenta sorrir como se quisesse assegurar de que não vai a lugar algum, apertando um pouco os olhos fundos de quem não pregou o olho a noite inteira. Kyle se convence, ou tenta se convencer de que isso é suficiente, bagunça um pouco o cabelo dele e deixa um beijo demorado na sua testa.

-Então à noite nós vemos o que fazer.

 

* * *

 

Gregory tem uma voz bonita e está sempre fazendo uso disso. Ele caminha pelo corredor estreito do último andar da câmara, que é sinistro e mal iluminado se você me perguntar, assobiando uma canção de A Noviça Rebelde, cantarolando alguns pedaços. Ele abre a porta do escritório de Kyle dramaticamente, como se fosse iniciar um número musical em um filme. Em vez disso, ele abre um sorriso gigante, expondo os dentes brancos e desumanamente retos, olhando Kyle da porta. Kyle já deveria estar acostumado com o jeito triunfal que Gregory tem de entrar nos cômodos, mas não está, isso fica explícito na expressão confusa e arrogante que ele oferece em troca. Kyle ergue uma sobrancelha, segurando a caneta com que escrevia há poucos segundos. Ele quer sorrir, no fundo, mas não pode. Está ocupado demais tentando fazer Gregory sentir um pouco de vergonha por ser excêntrico.

Não funciona, obviamente. Gregory invade a sala ainda envolto pela cantoria, tropeçando na letra que ele já não lembra mais. Como se ainda dançando, ele dá dois passos à frente e parece sério de repente.

-Eu vou fazer uma proposta e você vai aceitar. - Diz finalmente, pisando sobre o tapete empoeirado do escritório quando se aproxima da mesa de Kyle. - Pode ser?

-O que você quer, Gregory? - Kyle pergunta, um sorriso já transparecendo no rosto.

Gregory caminha o resto da distância de forma mais real, escorrega as mãos pela superfície da mesa cheia de papéis e livros, incliando-se sobre ela para aproximar o rosto de Kyle, que o encara de volta com curiosidade. É um ritual que esses dois praticam anualmente.

Há um calendário sobre a mesa. Gregory o segura para estudá-lo cautelosamente, observando o número 26 em vermelho. Deita a cabeça de lado e o mostra para Kyle como se ele não soubesse que dia é hoje.

-Venha jantar na minha casa.

-Gregory…

-Não vai ser nada demais, eu prometo. Eu vou assar um pernil, o que você quiser, vai ter pouquíssima gente. Ninguém que você não queira. - Ele larga o calendário e começa a colocar o poder de persuasão em prática. - Eu comprei um bolo. Você não vai rejeitar meu bolo, vai?

Kyle se reclina na cadeira, tira os óculos e aperta a ponte do nariz com o polegar e o indicador, imitando um gesto muito comum de Stan. Não demora muito para que ele volte a encarar Gregory com uma expressão vazia, os olhos brilhando, cansados. Ele está tentando responder com silêncio, mas enquanto Gregory não ouve um “sim”, toda resposta é desconsiderada. Então Kyle respira fundo e coça o maxilar, olhando para a pintura descascada na parede.

Gregory desperdiça algum tempo encarando o lenço azul em torno do pescoço de Kyle.

-Não está um pouco quente pra usar isso?

-Você já terminou, Gregory?

-Kyle, eu estou disposto a cozinhar por você. O que mais você quer de mim?

E ele ri, sacudindo a cabeça como se ouvisse algo inacreditável.

-Eu não quero nada de você, Gregory. Você não tem ligações pra fazer?

-Kyle, quantas vezes nos últimos trinta e três anos você pensou que fosse morrer? Nós somos muito mais apegados a datas de morte do que de nascimento. Nós temos o que celebrar mais.

-É, isso é verdade. Mas acho que a essa altura eu prefiro celebrar em casa.

Gregory deixa uma mão apoiada sobre a mesa e leva a outra ao quadril. Ele usa luvas brancas, o paletó azul marinho e as calças vermelhas em um tema patriótico que provavelmente foi acidental. Talvez ele esteja em um dia saudoso com a sua pátria mãe, a terra para qual ele jamais voltará. Há um brilho curioso em seus olhos azuis. Ele estuda a expressão de Kyle por um segundo, observando como ele brinca com a caneta agora.

-Sozinho?

Kyle sorri e desvia o olhar, balançando a cabeça em desaprovação. Ele se diverte com Gregory mais do que gosta de admitir.

-Porque veja bem. - Gregory prossegue sem esperar por uma resposta (era uma retórica, é claro). Volta a endireitar o tronco e ajeita as luvas enquanto fala. - Se você esperava o Toupeira como companhia, ele tem um compromisso na minha casa hoje: o seu jantar de aniversário. Ou você vem junto, ou vai passar a noite bebendo vinho sozinho.

-Você é horrível.

Gregory abre o sorriso mais gentil, fechando um pouco os olhos.

-Às oito então?

Kyle suspira da forma menos dramática que consegue, o que ainda é bastante dramático.

-Eu tenho que levar alguma coisa?

-Só o seu corpinho já é suficiente.

Com uma palma satisfeita abafada pelas luvas, Gregory vira os calcanhares e caminha em direção à porta que ficou aberta, pois ele sabia que seria uma visita rápida. Ele confia demais no próprio poder de persuasão e deve quebrar a cara de pau por conta disso um dia. Mas por ora, Gregory assobia alegre com a pequena vitória.

Algo, entretanto, ainda o incomoda. Chegando à porta, Gregory segura a maçaneta prateada e volta o olhar para Kyle por cima do ombro, uma expressão muito sutil de dor tomando conta do seu rosto. Ele disfarça muito bem antes de abrir a boca novamente.

-Posso convidar o Stan?

Kyle demora alguns segundos antes de levantar a cabeça. Ainda não tinha voltado a escrever, mas segura a caneta como se tivesse.

-O quê?

-Posso chamá-lo pro jantar?

Se eu ainda fosse capaz de sentir dor, com certeza haveria um aperto dentro do meu peito pelo sorriso triste que Kyle oferece a ele.

-Pode. Ele não vai, de qualquer forma.

Gregory encolhe os ombros, tentando parecer esperançoso.

-É, mas quem sabe? - E deixa a sala, fechando a porta atrás de si.



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