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História Liberté - A Morte


Escrita por: caulaty

Capítulo 18 - A Morte


11 de novembro de 3644

 

Uma vez, quando eu era criança, vi meu pai se cortar com um prego enferrujado em uma tábua de madeira que ele serrava. Eu nunca tinha visto uma quantidade tão grande de sangue em toda a minha vida, e mais do que isso, nunca tinha visto meu pai sangrar. Você constrói essa imagem de um homem forte e intocável que pode tudo, então descobre que ele é feito de carne como todos nós. Que ele sangra igual. É quando você começa a descobrir que não existem super-homens, quando seu pai começa a ficar igual a todos os outros homens falhos do mundo. Minha mãe, ao contrário, continua sendo uma mulher de aço até hoje. Não sangra, não chora, não sente.

Christophe me fez acreditar novamente em homens invencíveis. Ele gostava de fazer parecer que era inatingível, mas estava errado. Seu sangue melando até os sapatos era prova disso. Depois de ver a ferida, dei-me conta de que aquele sangue quente também manchava as costas da minha camisa do momento em que ele me abraçou por trás para me impedir de correr para a multidão e tirar Tweek dali. Eu ainda o ressentia um pouco por isso, mas tinha outras prioridades agora. Abrir aquela porta desgraçada de um depósito. Havia uma tábua de madeira trancando a porta pelo lado de dentro, e Christophe tentou força-la com o ombro, mas não tinha força o suficiente. Eu o empurrei e joguei todo o meu peso contra aquela porta de madeira vagabunda. Foram três ou quatro tentativas antes que a tábua se rompesse e a porta abrisse.

Ele entrou cambaleando um pouco, segurando-se nas coisas. Por dentro, havia diversas prateleiras com vidros de conserva, sacos de farinha, feijão e outros grãos. Era uma sala pequena, a dispensa de um restaurante, aparentemente. Tirei poucos segundos para olhar em torno e reconhecer o ambiente, depois apressei-me para empurrar uma caixa grande até a porta para barra-la de alguma forma. Não impediria os homens de branco de nos encontrarem, mas pelo menos os seguraria até que pudéssemos fugir. Só havia uma janela pequena iluminando a dispensa e ninguém conseguiria entrar por ali. A caixa deixou uma trilha na poeira do chão conforme eu a arrastava. Ainda carreguei dois sacos imensos de farinha para colocar em cima.

Nesse meio tempo, o Toupeira caminhava mancando entre as prateleiras, procurando alguma coisa útil. Grunhiu de repente, o que me fez virar o rosto em sua direção. Era um som alto e frustrado.

-Merda. – Ele disse, socando a prateleira, fazendo tremer os potes de vidro. Um vidro de azeite caiu no chão, mas não quebrou. – Merda!

E com isso, como se nada mais importasse, ele despencou ali mesmo. Sentou-se e liberou o peso do corpo de propósito, mas pelo estrondo da queda, pareceu acidental. Apoiou a cabeça na prateleira atrás, que era bamba e não parecia dar muito suporte. Só o que me faltava aquela desgraça cair. O Toupeira esfregou a cara com uma mão só. Estava totalmente coberto por suor, a pele escura de sujeira, sabe-se lá de onde. Larguei o último saco de farinha e me aproximei dele.

-Deixe eu ver isso.

-Pra quê? Você sabe alguma coisa sobre ferimentos de bala?

Respondi com um “tsc” irritadiço, ajoelhando-me à sua frente. Peguei a bainha da camisa dele com as pontinhas dos dedos e ergui o tecido com toda a delicadeza possível. Vi exatamente o que não queria. A bala não entra em um furo redondo e perfeito, se é essa a ideia que a maioria das pessoas tem. Dilacera a carne e te faz perceber o quanto nós somos sacos frágeis de osso e sangue. Muito sangue. A quantidade parecia interminável.

-Nós temos que estancar isso.

Ele não protestou e eu fiquei aliviado. Pouco a pouco, ele se deitou, procurando uma posição adequada como se soubesse o que estava fazendo. Era provável que soubesse mesmo. Ele estava estranhamente calmo para uma pessoa que acabou de levar um tiro. Gemia baixo de dor. Eu procurava panos de qualquer tipo; dificilmente haveria uma merda de um rolo de gaze naquele lugar. O desespero sempre faz com que você procure mal as coisas. Christophe deitou a mão sobre o próprio peito e me observou do chão, com os lábios entreabertos, respirando rápido como um animal abatido.

-Kyle... – Ele murmurou com uma voz tão fraca que só me deixou ainda mais tenso. – Deve ter uma... Uma mochila preta atrás daquele balcão.

-Ali?

-Deve ter algo de útil dentro.

Dei graças por me sentir capaz de encontrar alguma coisa. A mochila não foi difícil de achar. Eu a trouxe para mais perto dele e ajoelhei no chão para começar a revista-la. A primeira coisa que encontrei foram duas armas e um bocado de munição. Havia também água oxigenada, alguns comprimidos que eu não podia identificar, um pedaço de pão enrolado em um plástico e, socada no fundo, uma camisa é limpa. Era aquilo mesmo que teria que servir.

Eu nunca fiz nada do gênero em toda a minha vida até aquele momento. Você não sabe ao certo do que é capaz até que outro ser humano precise que você seja forte e não questione nada.

Praticamente me rastejei para chegar até ele com aquela camisa nas mãos como se fosse um objeto precioso. O mais delicadamente possível, mas com firmeza, sobre o ferimento. Christophe estava com a cabeça jogada pra trás e quase hiperventilando a essa altura, estremecendo tão suado que tive vontade de rasgar a camisa dele com as próprias mãos porque ele parecia estar sufocando. Pus uma mão sobre a testa dele, que fervia. Ele agarrou meu braço com a mão e apertou com tanta força que meu sangue parecia não circular mais, mas isso não me deteve. Não aliviei a pressão em nenhum momento. Aos poucos, ele voltava a abrir os olhos e pareceu se acalmar. Os sons que vinham lá de fora eram estrondosos.

-Como você conseguiu me carregar nesse estado? – Perguntei, muito mais em uma tentativa de mantê-lo acordado do que qualquer outra coisa.

-Eu estava muito mais me apoiando em você do que te carregando...

Christophe ainda parecia muito são ao falar, apesar das pausas longas. Eu ofereci a ele um sorriso triste, e ele alternava o olhar entre mim e as mãos que tentavam estancar sua ferida. Apertava os olhos de dor, mas não reclamou um minuto sequer.

-Você vai ficar bem, Toupeira. – Eu disse, como um idiota. – Nós só temos que esperar que eles saiam da rua. Não fique gastando energia, você vai ter que andar um pouco.

Aí sim ele sorriu. Mas não foi um sorriso feliz. Foi amargo, incrédulo. Desviou o rosto para o outro lado.

Então se fez um silêncio longo. Não sei dizer de quanto tempo, eu não tinha nenhum relógio comigo e nem uma boa noção. Aliás, se posso dizer, as memórias daquele dia vêm sempre meio manchadas. Eu estava concentrado demais em fazer com que ele parasse de sangrar no começo, o que demorou muito. A camisa já estava tão besuntada de sangue que eu considerei tirar a minha, mas não foi preciso. Eu já estava todo ensanguentado também; o cheiro era forte, de pólvora e entranhas. Quando as coisas se acalmaram, perguntei se ele mesmo tinha forças para segurar a pressão enquanto nós mudávamos de posição. Não consegui encontrar nada para colocar sob sua cabeça, então sentei com as costas apoiadas na prateleira e deitei a cabeça dele em meu colo. Ela estava pesada como a de um cadáver. Afastei esse pensamento o mais rápido possível.

A pior parte eram os sons externos. Os barulhos de tiros, os gritos, as ordens dadas por um megafone, saber que Stan continuava no meio daquilo tudo. E minha mãe. Pensava muito em minha mãe.

Nós fizemos isso. Todo o sangue derramado naquele dia teria sido pelo que nós fizemos.

Eu sabia que não era a melhor forma de pensar, mas minha cabeça latejava tanto que era difícil encontrar outra forma. Lágrimas rolavam pelas minhas bochechas e eu não podia tirar as mãos do ferimento de Christophe nem para secá-las.

Mas uma caiu bem na testa dele e isso fez com que aquelas órbitas castanho-esverdeadas rolassem para me encarar. Ele ergueu a mão trêmula para correr o polegar sobre a pele do meu rosto, secando minha bochecha. Os cantos dos meus lábios cresceram em um sorriso tímido.

-Você está com medo? – Ele me perguntou com aquela voz rouca e arrastada. Não me disse que estava tudo bem, não me fez promessas.

Afirmei com a cabeça. Porque estava apavorado.

-Eu também. – Christophe sussurrou depois de uma pausa longa em silêncio. Seus olhos também estavam cheios de água que rolaram quando ele fechou as pálpebras, balançando um pouco a cabeça. Fungou, desceu a mão pela lateral do meu pescoço e me fez um carinho sem pressa antes de abaixar o braço fraco. – Não era assim que eu queria ir.

-Cala a boca. Você não vai a lugar nenhum.

Ele não tentou rebater isso.

Ergui a camisa ensanguentada que usei para estancar o sangue dele e dei uma boa olhada na perfuração. Porra, estava feio. Mas tentei dizer a mim mesmo que ferimentos de bala nunca são bonitos. Disse a ele como gostaria de ter algo para limpar pelo menos em torno, mas quando tentei me erguer para procurar alguma coisa, ele segurou meu braço e pediu que eu ficasse ali. Receosamente, eu obedeci.

Não queria que ele se desgastasse, mas ao mesmo tempo, ficar ali sentado em silêncio – com os ouvidos cheios pela chacina da rua – estava me enlouquecendo. Não sei quanto tempo se passou nessa brincadeira, mas pareceu ser quase uma hora; uma hora em que Christophe ficava cada vez mais branco e respirava cada vez mais esquisito. Ele tinha calafrios agora. Estava gelado, apesar de todo o suor.

O barulho era a pior parte. Parecia que jamais terminaria. Cada grito desesperado me fazia pensar se eu conhecia aquela voz, mas parece que todas as pessoas gritam igual.

Apesar das expectativas, houve um momento em que o barulho cessou.

Eu sempre me considerei uma pessoa sã em momentos de insanidade. Foi um dos motivos pelos quais eu me uni à resistência pra começo de conversa, porque eu pensei que desse conta de qualquer fardo que precisasse carregar. Eu sempre pensei… Realmente pensei que conseguiria fazer isso. Pensei que sobreviveria. Mas sentado ali no depósito empoeirado, minhas mãos besuntadas de sangue fazendo pressão para impedir que a vida de Christophe lhe escapasse cada vez mais, eu percebi que não conseguia. Ele ficava mais pálido a cada segundo; o tempo escorria como areia pelos meus dedos, mas ao mesmo tempo esticava-se, como se eu tivesse passado minha vida inteira dentro daquele depósito, com o Toupeira sangrando em meu colo.

-Eu preciso… Eu preciso te tirar daqui. - Falei. Ouvir o desespero em sua própria voz é algo terrível. Não desejo a ninguém. Christophe não reagiu imediatamente. Deitado assim, de olhos fechados e com a pele tão branca, parecia morto. - Christophe. Eu… Eu acho que os tiros pararam. Você está me ouvindo?!

Ainda havia alguma força em sua mão; ele agarrou meu pulso de repente. Respirou fundo, o peito se elevando e depois descendo bem devagar.

-Kyle.

Eu odiei a maneira com que ele disse meu nome.

-Eu acho que estanquei o sangue. Se você ainda conseguir andar… - Comecei a me mover sob ele na tentativa de levantar. - Gregory disse que haveria um médico, não disse? Não disse?! Eu posso ir buscar ajuda.

-Não. - Ele disse bruscamente enquanto subia a mão pelo meu braço, cravando as unhas curtas na minha pele, todo o peso de seu corpo ainda repousado sobre as minhas coxas. - Por favor, não… Não vá a lugar nenhum. Só… Só fique aqui.

Eu nunca antes tinha ouvido as palavras “por favor” da boca dele.

-Eu não posso. Christophe, eu não posso não fazer nada. - Lágrimas já começaram a escorrer dos meus olhos e nariz, porque tudo parecia transbordar; eu não queria chorar na frente dele, não por isso, não agora. Não enquanto ele precisava de mim. Precisava que eu fosse mais forte do que eu era de verdade. Escorreguei a mão do abdômen ao peito dele, espalhando o sangue escuro, manchando o pouco de sua roupa que continuava limpo. - Se eu não fizer nada…

-Eu sei. Kyle… Você tem que me ouvir. - Ele soltou meu braço e levou a mão trêmula à minha bochecha. Essa mão estava suja pelo sangue dele também; tudo estava. - Eu sei que você não é bom em ouvir, mas precisa.

Assenti ansiosamente com a cabeça. Funguei e prendi a respiração para segurar o choro enquanto mergulhava naqueles olhos que não eram castanhos nem verdes. Não pareciam os olhos de uma pessoa prestes a morrer. Continuavam brilhantes como sempre foram. Com a voz fraca e rouca, ele sussurrou:

-Eu não vou sair vivo daqui.

-Christophe…

-Cale a boca um instante, cacete. - Ele disse com um sorriso doente no rosto, tentando mascarar uma dor insuportável. Eu não consegui sorrir, por mais que quisesse tentar para confortá-lo. Seu rosto se deformou em uma careta que transparecia a dor da dilaceração. A palidez era assustadora, como se ele não tivesse mais sangue no corpo. - Eles ainda estão lá fora. Os sapadores. Estão esperando os… Os ratos saírem da toca. Você tem que ser paciente. E quando sair, vá pelo esgoto. Entre no primeiro bueiro que encontrar, tem um no começo da rua. Eles nunca entram no esgoto. O seu senso de direção é uma merda, eu sei, mas é mais seguro.

Agora sim eu soltei um riso baixo e úmido, mas isso só instigava ainda mais o choro. Ele apertou um pouco a minha bochecha em sua mão mole e fraca, roçando o polegar perto da minha boca. Sua voz era falha, sua respiração irregular. Seus olhos pareciam querer descanso. Queriam se fechar.

-Você vai viver. - Ele me disse. - Prometa pra mim que vai viver. Vai ficar tudo bem, vá pelo norte. Você sabe onde é o norte, não sabe?

Assenti com a cabeça várias vezes, embora não estivesse nem pensando sobre a pergunta dele. Eu diria sim para qualquer coisa que o tranquilizasse. Christophe fechou os olhos, satisfeito. Sua mão deixou o meu rosto. A perda do toque de sua pele na minha fez meu coração afundar.

-Encontre o Gregory. Ele vai saber encontrar o meu corpo.

-Eu não vou te deixar aqui. Você sabe disso, não sabe?


 

-Kyle… Por favor.

De novo ele com essa história de “por favor”. Eu não queria estar discutindo com ele, fazendo com que desperdiçasse energia; a parte racional do meu cérebro entendia isso. Mas não havia nada de racional no que ele estava me pedindo.

Ele não podia me pedir pra viver com isso.

Eu sei o quanto isso soa egoísta, mas dentro do meu peito fervia raiva dele. Por desistir assim, por não ser o covarde que corre da luta, por estar morrendo. Por desaparecer do mundo antes que nós vivêssemos o que tínhamos para viver.

Mais raiva ainda eu senti de mim mesmo por não tê-lo beijado na tarde de ontem, no galpão, por ter fugido quando ele me disse a verdade; que me queria tanto quanto eu o queria. Não era coisa da minha cabeça, não era só admiração ideológica. Eu me apaixonei por esse homem. E me odiava por sentir isso, quase tanto quanto me odiava por não ter feito nada a respeito.

-Eu sempre soube que eu morreria assim. Que a causa me mataria. - Christophe murmurou de olhos fechados. - Mas eu sempre achei que morreria sozinho. - Então, ele fez uma pausa. Foi longa o suficiente para que eu quisesse verificar se ele ainda estava respirando, mesmo que seu peito continuasse a subir e descer. De repente, seus olhos se abriram, mais vivos do que nunca. - Eu estou feliz que você esteja aqui.

Não havia mais nada que eu pudesse dizer diante disso. Pouco a pouco, as batidas do meu coração desaceleraram. Senti-me lavado por uma sensação amarga e tranquila. Seria isso aceitação? Eu comecei a entender. Christophe morreria naquele dia. Seria violento demais arrastá-lo dali à força. Eu não tinha nem porte físico pra tal coisa. Mais do que isso, eu não tinha estrutura emocional para desrespeitar toda a fragilidade visceral que ele estava me expondo. Não era mais o Toupeira que estava nos meus braços, não era mais aquele homem de ferro que construiu um muro ao seu redor, que era invencível. Quem estava em meus braços era Christophe DeLorne, um homem ferido e traumatizado. Eu me perguntava quantas pessoas teriam conhecido Christophe de verdade, para além da couraça que ele vestia.

E por mais de meia hora nós ficamos em silêncio. Sua respiração exasperada perdia a força e ele ficava cada vez mais grogue. E eu só fiquei sentado ali, assistindo à vida deixar seu corpo, com meus dedos firmemente entrelaçados nos seus. Sentindo seu calor.

-Eu devia… Eu devia ter dito a verdade ao Stan. - As palavras deixaram minha boca como se tivessem vontade própria. Eu não pensava sobre o que dizia. Você diz muitas coisas atravessadas quando pensa que alguém que você ama vai morrer. - Eu devia ter terminado tudo com ele e… A gente tinha tanta coisa pra viver, Christophe. - Com a mão livre, eu acariciava os cabelos dele para trás. Meu polegar passeava pela sua testa coberta de suor. Ele tremia. Nem parecia me escutar, mas não importava. Eu precisava tirar aquelas coisas do meu peito enquanto havia tempo. - Não é justo. Nada disso é justo. Você não pode mudar a minha vida desse jeito e… E sumir.

Então, ele sorriu. Foi um sorriso que eu nunca vi antes em seu rosto, tão gentil, tão contente. Não havia mais dor no seu semblante. Talvez ele já estivesse perdendo os sentidos, anestesiado.

Durou pouquíssimo tempo. Logo, ele começou a tossir sangue e apertou minha mão com força. Com a tosse, ele emendou uma gargalhada insana, sem vitalidade nenhuma, e esbravejou para o teto:

-Vem me buscar de uma vez, seu filho da puta! Eu estou pronto, que merda você está esperando?!

Ainda levou algum tempo para que eu entendesse que ele falava com Deus. Já naquele tempo, poucas pessoas conversavam com Ele. Christophe respirava pela boca como se beirasse um ataque de ansiedade. Então, voltou o olhar para mim. Seus olhos se enchiam de água. Suas pupilas estavam dilatadas e a íris tinha um brilho agressivo que falava alto como sua voz já não mais podia.

-Eu fiz muitas coisas ruins na minha vida, Kyle.

-Shh. Você é um homem bom. - Sussurrei com a mesma voz que minha mãe usava para botar Ike na cama quando ele era uma criança.

-Eu fiz muitas coisas… Horríveis… - Foi a última coisa que ele disse com um sorriso resignado antes de apagar.

Meu coração parou por um segundo. Sua mão enroscada na minha ainda tinha um pouco de força. Eu não quis soltá-la. Agarrei seu pulso com a mão esquerda, trêmula, e encontrei uma pulsação fraca. Ele continuava vivo.

-Christophe… - Murmurei baixinho para mim mesmo, aliviado.

Ainda levei a mão para sentir o ar quente deixando suas narinas. Deus ainda não o queria, e fiquei grato por isso. Encostei a cabeça contra a parede, largando o peso, o queixo voltado para cima. Fechei meus olhos. Permiti que meu corpo sucumbisse à exaustão.

Não sei quanto tempo se passou. Nem sei se eu cheguei a ficar inconsciente. Só voltei a abrir os olhos quando o silêncio foi violado por um estrondo na porta. O impacto do outro lado foi tão forte que a poeira se ergueu do chão. Eu não tive tempo para pensar em como esconder o corpo de Christophe antes que a porta fosse arrombada. E era isso. Eu nem poderia cumprir com o que prometi a ele. Os sapadores entrariam chutando a porta, o cano da arma prontinho pra entrar na minha boca. E ficariam só os meus miolos espalhados pela parede, pedaços de cérebro e de entranhas que ninguém jamais limparia. Era sempre assim. Não tinha porque ser diferente comigo.

Mas foi.

Eu já não fui ensinado a me voltar para Deus em momentos de desespero. Não era tanto que a humanidade não acreditasse em Sua existência, mas sim que, se um dia Deus olhou pelas nossas vidas, há muito ele já nos havia abandonado. Esse foi o primeiro momento da minha vida em que Deus se manifestou. E não foi o último.

Quem adentrou o depósito, em vez de um Homem de Branco com sua bota branca imaculada e a roupa imunda de sangue, foi a bota imunda de Gregory fazendo as tábuas rangerem sob seu peso. Estava completamente descabelado, as roupas rasgadas e ensanguentadas, mas não parecia ter nenhum ferimento próprio. O vermelho de seu casaco não deixava as manchas de sangue escuro tão evidentes assim, mas a camisa branca por baixo delatava um confronto diferente.

Ele tinha uma espingarda apoiada no ombro. Uma macha de respingos de sangue vivo no pescoço e na bochecha.

-Kyle. - Ele disse em um tom preocupado, mas seu cérebro ainda não processara quem eu tinha em meus braços. Porque Gregory não estava habituado a ver Christophe caído. Ele chegou a olhar em torno, procurando um Toupeira forte, sadio e de pé. Parou de respirar quando se deu conta de que o Toupeira era o farrapo de gente no meu colo. - Não. Não, não, não.

Ele correu na nossa direção. Largou a espingarda no chão de forma barulhenta assim que se ajoelhou, puxando Christophe com cuidado nas mãos elegantes, segurando o rosto inconsciente dele. Deu dois tapas em sua bochecha, de leve, mas sua voz era descontrolada:

-Toupeira. Toupeira, seu desgraçado, fale comigo.

Foi um alívio quando Gregory o puxou dos meus braços. Eu não queria admitir, mas foi. Eu mal podia sentir minhas pernas. Gregory sempre representou uma força que eu invejava, uma compostura que eu queria ter, uma paixão pela mudança que eu admirava. Tê-lo ali, tão próximo de mim, dividindo uma dor que até então era toda minha, foi como respirar de novo. Cobri meu rosto com as duas mãos e comecei a chorar. Não sabia porquê. Não era apenas alívio ou pavor. Agora, eu podia desabar.

-Ele está morto?! - Gregory perguntou, tentando sentir a pulsação no pescoço dele. - Kyle.

-Não… Não, eu acho que não. - Respondi com uma voz espremida, sem ar.

-Ei. - Ele agarrou minhas mãos para expôr meu rosto vermelho, inchado, molhado. Deu uma boa olhada em mim e perguntou firmemente. - Você está ferido?

Eu apenas neguei com a cabeça.

-Ótimo. Me ajude a carregá-lo. 



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