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História Liberté - O Renascer


Escrita por: caulaty

Capítulo 19 - O Renascer


 11 de novembro de 3644

 

Os eventos subsequentes foram uma grande mancha na minha memória durante muito tempo. A minha consciência ligava e desligava, talvez como mecanismo de defesa; talvez por exaustão. Gregory e eu arrastamos o Toupeira apagado até uma van. A rua estava vazia. Cartman estava no volante. Fiquei aliviado por saber que ele estava bem. Virou para nos olhar, nem sequer disfarçando o terror em seu rosto. Mas logo o engoliu, porque Cartman era esse tipo de pessoa que se permite sentir algo durante cinco segundos e, então, faz o que tem que ser feito.

Assim que entrei no carro, ele me perguntou:

-Kenny não estava com vocês?

Isso me fez lembrar de todas as outras pessoas das quais, até então, eu não tive tempo de me lembrar. Kenny estava desaparecido? Não. Eu não podia lidar com mais perdas naquele dia. Não assim, não depois de ver Tweek sendo pisoteado por aquela multidão desesperada de gente estúpida.

Havia só uma pessoa presa na minha mente o tempo inteiro.

-Eles estavam sozinhos. - Gregory respondeu por mim. Sentou atrás comigo, não querendo tirar as mãos de Christophe nem por um segundo. A cabeça de Christophe continuava deitada no meu colo, enquanto Gregory tirava a camisa (irreconhecível, encharcada de sangue) da ferida do Toupeira para ver o quão grave era. - Vamos, Cartman, dirija.

-E o Stan? - Perguntei atravessado, minhas mãos tremendo sem parar.

-Ele está bem. Vai ficar feliz de ver você. - Gregory me disse com a insinuação de um sorriso forçado para tentar me acalmar.

-Ele está morto? - Cartman retrucou sem se mover, encarando Christophe pelo retrovisor com uma careta.

-Não, ele não está morto! - Gregory gritou. - Dirija antes que eu te dê um tiro!

Agora, ele tinha a espingarda pendurada nas costas por uma faixa de couro. Eu não achei que ele estivesse exagerando, pelo fogo que havia em seus olhos. Cartman deve ter pensando a mesma coisa. Mesmo assim, sendo a mula que era, respondeu:

-Kenny ainda não voltou. Ele ainda pode estar sangrando num buraco por aí.

Parecia que meu coração sangrava. A discussão entre eles me soava aos ouvidos como os tiros e gritos de poucas horas antes. Havia um zumbido dentro da minha cabeça.

-Assim como ele pode estar sadio e encontrando uma forma de chegar na floresta. Pode estar na metade do caminho, pode até já ter chegado. Eu não sei. É longe, Cartman, nem todo mundo vai chegar na mesma hora. Eu não sei o que houve com o Kenny, mas eu sei o que houve com o Toupeira. E se ele morrer porque você não fez o seu trabalho, eu não sei o que sou capaz de fazer com você.

-Você está machucado, Broflovski? - Cartman perguntou enquanto ligava o carro. O que me surpreendeu; nunca vi Cartman recuar de uma briga.

-Não… Eu estou bem. - Foi a última coisa que murmurei antes de fechar os olhos. E durante sabe-se lá quanto tempo, dirigimos em silêncio. Eu estava com adrenalina demais no corpo pra dormir, mas tive lapsos de consciência.

Eu não estava bem.

Quando me orientei no espaço novamente, já estávamos afastados da cidade. Tínhamos um plano prévio de nos encontrar em uma casa isolada na floresta após o embate para nos reorganizar e cuidar dos ferimentos, se fosse necessário. Gregory não nos contou de quem era a casa, ou como encontrara um médico disposto a ajudar clandestinos, mas todos nós já confiávamos cegamente nele.

-Como você sabia onde nós estávamos? - Perguntei de repente. Às vezes eu tinha a impressão de que Gregory sabia tudo.

Ele estava distraído estudando o rosto do Toupeira. Voltou seus olhos azuis para mim e tentou oferecer uma expressão de conforto.

-Era lá que o Toupeira dormia. Bem, ele tem algumas tocas, tive que procurar em outros lugares antes. Eu sei que ele não se esconde em qualquer lugar. Não tinha uma mochila dele cheia de apetrechos?

Um sorriso brotou nos meus lábios ao lembrar.

-Tinha… - Acariciei os cabelos de Christophe para trás. Seu rosto parecia tão calmo agora. - Ele é muito preparado.

-Ele é. - Gregory concordou com melancolia.

A paisagem foi se tornando cada vez mais rural. Passamos por plantações de milho e trigo, gados, pequenas e grandes fazendas, o verde e o bege se misturando. As árvores não davam fruto naquela época, preparavam-se para o inverno rigoroso. O frio era intenso, agora eu podia sentir. Também recupere a sensação nos dedos; sensação esta que eu nem sabia que tinha perdido com o choque. Gregory cobriu Christophe com seu casaco.

Finalmente chegamos ao destino. Era uma pequena viagem de vinte minutos a meia hora entre a cidade e a casa no campo, menos escondida do que eu esperava. As árvores em torno da casa já estavam nuas, com uma ou outra folhinha teimosa que faltava cair. Era uma casa grande de madeira que nunca havia sido pintada, embora parecesse ser bastante antiga. Tinha dois andares e um sótão com uma pequena janela redonda. A varanda era grande.

Só de ouvir o som do carro estacionando, cabeças surgiram nas janelas, rostos afoitos e preocupados. A porta também se abriu. Gregory e Cartman carregavam Christophe para dentro, cada um segurando em uma extremidade do corpo. Ele continuava apagado. Parecia que carregavam um cadáver.

Sem perceber, fiquei parado no meio do jardim ressecado, os braços caídos nas laterais do corpo, sem conseguir fazer com que minhas pernas funcionassem.

-Kyle! - Ouvi a voz de Stan, que empurrou Clyde de frente da porta e desceu as escadas velhas da varanda. Meu coração quase saiu pela boca. Ele conseguia correr, isso tinha que ser um bom sinal. Nem tive tempo de escanea-lo procurando por ferimentos antes de sentir seu corpo quente colidindo contra o meu.

Ele vestia uma roupa diferente, um moletom cinza e uma calça preta; não havia manchas de sangue, rasgos ou sinais de confronto. Parecia até que ele já tinha se banhado. Eu senti o cheiro da sua pele invadindo as minhas entranhas como o acalento mais delicioso. Ele estava bem.

Stan tinha um abraço quente, forte, vital. Tinha cheiro de vida, não de sangue. Quase me tirou um pouco do chão e apertou minhas costelas sem querer; foi isso que me fez chorar. Ele acariciou as minhas costas e me acolheu, permitindo que eu desaparecesse em seus braços. Escondi o rosto em seu ombro e molhei todo o tecido macio com lágrimas, ranho e um bocado de sangue.

-Você está bem? - Ele perguntou tão gentil depois de algum tempo, afastando apenas o suficiente para me olhar. Me segurou bem firme pelos braços e procurou algum ferimento, aterrorizado com todo o sangue. Mas o sangue não me pertencia.

-Eu… Só me arranhei. Está tudo bem.

-Tem certeza? Às vezes pelo choque você não sente.

-Eu tenho certeza. - Respondi com a voz fraca. Era difícil olhar para ele, mas ao mesmo tempo, era tudo que eu queria fazer. - Stan…

-Eu te perdi. - Sua mão quente envolveu minha bochecha manchada pelo sangue de Christophe, secando as minhas lágrimas. - Você estava ali num segundo, e depois no outro…

-Stan. - Interrompi com mais agressividade do que deveria, tentando vomitar as palavras que me afogavam a garganta. - O Tweek…

Mas ele me poupou de ter que dizer essa atrocidade em voz alta. Assentiu com a cabeça e encostou a testa na minha, descendo a mão pela lateral do meu pescoço. Falou bem baixinho:

-Eu sei, Kyle. Eu sei…

Então, ele fez uma cara de quem precisava me contar alguma coisa importante. Uma cara com a qual eu deveria me acostumar, porque esse tipo de expressão faria parte do meu cotidiano daqui pra frente. Eu ainda não tinha total dimensão disso. Não conseguia pesar nada com precisão, já seria uma vitória se eu conseguisse caminhar até a casa, subir os degraus da varanda e entrar. Minhas pernas pareciam feitas de gelatina.

-Quem? - Perguntei, desenroscando-me dele. Podia ouvir o medo em minha própria voz.

Stan engoliu seco e desviou o olhar para a casa, segurando meu braço esquerdo com força.

-Butters. Ele… Ele continua vivo, mas não sabemos por quanto tempo. Token não acha que ele vá sobreviver até amanhã.

A menção desse nome me fez congelar. A confusão deve ter ficado bem evidente, porque Stan gaguejou sem saber ao certo como continuar. Alguma coisa devia ter acontecido dentro daquela casa durante a tarde, alguma coisa que eu não podia entender porque não estava lá. Franzi a testa e dei um passo cambaleando para trás.

Dizem que a primeira fase do luto é a negação, então talvez minhas atitudes subsequentes tenham puramente a ver com isso. Mas de qualquer forma, foi o que aconteceu. Quer eu me orgulhe ou não.

-Token? O que ele faz aqui?!

Token Black foi nosso amigo de infância. Muito mais amigo de Craig e Clyde do que propriamente nosso, mas mesmo assim. Riqueza, status social, manutenção de poder, política, essas coisas não importam para as crianças. Houve um afastamento natural entre Token e os outros quando cada um de nós foi obrigado a cumprir com o papel de utilidade social que nos foi designado. Token era filho de gente rica, tanto seu pai quanto sua mãe eram advogados defensores das figuras políticas mais podres do Colorado. Ele ainda estudava conosco.

-Ele é o médico. - Stan me informou com cautela, erguendo as mãos como quem pede calma.

-Médico?! De que merda você tá falando, ele é veterinário! - Gritei.

De repente, como que por milagre, minhas pernas ganharam força para me carregar até dentro daquela casa. Cheguei a correr sobre as folhas secas espalhadas por todo aquele jardim, bem como alguns galhos finos que quebrei com o meu peso. Não era um jardim bem cuidado, pode-se imaginar. Já estava anoitecendo e parecia que uma chuva se preparava para cair dos céus.

A sala era mais espaçosa do que eu esperava. Diversos rostos se viraram para me encarar, olhos arregalados e lábios entreabertos, como se a minha imagem os chocasse. Eu não sabia exatamente qual era a minha aparência, mas não devia ser muito asseada ou saudável. De qualquer forma, foi bom ver alguns rostos conhecidos. Não havia muitos móveis, aquela obviamente não era uma sala planejada para habitação; ninguém devia morar lá há muito tempo. As cortinas floridas horrorosas estavam fechadas, havia um sofá verde onde Bebe e Wendy estavam sentadas muito próximas, e Cartman na ponta oposta, ocupando o espaço de duas pessoas. Não consegui evitar que meus olhos buscassem por Kenny, mas ele não estava em lugar nenhum. Havia, ainda, alguns caixotes onde outras pessoas se sentavam; Clyde, por exemplo, com as mãos cobrindo a face e chorando copiosamente. Craig, como de costume, estava logo ao seu lado. Mas havia algo de diferente nele. Parecia abatido, com olheiras profundas, encarando o chão como se o mundo fosse só um zumbido incômodo do qual ele queria se livrar. Permaneceu ao lado de Clyde apesar disso.

De pé, mais afastado do grupo, estava Scott Malkinson. Era um rapaz que eu não conhecia muito bem, que era magro e frágil e sardento. Tinha um cabelo fraco e olhos fundos de pavor. Pelo menos ele estava vivo. Heidi e Jason se confortavam em algum canto e havia vozes vindo do que parecia ser a cozinha. Havia também um garoto loiro ridiculamente vestido que eu não fazia ideia de quem era, também deslocado. Ele não era a única pessoa que eu não conhecia. Um homem extremamente alto, com o porte de um armário, um cabelo loiro espetado e o braço cheio de tatuagens, encostado na parede de braços cruzados conversava com uma mulher negra tão bonita. Ela tinha os cabelos presos para trás e, mesmo sendo relativamente menor do que ele, parecia estar lhe dando ordens. Não pude ouvir o que eles conversavam, mas pareciam agitados.

No chão da sala estava um abajur sem a cúpula, mas a lâmpada ainda não estava acesa. Além disso, havia algumas velas espalhadas. Eu não tive tempo pra perceber muito mais do que isso enquanto caminhava em direção ao quarto onde Gregory permanecia parado em frente à porta aberta. Trotei até ele, ouvindo uma ou outra voz chamando o meu nome. Quando Gregory se virou para mim, parecia ter envelhecido cinquenta anos desde o dia em que nos conhecemos.

-Você vai deixar um veterinário tirar a bala de dentro dele?! - Foi a primeira coisa que saiu da minha boca. Era como vômito. Eu não podia segurar.

Eu enxerguei por cima de seu ombro: era um quarto pequeno e escuro com nada além de uma cama na qual Christophe já repousava, agora parecendo semi-acordado. Token virou o rosto para entender qual era a comoção na porta; o que quer que ele estivesse vestindo antes, agora era totalmente manchado por um vermelho escuro. Ele usava uma máscara e luvas de látex; parecia um desconhecido. Eu o reconheci pelos olhos reluzentes, a íris bem preta se confundindo com a pupila. Eu não podia ver muita coisa; o corpo esbelto de Gregory não me permitia. Mas enxerguei o suficiente para perceber a bacia cheia de apetrechos pontiagudos.

-Você acha que é isso que eu queria?! - Ele latiu em resposta. - Isso não é a primeira vez dele trabalhando com gente, Kyle. Ele não é só o melhor que nós temos… Ele é o único que nós temos.

-Você disse que teria um médico aqui!

-Vá se lavar, Kyle. - Ele entrou no quarto e puxou a porta para fechá-la, deixando apenas uma brecha grande o bastante para seu rosto. - Você não pode estar aqui dentro pra isso.

Stan já estava logo atrás de mim, suas mãos gentis e quentes me tocando. Gregory bateu a porta bem perto do meu rosto; não era sua intenção ser agressivo, mas ele estava apavorado. Eu podia entender isso.

Podia entender muito bem.

Como eu já disse, tive lapsos de consciência durante essas horas todas. Lembro-me muito vagamente de ter uma conversa com Stan sobre como eu não queria me lavar, não queria comer, queria apenas esperar. Disso eu me lembro muito bem, da vontade de esperar. Era tudo o que eu queria; sentar no chão e ser deixado em paz. Stan disse várias coisas que eu não era capaz de entender. Me explicou que Butters levou sete tiros e estava confortável em um dos quartos lá do andar de cima, que estavam revezando em turnos para ficar ao lado dele no que pareciam ser suas últimas horas de vida. Disse que Token fez tudo o que podia, mas que ele não tinha os recursos necessários e Butters certamente precisaria de uma cirurgia para sobreviver àquilo, e mesmo assim não havia garantia alguma. E se o levássemos a um hospital, o que fariam com ele seria muito, muito pior do que a morte.

Isso era verdade. Foi outra coisa que a resistência me ensinou: a morte normalmente era a opção mais bondosa.

Quando Stan percebeu que eu não estava dando conta de ouvir, apenas me deu um aperto no ombro e se levantou. Não se afastou muito de mim, apenas o suficiente para sentir que estava me dando espaço. Mas eu não me sentia assim. Não havia espaço naquela sala, era sufocante. O silêncio, a escuridão, tudo era sufocante. Eu abracei meus próprios joelhos e tentei não pensar. Sentia calor, muito calor, mas tremia.

Poucos minutos depois, Christophe começou a gritar.

Eu nunca o tinha ouvido gritar assim. E para ser honesto, até aquele ponto da vida, eu nunca tinha ouvido ninguém gritar assim. Os gritos da rua mais cedo eram uma massa de estrondos misturados com sons de tiros e pavor, mas isso… Isso era tão próximo, tão real. Era o grito de alguém que não só levou um tiro, mas que agora tem uma mão dentro do seu corpo, dentro dessa área dilacerada, sem qualquer tipo de anestesia.

Apertei os olhos. Minhas mãos estavam unidas bem próximas ao meu rosto, meus cotovelos apoiados nas coxas. Lágrimas quentes escorriam pelas minhas bochechas toda vez que eu piscava; já não era mais um choro copioso de desespero, mas sim de pura e genuína dor por saber que alguém tão importante pra mim sentia tanta dor e não havia nada que eu pudesse fazer. Respirar já parecia uma tarefa impossível. Minhas pálpebras não queriam se abrir; e pela forma como me sentia, tive certeza de que elas nunca mais iriam. Abaixei a cabeça até que meu rosto tocasse meus punhos entrelaçados; olhando de fora, talvez parecesse que eu estava rezando. Mas não estava.

E o Toupeira não parava de gritar.

Era como se o estivessem torturando lá dentro.

Isso se arrastou por horas. O que consigo me lembrar dessas horas são apenas alguns momentos específicos relacionados às pessoas que se aproximavam de mim.

As primeiras foram Wendy e Bebe. Os cabelos loiros de Bebe, crespos e selvagens, pareciam mais armados do que nunca. Ela tinha olheiras profundas, mas estava limpa e carregava nos olhos um sorriso reconfortante, maternal. Usava um arco preto que se perdia no meio daquela cabeleira toda. Trazia, também, um sanduíche em um prato de plástico vermelho. Wendy se ajoelhou ao meu lado e pôs a mão no meu ombro.

-Kyle. - Ela chamou com uma voz que fez carinho no meu rosto, tão gentil. Eu a olhei, e só então, ela também sorriu. Não consegui retribuir. - É melhor você comer alguma coisa.

Recusei com a cabeça; minhas pupilas se voltaram ao chão de madeira, encarando o tapete verde musgo horroroso que enfeitava a sala. Já havia escurecido, a lâmpada estava ligada e lançava uma luz pobre pelo ambiente. Abracei minhas próprias pernas e me encolhi um pouco mais. Bebe surgiu na minha frente, colocando o prato no chão.

-Você não quer ver o Butters? - Wendy perguntou. - Ele está lá em cima.

-Depois… Depois eu vou. - Murmurei em resposta.

Não me ocorreu que poderia não haver um depois.

-Querido. - Bebe disse, colocando a mão pálida sobre o meu joelho e dando um apertãozinho. - Você ficar aqui se maltratando não vai ajudar ninguém. Não quer mesmo o sanduíche? Fui eu que fiz.

Um grunhido fraco escapou dos meus lábios como uma resposta, mas era incompreensível, então neguei com a cabeça novamente. Meus olhos continuavam pesados.

-Tudo bem. Nós vamos deixar isso aqui caso você queira mais tarde, ok? - Wendy disse, aproximando-se para me dar um beijo no topo da cabeça.

-Obrigado.

-E não se preocupe. - Bebe continuou, alisando um pouco a minha perna. - Eu vi como seu homem matou aquele sapador que me atacou. Ele é muito forte, vai sobreviver.

-Eles não são… - Wendy respondeu para que eu não precisasse dizer nada (embora eu nem pretendesse). Ela ainda lançou um olhar para Stan, que estava logo atrás de nós, de pé contra a parede. Eu não me movi.

-Ah. - Bebe murmurou, mas por mais que o sorriso oscilasse, nunca chegou a deixar seus lábios completamente. Ela assentiu com a cabeça como se entendesse. Tinha dentes tão bonitos. - Tudo bem então. Desculpe. O seu amigo vai ficar bem, eles sabem o que estão fazendo.

Quis soltar um riso irônico com isso, mas não tive forças. As duas trocaram um olhar preocupado antes de me deixar em paz.

Em algum ponto, minha cabeça começou a pesar tanto que eu me deitei no chão.

Além dos gritos de Christophe, o outro som que preenchia a sala era o choro profundo de Clyde, que ainda não havia parado. Ele subiu um pouco para ficar com Butters, mas logo voltou. Craig não havia saído do lugar. Os dois estavam ao lado um do outro, exatamente como antes. Craig encarando o nada, Clyde com o rosto afundado nas mãos, com o choro semelhante ao de uma criança. Ele sempre foi isso; sempre foi uma criança grande. Eu os observei durante algum tempo, fechando e abrindo os olhos de vez em quando.

De repente, Craig se levantou de forma brusca.

-Cale a boca! - Berrou para Clyde. - Cala a merda da sua boca, você quer me fazer surtar?! Engole essa porra desse choro, seu fraco! Cala a boca! Eu não aguento mais te ouvir!

Stan e Wendy correram para os dois. Stan puxou Craig para trás, apertando-o em seus braços antes que ele avançasse em Clyde, que se encolhia como um bicho acuado. Wendy tomou Clyde em seus braços e ele se desmanchou no abraço dela, querendo desaparecer. Apertava o pulso de Wendy com tanta força que ela ficaria marcada. Stan puxou Craig para fora da casa.

Era barulho demais. Meus tímpanos não aguentavam. Eu precisava de silêncio.

Alguns minutos depois, Eric Cartman se sentou ao meu lado. Eu continuava deitado. Ele tinha uma garrafa de bebida barata na mão; o cheiro de álcool era medonho. Soluçou uma vez. Durante algum tempo, não disse nada. Me fez acreditar que ele realmente só queria ficar na companhia de alguém em silêncio.

-Kenny já estava na van. - Cartman disse de repente. Levei longos segundos para virar meu rosto para ele. Esse homem parecia tão alto agora.

Soltou uma risada. Não chegou a ser alta, escandalosa ou inconveniente, como era costume de Cartman fazer coisas do gênero. Ele aproximou a garrafa dos lábios, balançando a cabeça negativamente. Embora sua boca ainda sorrisse, seus olhos estavam cheios de amargura, de dor.

-Ele já estava na van. - Repetiu.

Mas não respondi. Voltei a olhar para frente, piscando devagar, apoiando minha cabeça em meu próprio braço. Estava apático demais para reagir. Para pensar em Kenny, no seu sorriso, na sua coragem. Ou para pensar em Butters, no seu coração gigantesco, na sua pureza. Ou para pensar em Christophe.

Eu não tinha mais lágrimas a oferecer naquele dia.

-Eu consegui salvá-lo. Fiz exatamente o que eu tinha que fazer. - Cartman falava, olhando para os próprios pés, entornando a garrafa nos lábios de vez em quando. - E ainda sim aquele imbecil pulou da van e… Sabe por quê? Chuta. - Ele esperou que eu respondesse, mas não teve sucesso. O que fiz foi voltar meu olhar para ele. E Cartman secava as lágrimas dos olhos discretamente. - Ele precisava encontrar vocês. Você e o Stan. Aquele idiota… Como pode ser tão burro? Ele morreu pra salvar vocês e nem conseguiu encontrá-los. Agora vocês dois estão aqui e ele não.

Meu estômago revirava mais a cada palavra que deixava a boca dele. Me sentei de repente, achando que gorfaria se continuasse naquela posição. Minha cabeça latejava; atrás dos meus olhos, a dor era ainda mais aguda.

-Você está tentando fazer com que eu me sinta culpado? - Perguntei, cuspindo a minha raiva nele.

Foi a vez de Cartman de demorar para responder. Ele passou a língua pelo lábio inferior, não olhando diretamente para mim. Pensativo. Deu mais um gole demorado na garrafa verde de vidro e depois a deixou bem próxima de mim, batendo-a no chão.

-Culpado? Não. Só estava pensando se algum de vocês três pularia de uma van por mim. - E com isso, Cartman se reergueu do chão. Apontou para a garrafa e me deu um sorriso amargo. - Beba. Você vai precisar. Pelo jeito da coisa, seu amantezinho não sai vivo daquele quarto.

Se ainda me restasse alguma força nos braços, eu teria atirado essa garrafa na cabeça dele. Mas ao mesmo tempo, não tive vontade. Porque eu acreditava no que ele estava me dizendo. Talvez essa fosse a maneira doentia que Cartman encontrou de me preparar para o pior.

Assim que Stan entrou em casa novamente e viu Cartman se afastando de mim, ele se aproximou trotando.

-O que esse filho da puta te disse?

Fiz que não com a cabeça, cobrindo meu rosto com as mãos, esfregando meus olhos e correndo as palmas pelos meus cabelos. Achei melhor não contar a ele sobre o motivo pelo qual Kenny deixou a segurança do carro. Ele não precisava desse peso.

-Nada. Ele está preocupado com o Kenny.

Os olhos de Stan pareceram incrivelmente tristes de repente. Ele tentou não transparecer, mas era muito fácil enxergar através dele. Limpou a garganta e olhou em volta antes de se sentar ao meu lado, afastando a garrafa que Cartman deixou para trás.

-Escuta… - Ele sussurrava para falar comigo, mas mantinha o rosto perto o bastante. A essa altura, Christophe não gritava o tempo inteiro, mas o silêncio nunca durava. Podíamos ouvir algumas palavras isoladas vindas de dentro do quarto, coisas como “não, não” e “eu não aguento”, dentre outros termos em francês. Isso sempre gerava um mal estar e um silêncio medonho na sala. Era muito difícil desviar a atenção daquilo. Tentei me focar em Stan o máximo que pude. - Você não quer mesmo tomar um banho? Gregory arrumou até roupas limpas. Acho que nós não vamos poder voltar pra casa tão cedo.

-Eu estou bem. - Menti.

-Não está. Você… - Ele interrompeu o que quer que estivesse prestes a dizer porque o grito que veio do quarto foi esganiçado demais para ignorar. Eu me encolhi mais, querendo cobrir a cabeça com as mãos, mas Stan pegou no meu braço. Eu sentia como ele me olhava, como me observou a noite inteira. - Você não quer conversar sobre o que aconteceu lá?

Sobre como o Christophe levou o tiro, sobre porque eu estava coberto de sangue, era isso que ele queria dizer. E eu gostaria de poder dar a ele uma resposta melhor, mais digna, alguma coisa além do balançar de cabeça medíocre que eu ofereci a todo mundo, mas me faltava força.

Mas ele continuou ali, tão próximo, me encarando com aqueles olhos azuis de cachorro, cheios de amor. E eu o encarei de volta durante muito tempo. Por fim, estendi a minha mão ferida para que ele a apertasse.

E quanto mais Christophe gritava, mesmo que contra toda a minha vontade, mais lágrimas se formavam nos meus olhos. Eu tentei não derramá-las, mas era tudo em vão a esse ponto. Eu jurava que não tinha mais lágrima alguma pra chorar, mas aparentemente… Me enganei.

-Kyle. - Stan disse, me dando um beijo curto no ombro, a mão firmemente entrelaçada na minha. - O Toupeira é… Ele é um soldado. Ele é feito de ferro, é o filho da puta mais forte daqui. Se alguém vai sair disso vivo, é ele. Eu sei que parece ruim, mas… É bom que ele esteja com dor agora. Quer dizer que ele está vivo.

Eu nem posso imaginar o quão difícil era pra ele me dizer aquelas coisas. Porque tenho quase certeza de que, em algum ponto dos últimos meses, Stan desejou que alguma coisa do gênero acontecesse com ele. Não de verdade. Não, é claro que não. Era isso que eu podia ver em seu rosto; ele podia detestar o Toupeira com todas as forças, mas era incapaz de desejar mal de verdade a outro ser humano. E agora ele estava ali, segurando a minha mão, me confortando pela possível morte da pessoa que, de alguma forma, me arrancou dele. Foi assim que eu soube. Talvez não em um nível real, mas eu soube: eu nunca seria capaz de deixar Stan. Ele era bom demais. Era impossível deixar de amar uma pessoa como ele.

Mas ali, naquele momento, eu nem cheguei a pensar sobre nada disso. Foi só uma sensação.

Antes que eu precisasse responder, alguém abriu a porta e Stan soltou minha mão. Se levantou de imediato, num impulso quase de desespero. Ficou parado no mesmo lugar durante não mais de um segundo para se certificar de que seus olhos não o estavam enganando.

E Stan correu em direção à porta. Finalmente virei para saber o que é que ele estava vendo e foi a primeira vez, essa noite inteira, que minha expressão deixou de ser apática. Cobri minha boca com as duas mãos diante do rosto sorridente de Kenny quando Stan colidiu o corpo contra o seu e os dois se abraçaram com o aperto de quem pensou que nunca mais veria o outro. Houve uma comoção geral na sala; Wendy começou a chorar, algo tão difícil de se ver. Procurei Cartman com os olhos, mas ele devia ter subido para ficar com o Butters.

Quando Kenny e Stan finalmente se soltaram, eu pude enxergá-lo direito. Tentei ficar de pé com dificuldade enquanto ele andava na minha direção, agora sem propriamente sorrir, com os olhos pesados de preocupação. Não cheguei a me levantar completamente; meu corpo vacilou pela tontura, falta de alimento ou de sono, o que quer que fosse. Mas Kenny me segurou com força, e quando não conseguiu me puxar para cima, se ajoelhou comigo sem soltar meu tronco, o rosto enterrado em meu ombro, respirando oscilante, aliviado.

Eu desmanchei. E em algum momento nessa sequência de acontecimentos, Christophe ficou em silêncio.

Kenny não tinha um machucado sequer no corpo. Vestia uma camisa branca que eu tive quase certeza de que não era a mesma que ele usava mais cedo, mas isso não tinha a menor importância agora. Era um dos nossos que havia voltado.

Ele me fez um carinho no rosto e sorriu.

-Vocês estão bem? - Me perguntou, olhando em torno da sala. Antes que eu pudesse responder, outras pessoas se aproximaram e a pergunta se dissipou num ar; havia muitas coisas que ele não sabia e eu não tinha condições de contar.

Stan continuava de pé a alguns passos de nós. Esfregava o rosto, respirando fundo, mas parecia que um pouquinho do peso sobre seus ombros havia sido levantado. Começaram a fazer perguntas ao Kenny (onde você estava, como escapou, alguém mais sobreviveu?), mas ele não chegou a responder nenhuma delas. Wendy lhe segurou com firmeza pelo braço e contou sobre Tweek, sobre Butters, sobre Bradley e Red que também não conseguiram voltar até então. Sobre Christophe também, mas esse nome ela falou mais baixinho, como se eu não estivesse bem ao lado deles para ouvir.

Eu fiquei esperando pelo alívio, qualquer tipo de alívio nesse emaranhado apertado de nós dentro do meu peito, e por mais feliz que eu estivesse por ver Kenny de pé e sem ferimentos, o alívio não veio. A primeira coisa que ele quis fazer foi subir para ver o Butters, coisa que eu ainda não tinha feito. É medonho dizer isso, mas... Talvez uma parte de mim estivesse esperando que Butters morresse antes que eu tivesse forças para subir as escadas e vê-lo daquele jeito. Ele sempre foi tão alegre, tão leve, como uma criança. Independente de qualquer coisa, Butters era um otimista. Eu não podia imaginar vê-lo desaparecendo em uma cama. Já havia passado aquele dia inteiro vendo o Toupeira escorregar para a morte, eu não conseguia passar por isso de novo.

Stan transitava pela sala. Subiu com Kenny primeiro, depois desceu e começou a ajudar as pessoas a lavar os arranhões, os cortes, machucados pequenos. Stan nunca parava. Sempre se fazia útil para alguém.

Christophe não fez som algum durante muito tempo. Antes chegara a um ponto em que pensei que os gritos dele me enlouqueceriam, mas seu silêncio era muito pior. Não vinha som algum daquele quarto. A porta continuava fechada. Se ele estivesse morto, já teriam saído, não é? Era o que eu dizia a mim mesmo.

Não faço ideia de quanto tempo se passou, mas Kenny desceu novamente. Senti seu calor se aproximando mesmo antes de ele se sentar ao meu lado, as pernas em posição de índio, segurando os próprios calcanhares. Ele não disse nada durante um bom tempo.

Deitei a cabeça de lado e corri os dedos pelos meus próprios cabelos, coçando acima da orelha, encarando o chão enquanto dizia:

-Se você veio aqui pra me convencer a comer alguma coisa… Ou a tomar banho… - Fiz uma pausa, sugando o ar pela boca, fechando meus olhos para que as lágrimas acumuladas escorressem. - Se você veio aqui pra me dizer como o Christophe é forte, eu vou… Por favor, não me fala nenhuma dessas coisas.

-Eu não pretendia. - Sua voz era aveludada, carinhosa, mas também carregada de melancolia. Ele passou o braço em torno dos meus ombros e me puxou contra si com delicadeza, até que eu deitasse a cabeça em seu ombro. - Como eu posso ajudar?

-Você está vivo. Isso já ajuda.

Eu pude ouvir que ele sorria, mas não era um sorriso de verdade. Ninguém sorria de verdade nessa casa.

-Você já foi ver o Butters? - Perguntou, fazendo carinho no meu cabelo. Balancei a cabeça negativamente. Kenny ficou quieto durante alguns segundos. Suspirou fundo. - Eu sei que você não quer levantar daqui, mas… É bem importante dizer as coisas que a gente tem pra dizer enquanto as pessoas ainda estão vivas. Ele está vivo. Seria bom você ir lá.

Meu coração apertou quando ele disse isso.

Assenti com a cabeça, mas também não saí do lugar. Não queria pensar no que dizer ao Butters porque não queria pensar que estaria me despedindo dele.

-Você acha que ele vai morrer? - Perguntei.

-O Toupeira?

Fiz uma pausa.

-Não, o Butters.

-Ah. Eu não sei, Kyle. Talvez seja… - Ele começou, mas parou de falar de repente e balançou a cabeça de um lado ao outro, afastando o pensamento. De alguma forma, eu captei o que ele queria dizer, mas não tinha coragem: Butters era bom demais para aquele mundo, doce demais para aquela guerra. Talvez fosse o melhor para ele. Dias piores estavam a caminho.

Kenny apenas cobriu minha cabeça com sua mão e continuou fazendo um carinho leve com os dedos, em silêncio.

Logo, a porta do quarto se abriu. Eu imediatamente me desenrosquei de Kenny e apoiei as duas mãos no chão. Quem apareceu na porta foi Gregory. Ele já não usava mais o casaco, tinha sua camisa branca completamente besuntada por sangue vivo e, em outras partes, já seco e escuro. Ele segurava um pano em sua mão direita, também manchado. Secou o suor da testa com as costas da mão e apoiou o braço contra o batente da porta, respirando fundo. Todos os olhos daquela sala o encaravam em expectativa. Nunca vi Gregory tão derrotado em toda a minha vida.

Era isso. Esse era o momento. Com Christophe em silêncio, com aquele olhar no rosto de Gregory… Eu estava pronto para que ele apenas balançasse a cabeça num gesto que dissesse o suficiente: ele não resistiu.

Mas não foi isso que aconteceu. Após tomar fôlego, Gregory ergueu a cabeça.

-Ele… - Sua voz era fraca, acuada. - Ele perdeu muito sangue.

Eu pensei que fosse vomitar. Enchi os pulmões de ar e deixei a cabeça cair para frente, arranhando o chão. Kenny passava a mão pelas minhas costas.

-Mas ele está vivo. - Gregory finalmente disse, assentindo a cabeça como que para certificar a todos aqueles rostos aflitos de que poderia ser muito pior. - Ele finalmente desmaiou. Token não acha que… - Sua voz vacilou. Ele fez uma pausa, engolindo seco. Arregalou um pouco os olhos sem perceber. - Token acha que ele vai morrer sem uma transfusão de sangue.

-Ele pode fazer isso? - Wendy perguntou, franzindo a testa.

Gregory permaneceu com a boca aberta, mas levou algum tempo para responder.

-Token diz que veio preparado. A questão é que… Christophe é O negativo. Eu sei que a chance é muito… - Gregory fechou os olhos. Era muito visível que ele estava caindo aos pedaços por dentro e tentando com todas as forças permanecer inteiro. Enquanto ele estremecia e procurava as palavras certas, eu busquei Stan com meus olhos. - Alguém aqui…?

Antes que eu pudesse reagir de qualquer maneira, Stan deu um passo a frente, desencostando-se da parede, descruzando os braços.

-Eu sou O negativo. - Disse. Não olhou para mim em momento algum. Ele e Gregory se encararam, como se levassem algum tempo para processar o que estava acontecendo.

-Você…? E você pode doar? Digo. - Nem mesmo Gregory sabia exatamente o que queria dizer; ele apertou o pano em sua mão de tal forma que sangue chegou a escorrer entre seus dedos.

-Sim.

Eu realmente desejei que Stan olhasse para mim enquanto ele se aproximava de Gregory. Havia um vazio em seus olhos azuis, um tremor nos lábios, mas não houve qualquer dúvida em sua forma de andar. Gregory pegou em seu braço e apertou; os cantos de sua boca se levantaram um pouco. Talvez aquilo fosse uma forma de agradecimento.

-Eu já volto. Token tem algumas perguntas pra te fazer primeiro. - Gregory disse, dando espaço para que Stan entrasse. A porta do quarto se fechou novamente.

Sem encarar mais ninguém, Gregory marchou em direção à porta da frente. Por mais que tentasse demonstrar aquele passo firme de quem domina o mundo inteiro, ou andar com o queixo levantado de quem não erra nunca, ele mais parecia um bêbado desesperado. Era cruel demais como cada pessoa naquela sala o observava.

Apoiando-me no ombro de Kenny, eu me levantei e fui atrás dele.

De repente, andar não parecia mais tão difícil assim. Empurrei a porta com força e parei no meio da varanda, um tanto desconcertado pela cena: Gregory arrancava os botões da camisa porque precisava abri-la a todo custo e hiperventilava, incapaz de respirar, como se a roupa o sufocasse. Ele fazia um som terrível a cada tomada de fôlego, inclinado para frente como se acabasse de levar um soco, a mão se contorcendo próxima ao abdômen depois que seu peito já estava exposto, a camisa aberta. Desci os degraus da varanda correndo para me aproximar dele, nós dois no meio daquelas folhas secas no jardim escuro, um pouco de chuva gelada caindo do céu. Apenas pingos.

Gregory chorava. Chorava ainda mais quando eu cheguei perto e segurei seu rosto bem firme com as duas mãos, forçando-o a olhar para mim. Estava escuro demais para enxergá-lo direito, mas eu podia ver sua boca aberta e seus olhos grandes, úmidos, desesperados. Ele segurou meu braço com força, cravando as pontas dos dedos porque precisava se segurar em algo.

-Respira. - Eu disse baixinho, mas firme, apertando minhas mãos em seu rosto. - Respira, Gregory.

-Ele vai morrer. - Ele cuspiu na minha cara, sacudindo a cabeça com força. - Ele… Eu não sei se ele sobrevive a isso, Kyle. Eu não posso fazer isso sem ele. Isso tudo… Eu não consigo, eu não consigo sem ele. Essa gente toda me olha procurando um líder, eu não sou um líder, eu não… Eu não sei o que estou fazendo, Kyle.

Eu o encarei de volta com a expressão severa, inabalável, porque Gregory precisava de uma rocha. Poucos minutos antes, eu jamais pensaria que seria capaz de ser isso para alguém. A necessidade sempre nos molda. Deixei que ele falasse. E não deixei que a queda dele me assustasse.

-Gregory. Me escute. Tweek Tweak morreu pisoteado hoje. Eu o vi ser pisoteado. Butters foi fuzilado e provavelmente não sobreviver a essa noite. Bradley e Red desapareceram. E eu só estou falando das pessoas que nós conhecemos e amamos. Muitos outros jovens foram assassinados hoje porque acreditaram no que nós estamos fazendo. Você não os matou. O Governo os matou. E sim, talvez o Christophe… - Minha voz falhou por um momento. - Talvez ele não sobreviva. Mas se ele morrer, todas as pessoas que estão de luto ali dentro vão precisar ainda mais de você. Você era um líder antes do Toupeira aparecer e vai continuar sendo até a hora que te matarem. Entendeu?

Devagarzinho, ele assentiu com a cabeça. Seus olhos pareciam aterrorizados, mas havia sanidade dentro deles. E em resposta, Gregory me abraçou.

É engraçado, nós nos conhecemos a vida inteira, dividimos um apartamento, mas aquele provavelmente foi nosso primeiro abraço. Apertado, sufocante, necessário. Um prelúdio de tudo o que passaríamos juntos.



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