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História Liberté - O Descanso


Escrita por: caulaty

Capítulo 20 - O Descanso


12 de novembro de 3644

 

Butters Stotch morreu pacificamente às nove e meia da manhã, no mesmo leito onde foi repousado na tarde anterior. Eu cheguei a vê-lo com vida. Passei a noite inteira acordado, nem é preciso dizer. Ninguém dormiu naquela madrugada. Pelo menos ninguém naquela casa, talvez ninguém na cidade inteira. Por volta das seis e quinze, já sabendo que o Toupeira estava estável e dormindo, fui visitar Butters em seu quarto. Não vi Christophe antes disso, fomos instruídos a deixá-lo descansar. O andar de cima consistia em um corredor longo, tão longo que causava mal estar, como se não terminasse jamais. Devia haver somente quatro portas de cada lado, oito quartos ao todo… Eu não sei, não contei. Só sei que era muito estreito, o papel de parede verde-escuro de damasco todo descascado, revelando a madeira por baixo. A casa era muito velha. No fim do corredor, havia uma janela com o vidro quebrado e imundo, mas que deixava entrar um pouco de luz para clarear o caminho. O quarto de Butters era o primeiro; Token tomou conta dos ferimentos dele no andar debaixo, mas quando se deu conta de que não havia mais nada que pudesse fazer por ele, decidiu movê-lo para o andar de cima na tentativa de oferecer mais conforto, deixando o quarto debaixo livre para novos feridos que poderiam chegar. Eles tinham uma maca velha que auxiliou no processo de transportar Butters para o quarto onde estava.

Butters era um raio de sol, sempre foi. Aquele cabelo tão loiro, como se sua mãe o tivesse lavado com limão quando ele era bebê e o largado ao sol, só fortalecia essa ideia. Ele não parecia assustado e já não sentia mais dor, ou tentava se mostrar forte. Parecia uma criança pequena naquela cama antiga, cheio de bandagens. Quando subíamos a escada, Stan me segurou pela manga e sussurrou ao meu ouvido que haviam perfurado os olhos de Butters, provavelmente tentando me preparar para o que eu veria. Por Deus, torturaram aquele menino em plena luz do dia. Olhando para ele, era difícil entender como alguém poderia ter sobrevivido ao que fizeram com ele. Butters era um guerreiro.

Seus olhos estavam cobertos por uma faixa manchada de sangue. Ele não usava camisa, mas estava coberto até o peito por um edredom grosseiro ao toque. Assim que eu o vi, comecei a chorar. Justo eu que pensei que não tinha mais lágrima nenhuma pra dar. Eu já tava perto o suficiente para ele reconhecer minha voz. Butters virou o rosto para mim bem devagarzinho, estendendo a mão fraca; eu a agarrei de imediato, entrelaçando os dedos nos dele. Ele disse meu nome, sorrindo, mas era muito evidente em sua voz que ele desaparecia pouco a pouco.

-Estou tão feliz que você esteja bem… - Ele me disse.

-Shh. Fica quietinho. - Respondi com um sorriso triste, acariciando o rosto macio dele.

Wendy segurava sua outra mão, sentada do outro lado da cama. Ela tinha os olhos fundos, a boca um pouco caída, o rosto inchado de chorar, mas agora já não derramava mais lágrima alguma. Apertava a mão de Butters com força, sentada com a coluna ereta, muito desperta. Eu também me sentei no banquinho velho ao lado da cama. Stan se sentou no colchão, acariciando a perna de Butters por cima do cobertor, falando com ele em um tom alegre e assegurador. Eu não fazia ideia de como ele conseguia fazer isso. Stan era uma pessoa muito mais forte do que eu. Quando alguém precisava dele, ele conseguia deixar todo o próprio medo e sofrimento de lado para amparar, tranquilizar, ser o que a pessoa precisa que ele seja. Eu não tinha dúvida nenhuma do quanto o coração dele doía. Stan estava destruído por dentro, mas na frente de Butters, ele buscava não pensar nessas coisas. Não queria que os últimos momentos de Butters fossem tristes.

Eu também não queria. Mas era impossível.

Eu já estava acordado há mais de 24 horas, exausto. Deitei a cabeça no colchão, bem pertinho de Butters, sentindo o calor dele próximo ao meu rosto. Não cheguei a apagar de vez. Não soltei a mão dele em momento algum. Stan fez um carinho nos meus cabelos e se levantou. Nas horas seguintes, entrava e saia gente do quarto constantemente. Bebe, mesmo sem conhecer Butters, esteve presente o tempo inteiro dando-lhe água na boca e massageando as costas de Wendy, perguntando se alguém precisava de alguma coisa. Ela tinha uma energia maternal. Eu não conhecia essa garota, mas estava contente por tê-la ali. Não eram os amigos dela que estavam morrendo, ela vinha com compaixão, força e frescor para nos manter de pé. Parecia uma boa pessoa.

Clyde também aparecia com certa frequência nesse período de três horas, as últimas três horas da vida de Butters. Mas Clyde estava inquieto demais pra ficar sentado ali. Vinha, trocava algumas palavras, sentava um pouco, levantava, andava até a janela, depois descia, voltava com café que ninguém queria beber. Craig não apareceu.

Pude ouvir Cartman chorando no corredor e a voz de Kenny falando baixo com ele. Stan abriu a porta para sair do quarto e eu vi, de relance, Cartman e Kenny fortemente abraçados. Lembrei-me do quão aflito Cartman estava por pensar que Kenny não tinha sobrevivido e, de alguma forma, sentia culpa. Talvez ele estivesse chorando de alívio e de desespero, porque a essa altura, a alegria não vinha com aqueles que sobreviviam. Mas ver Kenny assim, de pé, inteiro, são o suficiente para confortar um homem grande e grosseiro como Cartman, eu agradeci a qualquer força divina que o trouxe até aqui. A mesma força divina que fez com que Christophe sobrevivesse a essa última madrugada.

Embora eu ainda estivesse esperando que Gregory subisse com a notícia de que ele não tinha resistido. Mas isso não aconteceu.

Quando Butters deu o último suspiro (não houve última palavra, apenas um sopro cheio de paz), havia cinco pessoas no quarto: eu, Stan, Wendy, Kenny e Cartman. Outros esperavam do lado de fora, os que não eram tão próximos assim dele, que tentavam dar privacidade. Só então, Stan chorou. Passamos pelo menos cinco minutos abraçados em silêncio. Kenny e Wendy deram as mãos, de pé ao lado do leito de Butters. Cartman foi sozinho cambaleando até a janela. Acabou vomitando. Eu quis me aproximar dele, mas Wendy foi primeiro e eu fiquei aliviado. Não tinha forças pra segurar ninguém.

Só depois disso tudo que eu fui tomar banho. Não havia água quente na casa, era preciso esquentar a água em um balde num frio desgraçado daqueles, mas isso não importava. Era banho. Só com o sangue escorrendo junto com a água ralo abaixo que eu tive noção do quanto eu estava imundo. Dei uma boa olhada no meu próprio corpo. Havia hematomas roxos, nada mais. Eu nem lembrava em que havia batido pra conseguir essas marcas.

Stan havia me mostrado o quarto em que nós dormiríamos, a penúltima no final do corredor. O quarto estava vazio quando saí do banho. Havia duas camas, uma de casal e uma de solteiro, mais um colchão no chão. Nenhuma roupa de cama. Havia roupa limpa dobrada sobre a cama de casal, como Stan disse que haveria. Foi isso que vesti. Era uma calça bege de tecido bom, muito melhor do que as roupas que eu tinha. Uma regata branca e um suéter azul marinho. Vesti os mesmos sapatos sujos que eu usava mais cedo. Ao descer, passei pelo quarto de Butters, que estava com a porta entreaberta. Seu corpo estava coberto pelo edredom amarelo, mesmo o rosto.

Estava todo mundo lá embaixo, pelo menos todo mundo que me interessava. Kenny fazia um omelete atrás do outro em um fogãozinho de ferro portátil, os olhos vermelhos e úmidos que ele tentava esconder, secando as lágrimas com a manga do casaco. A casa não tinha aquecimento e a manhã era gelada. Stan colocou a mão na parte debaixo das minhas costas quando me aproximei, oferecendo-me uma banana. Foi a primeira coisa que eu comi desde o dia anterior. Ninguém dizia nada naquela cozinha. Os armários eram velhos, nem todos tinham portas, havia teias de aranha por toda parte. O fogão era a lenha, a frigideira que Kenny usava era enferrujada. Não era aquele tipo de espaço propositalmente arquitetado à moda antiga, era apenas precário.

Cartman, Wendy, Bebe, o rapaz loirinho vestido de forma ridícula, Scott, Jason e Annie comiam silenciosamente, uns em pé, outros sentados à mesa. A porta para o jardim dos fundos estava aberta e também havia gente lá fora. Patty, Molly, Lisa, algumas meninas das quais eu nunca fui muito próximo. Elas choravam. Falavam sobre Red, mas eu não pude ouvir muito bem.

Eu não queria mais ouvir gente chorar. Voltei para a sala depois de comer.

-Eu não consigo entender. - Ouvi uma voz familiar. Era Token. Eu ainda não o tinha visto. Ele vestia uma camisa branca limpa, calça jeans, os pés descalços, nenhuma gota de sangue. Ótimo. Melhor assim. Tive medo de que, quando eu finalmente o visse, ele estaria besuntado de sangue. Ele estava de pé, de braços cruzados, conversando com Clyde e Craig sentados no sofá. Sua voz parece magoada. - Quantas vezes nós nos vimos na universidade e eu comentei o desaparecimento dos alunos?! Vocês nunca disseram nada. Como é que vocês não confiam em mim?! Nós nos conhecemos a vida inteira, caralho.

-Não é que a gente não confiasse em você. - Clyde disse, mas Craig logo atravessou.

-Token, os teus pais são os advogados do diabo. Literalmente. Desculpa, mas é verdade, a tua família financia a chacina que eles fazem. É óbvio que a gente não tava exatamente confiante em te envolver.

-A mãe do Kyle é a maior ativista pró-governo dessa cidade e, no entanto, ele está aqui. - Nisso, Token apontou na minha direção. Então eu percebi que eles não estavam envolvidos demais na discussão para notar minha presença.

-É, mas a família dele é tão explorada quanto as nossas, ele não nasceu em berço de ouro só porque a mãe dele é uma imbecil. - Craig respondeu no seu mono-tom corriqueiro, voltando o olhar para mim e encolhendo os ombros como se isso fosse um “foi mal, mas é verdade”. Eu não reagi.

Token parece tão triste. Genuinamente triste. Cruza os braços, as mangas da camisa dobradas até os cotovelos, parecendo muito mais desleixado do que todas as outras vezes que o vi. E assim, parece mais humano.

-Eu realmente gostaria que vocês tivessem confiado em mim. Eu passei os últimos meses em Denver, cuidando dos feridos. Estava pronto pra viajar para Nova York quando Gregory entrou em contato comigo. Pra cuidar dos meus amigos de infância. Eu tive que saber através dele que vocês estavam arriscando o pescoço de vocês. Isso não faz sentido nenhum.

-Nós devíamos ter te contado. - Clyde disse, levando as duas mãos à nuca e abaixando a cabeça. - Desculpa. Tá bom? Eu só tô feliz em te ver.

Isso pareceu abaixar a guarda de Token durante alguns segundos. Ele separou os lábios para dizer algo, então parou. Sacudiu a cabeça sem saber exatamente o que dizer, ou assim parecia, enquanto andava de um lado para o outro na sala.

-Eu queria ter tido mais tempo com o Tweek. - Disse.

-É inacreditável. - Clyde murmurou, retirando as mãos da nuca e unindo-as em frente à boca, um dos pés batendo inquieto no chão, as costas curvadas. - Não consigo acreditar. Fico esperando ele entrar por aquela porta.

-Eu não. - Craig então disse, levantando-se do sofá com os braços cruzados, os olhos fixos em mim. - Eu vi. Vi o que sobrou dele. Vi o crânio dele todo esmagado, os intestinos pra fora. - Sua voz não era morta como de costume. Era trêmula, assombrada, cheia de dor. Mas seu rosto continuava apático, com exceção dos olhos, que brilhavam tristeza. Ele voltou o rosto aos companheiros. - Eu só reconheci aquela camisa ridícula que ele usava. Pode acreditar em mim, ele não vai voltar.

-Stan disse que você o viu ainda com vida. - Clyde explicou baixinho para mim, encolhendo-se. - Você… Acha que ele sofreu muito?

-Ele foi pisoteado até a morte, Clyde, o que você acha?! - Craig interrompeu antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. - Às vezes eu me pergunto se existe um cérebro aí dentro.

-Você não precisa ser cruel. - As palavras deixaram a minha boca, embora meu cérebro não acompanhasse muito bem. Craig não me olha de volta. É como uma parede de tijolos encarando o nada, pálido, vazio. Você sempre acha que os fortes são aqueles que não choram, mas quem desmorona mais rápido nessas horas é sempre o macho sem sentimentos. Havia alguma coisa feia acontecendo dentro de Craig, que ele só sabia expressar com agressividade. Eu me aproximei um pouco mais dos três. - Eu acho que foi rápido. Ele logo perdeu a consciência. Tweek era muito, muito mais forte do que as pessoas normalmente pensavam. Eu… Eu tentei ajudá-lo, mas foi tão depressa. O que eu sei é que, por mais assustado que ele estivesse, ele estava disposto a morrer pelo que ele acreditava. Eu sinto muito que a hora dele tenha chegado tão depressa. Vocês não podem imaginar o quanto.

-É muito fácil sentir quando os seus dois namorados estão vivos, não é? - Craig me respondeu com amargura, cobrindo a boca logo em seguida porque não queria chorar. Mas ficou transparente como água. - Você não perdeu ninguém.

-Craig. - Token disse, colocando a mão no ombro dele.

-O Tweek salvou a minha vida.- Respondi. - E do Stan. E do Christophe. Ele tinha pavor de armas, mas ele aprendeu a usar uma e ele matou um sapador que provavelmente teria estourado os nossos crânios. Eu devo muito a ele. - Acho que explicar essas coisas em voz alta, relembrar dos olhos apavorados de Tweek enquanto ele se desfazia no asfalto, relembrar da noite anterior, em que ele estava vivo e saudável para enfrentar aquilo que mais o aterrorizava e me dar pelo menos mais um dia de vida… Tudo isso parecia ter acontecido há mil anos, não há dois dias. E era demais pra mim. Meus olhos estavam vermelhos de novo. - O que eu mais queria era ter tido uma chance de ajudá-lo.

Clyde esfregou o rosto a princípio, mas manteve a cara escondida nas mãos e a cabeça caída para frente, chorando. Craig não quebrou o contato visual comigo, mesmo quando eu tentei fugir dele. Esses três (os quatro, se contarmos Tweek) sempre tiveram o tipo de conexão que eu tinha com Kenny, Stan e Cartman desde a infância, então eu dei um passo para trás, sentindo-me um invasor. Me direcionei para a porta da frente, mas meus pés travaram e viraram meu corpo por instinto para que eu pudesse dizer uma última coisa:

-Butters era meu amigo. Tweek era meu amigo. Não diga que eu não perdi ninguém.

E então, finalmente, fui para a varanda. Esperava não ter que falar com ninguém pelas próximas horas. Estava um frio desgraçado para o tecido fino do suéter, mas eu não me incomodava.

Vinte minutos depois, Stan apareceu. Foi um alívio vê-lo.

-Ei. - Ele disse com a voz rouca, como se tivesse acabado de acordar (embora não fosse o caso). Sentou-se na pequena escada de madeira empoeirada da varanda, bem ao meu lado, com as pernas separadas e as mãos juntas, os braços repousados sobre os joelhos.

Ficamos quase um minuto em silêncio. Até que as seguintes palavras saíram da minha boca:

-Butters morreu.

Stan apertou os olhos, balançando a cabeça negativamente como quem reprova alguma coisa. “Isso é tão errado”, eu podia ouvir seu pensamento. Ele esfregou as mãos nas coxas para se aquecer. Vestia um casaco preto de moletom que parecia muito confortável.

-Estávamos falando sobre fazer um enterro. Uma pequena cerimônia, talvez uma vigília. Nós não temos todos os corpos, mas perdemos mais gente.

-Bom. Isso é bom. - Concordei, assentindo com a cabeça.

Porque eu sabia que todos naquela casa estavam se perguntando se as pessoas começariam a cair como moscas dali para frente e os mortos não poderiam mais ser honrados com cerimônias. Eu mesmo me perguntava se os corpos se tornariam apenas isso; apenas corpos, como pilhas de soldados mortos nas trincheiras, quando a morte tem outro significado e você só pode pensar em sobreviver. Eu ainda não estava pronto para isso. Não queria me desligar totalmente dos rituais da vida normal.

Quando caímos novamente em silêncio, eu repousei minha cabeça sobre o ombro dele. Senti sua bochecha quente descansando contra o topo da minha cabeça, sua mão grande sobre a minha coxa. Escorreguei a mão pelo braço dele até chegar a sua palma virada para cima e nossos dedos se entrelaçaram.

-Nós devíamos dormir um pouco. - Ele sugeriu. - O enterro é só à tarde. Ainda querem esperar, ver se mais gente aparece.

Por algum motivo, eu senti que isso não aconteceria. Eu ainda não sabia como, nesse tipo de situação, ou você sai com pouquíssimos ferimentos, senão ileso, por ser muito ágil e conseguir fugir, ou você não volta. Porque quando eles te pegavam, acontecia o que houve com Butters. Pelo menos naquela época, em um grupo tão mal treinado, com nenhuma experiência.

-Você está bem? - Perguntei, apertando a mão dele. - Comeu? Você pode desmaiar se não comer depois de doar sangue.

-O quê? - Foi sua resposta distraída. - Ah. Sim, comi.

Levantei a cabeça para encará-lo, como se quisesse me certificar de que ele disse a verdade. Seu rosto está bem próximo, pálido, com olheiras escuras sob os olhos azuis. Sua pele quase tinha um tom acinzentado, talvez porque aquele dia inteiro estava cinza. O céu completamente branco, sem nenhuma brecha para os raios de sol. Senti o aperto da mão de Stan afrouxar na minha.

-Obrigado. - Eu disse, com um aperto no peito que me fazia duvidar do que estava dizendo. A palavra soou idiota, eu podia ouvir. - Por fazer isso.

“Por dar seu sangue a ele”. Talvez eu fosse jovem demais na época para me dar conta de que ele não fez isso por mim. Nem era exatamente isso que eu pensava, mas não sabia como tocar no assunto sem me sentir falando blasfêmias.

Stan apenas soltou um risinho de quem não acreditava muito naquilo que ouvia. Soltou minha mão por completo e se levantou, limpando as mãos na calça enquanto se levantava.

-Desculpa, eu não quis dizer… - Tentei, porque ele pareceu perturbado de repente.

-Não. - Stan me cortou. Sua voz era fraca, sem defensiva alguma. - Olha, eu sei que tem muita coisa pra gente conversar, mas não agora. Não a poucas horas do enterro do Butters, não quando o Toupeira ainda tá correndo risco. Eu só… - Ele não olhava diretamente nos meus olhos. Passeava o olhar pelos degraus da varanda, pela parede da casa ou, ainda, pelo horizonte. Quando finalmente se virou para mim, disse com firmeza. - Eu nunca quis que ele morresse.

-Stan…

-Você pensa nisso quando sente raiva, todo mundo pensa. “Esse desgraçado podia levar um tiro, filho de uma égua”, eu pensei isso, Kyle. Você me fez sentir isso. E aí ele… Ele leva um tiro e quase morre de verdade, e eu nunca senti tanta culpa na minha vida. - Stan fez uma pausa longa, engolindo o acúmulo de saliva na boca, apertando o maxilar. Ele segurava a respiração sem perceber. Sua voz tremia, cheia de pesar. - Eu não posso mais ser esse cara amargurado que deseja isso pra outro ser humano. Não assim, não quando as pessoas tão morrendo como moscas.

Era insuportável vê-lo dessa forma. Então, eu disse a única coisa que podia:

-Você salvou a vida dele.

-Só que isso não me faz sentir melhor! Não muda nada. - Ele cobriu o rosto com as duas mãos apenas para esfregá-lo rapidamente, os pés se mexendo sem sair muito do lugar. - Olha… Eu só preciso dormir. Depois do que aconteceu ontem, nada mais é importante. Você está bem, eu passei horas ontem pensando que talvez você estivesse morto, me arrependendo de cada coisa cruel que eu te disse. Mas você tá aqui, vivo, e ele também tá vivo, e eu só quero… Eu só quero dormir.

Eu sorri. Estendi a mão para que ele me ajudasse a levantar e fomos juntos para o quarto.

Ao contrário do que eu imaginava, não havia ninguém mais no quarto. Stan e eu nos apossamos da cama de casal, e por mais que não houvesse roupa de cama alguma, foi delicioso poder deitar e sentir o calor dele por trás de mim, sua respiração quente na minha nuca, seus braços envolvendo meu tronco, as pernas enroscadas nas minhas. Apertei os olhos e as lágrimas começaram a vir sem que eu percebesse, daquele tipo de lágrima que escorre tão devagar e tão solitária que chega a fazer cócegas no rosto. Minha cabeça latejava.

Deitado ali, com Stan, naquele quarto estranho e tão distante da nossa casa, de tudo que nós fomos antes disso, eu me senti vazio. Oco por dentro. E como se ele sentisse a dor física no meu coração, escorregou sua mão até o meu peito e a deixou ali, espalmada, como um alívio. Apertei o braço dele, fincando meus dedos em sua carne por cima da manga sem medir força.

Me senti seguro, finalmente. Stan fazia isso comigo. Durante aqueles segundos antes de pegar no sono, foi como se Butters nunca tivesse morrido, Tweek nunca tivesse sido pisoteado, Christophe nunca tivesse levado o tiro. Mais do que isso, foi como se eu nunca tivesse conhecido Christophe. Como se nós nunca tivéssemos nos unido à resistência. Como se eu nunca tivesse perdido minha mãe, pelo menos da forma como eu a conheci. Como se estivéssemos de volta ao tempo em que meu irmão podia andar livre pelas ruas e as coisas erradas estivessem distantes demais para nos tocar, porque nós éramos jovens, e jovens não se preocupam com o resto do mundo.

E assim, nos cochilamos durante duas horas.

Então, eu descobri aqueles segundos de transição entre o dormir e o acordar em que você simplesmente não se lembra de todas as merdas que aconteceram na sua vida até então. A gente deve ser muito vulnerável quando dorme, porque o dormir é sempre tão seguro, tão perfeito. Eu sempre odiei acordar.

Estava um pouco suado pelo calor da cama e a proximidade do corpo de Stan, que continuava enroscado ao meu, mas o peito não chegava a tocar minhas costas. Apertei o rosto contra o travesseiro sem fronha, duro e fino, sentindo uma dor estranha no pescoço.

-Kyle. - Ouvi um sussurro muito baixo, próximo ao meu rosto.

A presença de Kenny me assustou. Recuei um pouco antes de a minha visão focar e eu ter certeza de que era um rosto conhecido. Então meu peito se encheu e alívio por ter essa cara sardenta de nariz torto tão perto de mim, porque antes de me orientar no espaço, eu só me lembrava do caos. Pisquei algumas vezes, esfregando o rosto.

-O que é? - Respondi baixinho para não acordar Stan. Podia ouvir um outro ronco no quarto, que definitivamente não vinha de Stan. Ele não roncava. - Que horas são?

-Escuta. - Kenny pegou na minha mão. Meu coração quase saiu pela boca e eu pensei que fosse gorfar. Ergui o tronco imediatamente, de forma tão brusca que não entendi como Stan não acordou. Kenny enxergou nos meus olhos a certeza de que ele ia me dar uma notícia ruim. Eu não aguentava mais ser inundado pela certeza de que alguém me diria que Christophe não aguentou. - Ei, ei. Tá tudo bem. O Toupeira acordou. - Ele sussurrou enquanto apertava meu ombro com a mão livre. - Ele tá perguntando por você. Eu não queria te acordar, mas achei que você fosse querer.

Eu pisquei confuso algumas vezes.

-Ele…? Ele acordou?

Kenny sorriu. Sorriu largo, genuíno, mostrando os dentes, assentindo com a cabeça. Eu saltei da cama.

Porque eu tinha, sim, conhecido Christophe. Porque Tweek tinha, sim, sido pisoteado. E Butters tinha, sim, morrido. E eu provavelmente nunca mais poderia ver minha família. E meu irmão precisava viver em um porão. Tudo isso era verdade. A única coisa que se podia fazer era seguir em frente.

O quarto de Christophe parecia muito diferente de como estava antes. As cortinas das janelas estavam bem abertas, tudo muito bem iluminado. Alguém havia limpado todo o sangue do chão, como se ele nunca tivesse quase sangrado até a morte naquele mesmo espaço na noite anterior. A primeira coisa que vi foi um homem de quase dois metros de altura e um cabelo muito amarelo, vestindo uma camisa com mangas rasgadas, de costas para mim. O homem estava sentado no chão, suas costas largas como um armário tampando a visão do colchão onde Christophe deitava. Mas eu pude ver os pés dele para fora do lençol, o que trouxe um sorriso aos meus lábios. Havia também uma jovem… Eu a reconhecia da noite anterior. Ela tinha o cabelo crespo preso para cima, vestia uma roupa diferente, mas era sem dúvida a mesma que eu já tinha visto. O outro rapaz no cômodo deveria ser seu companheiro, o tatuado com quem ela falava.

E, naturalmente, Gregory também estava lá.

A porta já estava aberta, mas mesmo assim, dei duas batidinhas no batente para não invadir aquele encontro que, de alguma forma, parecia íntimo.

Os rostos se viraram em minha direção. Quando o homem loiro se moveu, eu finalmente pude ver o semblante exausto de Christophe. Soltei um suspiro aliviado sem perceber e adentrei o quarto. Ele piscou duas vezes, bem devagar, tão pálido, movendo a cabeça lentamente. Mas sorriu de leve. E isso me fez sorrir ainda mais.

-Sumam daqui. - Ele disse com a voz arrastada. Era visível que respirava com dificuldade.

O homem e a mulher que eu não conhecia trocaram um olhar breve, mas não hesitaram. O loiro apertou o braço de Christophe antes de se levantar, sem dizer nada.

-Melhore logo. Nós precisamos de você. - A mulher disse em um tom delicado, caminhando em direção à porta. Ela me ofereceu um cumprimento breve com a cabeça, sem sorrir, e eu fiz o mesmo. O homem que a seguia, ao contrário, nem sequer fez contato visual.

Eu me aproximei da cama. Gregory continuava sentado ao lado do colchão, servindo um copo de água com uma jarra de vidro que estava ali próxima.

-Você também. - Christophe disse a ele.

Mordi meu lábio inferior, sentindo meu rosto aquecer quando Gregory me lançou um olhar rápido demais para eu entender qual foi a intenção por trás disso. Ele não demonstrou nenhuma insatisfação, mas suas sobrancelhas franziram durante um segundo.

Elegantemente, ele se levantou. Deixou o copo de água ao alcance do Toupeira.

-Me chame se precisar de alguma coisa.

Ao sair, fechou a porta.

Eu esfreguei meu olho esquerdo com o punho fechado quando senti que minhas pálpebras ameaçavam formar lágrimas. Não tive tempo de pensar enquanto descia a escada correndo para chegar ali, mas o tempo inteiro, prometi a mim mesmo que não choraria mais na frente dele. Não que esse tipo de promessa servisse para muita coisa. Tudo transbordava. Por um segundo, tive medo de ainda estar lá em cima dormindo e tudo isso não passar de um sonho. Ele gastou um bom tempo só olhando para mim com uma expressão curiosa. Não vestia camisa, estava coberto pelo lençol até o peito, os braços descansando por cima do tecido. Segurei seu antebraço e apertei com força, ajoelhado perto dele.

Em vez de falar, ele ergueu a mão com dificuldade e envolveu minha bochecha em sua palma grande, que estava tão quente. Sentir o calor dele só me fez chorar mais. Apertei os olhos e soltei um riso ansioso, balançando a cabeça, apertando seu pulso e, depois, acariciando sua pele.

-Pare com isso. - Ele disse. Eu nunca o tinha ouvido falar com tanta gentileza. - Ei. - Não havia firmeza em sua voz, talvez porque ele estivesse fraco demais para isso. Seu polegar acariciou logo abaixo do meu olho, secando uma lágrima quente que escorria pela minha bochecha. Seu toque era leve. Seus olhos estudavam a minha expressão. Olhando de fora, ninguém diria que Christophe era uma pessoa sensível, mas ele tinha uma sensibilidade extraordinária para entender as expressões de alguém. Após algum tempo em silêncio, pigarreou e disse. - Seus amigos… Eles voltaram?

Ninguém havia contado, mas ele já sentiu no ar que havíamos perdido alguém. Provavelmente já percebera isso nos olhos de Gregory, que estavam profundos e culpados.

Balancei a cabeça sem fazer que sim ou que não, perdido, esquecendo-me de respirar durante alguns segundos. Fechei meus olhos, respondendo em uma voz miúda:

-O Butters…

Christophe tirou a mão do meu rosto e estreitou os olhos. Estavam muito vivos, apesar de sua palidez.

-Aquele loirinho contente?

Isso me arrancou algo entre o riso e o choro. Assenti com a cabeça, lembrando do rosto rosado dele, do sorriso cheio de dentes pequenos, do seu otimismo. Seguei meus olhos com a manga do moletom, soltando um suspiro trêmulo, inconformado.

Ele voltou a encarar o teto, fazendo uma careta de dor. Eu não soube dizer se dor física ou emocional. Balançou a cabeça de um lado ao outro, soltando um palavrão baixo.

-Ele era um dos bons. - Disse. Isso me surpreendeu, mas ao mesmo tempo, aqueceu meu coração. Eu não imaginava que Butters se encaixasse nos critérios brutos de Christophe para definir um bom guerrilheiro. Se Butters tivesse tido a oportunidade de saber que ele pensava isso, certamente teria ficado muito feliz.

-Ele foi o único ferido que conseguiram trazer de volta. - Falei baixinho.

-Ele morreu aqui?

-Sim… Nós vamos fazer um funeral no fim da tarde.

Christophe fechou os olhos de forma cansada e assentiu vagarosamente com a cabeça, deixando-a cair de lado no travesseiro, a bochecha encostando no ombro.

-Bom… Isso é bom. Quero ir.

Eu engoli o acumulo de saliva na boca e estiquei a mão até o peito dele por cima do lençol, acariciando-o com as pontas dos dedos, depois subindo até a lateral do pescoço. Meu tronco estava inclinado, o cotovelo do outro braço apoiado no colchão. Estava quase me deitando com ele.

-Como você se sente? - Perguntei sussurrando.

Seus olhos queriam fechar. Ele continuava grogue, lutando para se manter acordado. Eu queria deixá-lo descansando, mas ao mesmo tempo, a ideia de me afastar dele novamente me provocava um aperto na garganta, no peito. Ele ofereceu um sorriso amargurado.

-Como se eu tivesse levado um tiro.

Não pude evitar o riso triste, ainda que ele não tivesse dito para me fazer rir. Ou, pelo menos, não parecia.

-Você me assustou. - Falei bem próximo ao rosto dele, alisando seu cabelo para trás, o riso se transformando em um pranto reprimido. Não escorreram mais lágrimas; eu consegui contê-las, agarrando-me ao alívio de tê-lo tão perto de mim, são, falando comigo. Em recuperação. - Eu realmente achei…

-Você não podia só me deixar morrer em paz, não é mesmo?

-O seu humor é horrível. - Sussurrei, mantendo o sorriso triste, ajeitando-me no colchão com ele. Aproximei-me com muito cuidado para não tocar na região do abdômen. Ele esticou o braço para me envolver, acariciando a lateral do meu tronco com sua mão fraca. Deitei a cabeça em seu ombro e fechei os olhos. Minha cara provavelmente estava horrorosa, inchada de sono e de choro, mas a essa altura, não importava. - É melhor você voltar a dormir.

Ele balançou a cabeça preguiçosamente, a bochecha apoiada no topo da minha cabeça, os olhos fechados. Não sei quanto tempo passei ali, ouvindo seu coração bater, sentindo sua respiração, assegurando-me pouco a pouco de que ele estava vivo e nada mais aconteceria com ele. Estava tudo bem. Nós precisaríamos conversar quando recuperássemos algum senso de normalidade, quando ele estivesse mais forte e Butters já tivesse sido enterrado. Mas agora não era o momento para pensar nesse tipo de coisa.

Antes de pegar totalmente no sono, ele deve ter transitado por aquela sensação de queda. De repente, seu corpo fez um pequeno espasmo e ele ergueu o pescoço, alarmado, apertando meu braço e chamando meu nome.

-Shh. - Levantei meu rosto para encará-lo, acariciando seu maxilar, sentindo a rudez da barba malfeita em meus dedos. - Eu estou aqui. Você está bem.



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