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História Liberté - O Fogo


Escrita por: caulaty

Capítulo 23 - O Fogo


23 de novembro de 3644

 

Era um fim de tarde gelado e bonito. O céu continuava igualmente carregado por nuvens, como era de costume, mas a luz do sol conseguia penetrar a camada grossa de poluição e chegar até nós, pelo menos um pouco. Era tão raro ver os raios de maneira tão clara como naquele dia. Também não chovia, o que era sempre agradável. Havia alguma coisa de confortável no ar, no clima, eu não sabia apontar o quê exatamente. A casa estava silenciosa e vazia; havia pessoas dormindo, outras passeando lá fora e, outras, aproveitando o tempo bom para ir à cidade comprar suplementos e resolver questões. Nas primeiras vezes, eu sempre sentia um aperto medonho no coração e um pressentimento horrível de que algo ruim aconteceria toda vez que a van saía com seis ou oito pessoas se colocando em risco ao retornar para a cidade. Mas no fim do dia, todos sempre voltavam bem. Então nós começamos a nos acostumar, criar uma espécie de rotina. O conforto com essa situação começou a me assustar.

Nessa tarde, em particular, eu estava envolto em uma manta atoalhada, deitado em um colchão na sala que usávamos como sofá durante o dia. Lia um livro emprestado de uma garota chamada Natalie, muito pequena e temperamental, mas generosa. E estar aconchegado dessa forma foi a coisa mais semelhante a uma vida comum que eu experimentei em meses. Era bom. Eu podia me acostumar àquilo.

Nós sabíamos que isso era um período curto, até que nossos feridos se recuperassem o suficiente para que nós pudéssemos deixar a cidade. Esse sempre foi o plano, pelo menos para mim e para aqueles mais próximos de mim. Muito se discutia sobre para onde exatamente nós iríamos em seguida, assim como muito se especulava sobre quem eram o homem e a mulher que estavam sempre acompanhando Gregory e Christophe em silêncio, os novaiorquinos. Falavam sobre nós, mas nunca falavam conosco, assim como falávamos deles, nunca com eles. O rapaz, Trent, era tão calado quanto Christophe e só aparentava sorrir quando fazia algum comentário sádico. A mulher, Nichole, me dava calafrios.

Pois lá eu estava, lendo um livro fascinante sobre criaturas marinhas. Eu nunca tinha visto o mar, mas era muito interessado em tudo o que nele vivesse. Não estava pensando sobre a guerra, sobre o anúncio de mais oito mil soldados americanos mortos em combate, na morte de Tweek e Butters, em minha mãe que me rejeitou, em meu pai omisso ou meu irmão que eu talvez nunca mais veria. Naturalmente, eu não poderia participar dessas visitas à cidade. Kenny ia toda vez que tivesse oportunidade, justamente para encontrar sua irmãzinha. Eu enlouquecia de preocupação toda vez, revivendo o pavor daquela espera na noite desgraçada em que pensei que ele estivesse morto. Kenny me dizia que era só mais um pé-rapado qualquer, que ninguém estaria procurando por ele. Era assim que ele tentava me confortar. E eu me conformava porque sabia que era inútil tentar impedi-lo; Kenny era um bicho selvagem, ficava angustiado preso dentro daquela casa por muito tempo. De qualquer forma, não era em Kenny que eu estava pensando. Mas sim em lulas gigantes.

-Ei, Kyle. Eu fiz um pouco de café, você quer? - Gregory perguntou, surgindo da porta para a cozinha, segurando uma caneca de alumínio que já foi pintada de verde, mas agora descascava. Ele ficava muito bem de vermelho, como estava naquele momento.

-O quê? - Perguntei distraído, demorando alguns segundos para tirar os meus olhos das páginas amareladas. - Ah. Não, obrigado.

Rompendo o silêncio agradável, ouvimos uma voz zangada vindo lá de fora. Não entendi o que diziam, mas também não prestei muita atenção, concentrado demais em meu livro. Gregory deu um gole em seu café e pôs a outra mão no bolso da calça bege de algodão, adentrando a sala para olhar pela janela da frente; parou no meio do caminho e franziu a testa. Sua caneca fumegava. O que arrancou minha atenção do livro foi o estrondo que Token fez ao abrir a porta.

-Inacreditável. - Ele zombou, balançando a cabeça com um sorriso amargo no rosto que eu nunca havia visto nele antes.

Não coloquei o livro de lado imediatamente, hesitante em me envolver no que quer que fosse. Mas Gregory não perdeu tempo em se aproximar da porta, ainda aberta, espiando com quem havia sido o conflito em questão. Provavelmente já sabia antes disso. Token parecia bastante intimidador quando estava com raiva. Era um homem alto, grande. Ele deu uma boa olhada em Gregory como se ainda não o tivesse reconhecido, então apontou agressivamente para a porta e disse:

-Eu não passei uma noite inteira tentando salvar a vida desse idiota para ele ter uma hemorragia por opção agora! Ele é completamente louco!

A curiosidade foi mais forte. Eu ergui um pouco a cabeça para poder enxergar através da janela, da forma mais discreta que pude; exatamente como esperado, ele estava se referindo a Christophe. A cena foi incômoda e me revirou o estômago por uma série de motivos. Ele estava cortando lenha com um machado velho e enferrujado, fazendo muito mais esforço físico do que seu delicado estado permitiria, usando uma camisa de flanela fina demais para o frio que fazia lá fora. Balancei a cabeça de forma perturbada e voltei a me ajeitar no sofá. Aquele imbecil.

-Ele não tem condição alguma de estar fazendo trabalho braçal. - Token continuou. O tom de sua voz era muito mais preocupado do que raivoso, era daí que vinha todo o seu nervosismo. Eu podia sentir isso agora. - Eu juro, se ele começar a sangrar, eu não vou fazer nada. Ele não deveria nem estar fora da cama ainda.

-Porra, Toupeira… - Gregory resmungou entredentes, cruzando os braços, segurando a caneca perto da boca. Não tirava os olhos de Christophe.

-Ele não ouve uma palavra do que eu digo. Vá lá fora e mande esse idiota parar com isso, por favor.

Gregory soltou uma gargalhada breve de escárnio.

-Você já conheceu o Toupeira? Ninguém manda ele fazer ou parar de fazer nada.

Token jogou as duas mãos ao ar e sacudiu a cabeça, gaguejando um pouco antes de deixar as mãos caírem nas laterais do corpo, batendo nas próximas coxas.

-Bem, então ele que morra sozinho, porque eu desisto. - Ele disse antes de se dirigir às escadas, bufando. Pisava com força no chão de madeira.

Para a minha surpresa, Gregory não parecia assustado. Sequer havia preocupação em seu rosto. Ele observou a cena por mais alguns instantes na mesma posição, os braços cruzados, bebericando o café. Sua expressão era indecifrável; ele tinha esse brilho estranho nos olhos e os cantos de seus lábios pareciam querer levantar, mas não em um sorriso. As letras impressas nas páginas do livro não faziam mais sentido algum para mim. Ficamos em silêncio por um tempo, apenas o som forte do machado adentrando a madeira preenchendo o ambiente.

-Talvez você deva falar com ele. - Gregory disse de repente, virando a cabeça para mim um pouco depois de terminar a frase. - Ele te escuta.

Foi a minha vez de rir baixo, porque ele não tinha noção do absurdo que estava dizendo. Fechei o livro sem marcar a página e coloquei meus pés no chão, voltando a vestir os chinelos de pano sem saber porquê, visto que eu não pretendia me levantar.

-Não, ele não me escuta.

Christophe e eu não havíamos nos falado desde o incidente no enterro de Butters. Para dizer a verdade, eu mal o tinha visto nos dias anteriores. Desde que nos conhecemos, ele sempre esteve perto de mim de alguma forma. Nossa conexão foi instantânea. Agora, sem isso, eu podia perceber o quanto ele era arisco com as outras pessoas e estava sempre à margem de qualquer tipo de aglomeração. Ele quase nunca estava na casa, e quando estava, era dentro do quarto. Nas poucas vezes que eu o vi, na hora do jantar ou em algum outro momento durante a noite, ele estava sozinho ou acompanhado por aquele rapaz, Trent. Os dois pareciam não trocar palavras.

Era mais fácil suportar quando ele não estava por perto, mas toda vez que Christophe e eu dividíamos um cômodo e eu podia sentir o abismo entre nós dois, o buraco dentro do meu peito crescia. Ele nem olhava para mim. Nem reconhecia que eu estava lá.

Pensando melhor sobre, a indagação de Gregory certamente havia sido proposital. Ele sabia que estava colocando sal em uma ferida aberta. Eu não sabia se Christophe conversava com ele ou não; provavelmente não, mas se tratando de uma pessoa tão perceptiva, não era necessário.

-Bem, eu acho que vale a pena tentar. - Ele me respondeu, dirigindo-se de volta para a cozinha.

-E por que você não vai?

Gregory parou bem em frente à porta da cozinha, de costas para mim. Levou a mão ao batente de madeira, passando alguns segundos em silêncio. Tempo o suficiente para me assustar um pouco. Eu não podia ver a expressão em seu rosto.

-Ele prefere que seja você. - Foi o que me respondeu antes de adentrar a cozinha.

Por instinto, eu me levantei. Queria enxergar Christophe através da janela mais uma vez, garantir que ele ainda estivesse lá. Eu ainda segurava o livro de capa vermelha e o apertei contra o meu peito durante um bom tempo, meu cérebro confuso sobre o que fazer ou para onde me levar em seguida. Minhas pernas se moveram um pouco, mas não sabiam qual direção seguir. O som da madeira sendo cortada parecia mais alto agora. Não que isso fizesse sentido.

-Merda. - Murmurei baixo para mim mesmo, jogando o livro sobre o colchão, a manta enrolada amaciando a queda.

Trotei em direção à porta aberta e a fechei cuidadosamente atrás de mim, descendo os pequenos degraus da varanda, que rangeram sob o meu peso.

O dia estava ainda mais bonito lá fora. O fim de tarde trazia esse aspecto rosa-alaranjado a tudo, embelezando aquele espaço semi-morto do jardim de folhas secas. Havia pedaços grossos de lenha em uma pilha, e outros pedaços jogados no lado oposto, mais finos. Christophe posicionava a madeira sob um tronco cortado e descia com o machado em um golpe preciso, violento. Nunca errava. Eu o observei repetir esse processo três vezes enquanto me aproximava, fechando meu casaco por conta do frio, cruzando meus braços para me aquecer. Ele não reconheceu minha presença, embora soubesse exatamente quem se aproximava. Eu não tive coragem de chegar tão perto. Ele estava sob a sombra de uma árvore grande, cujos galhos já haviam secado por completo. O tronco da árvore era tão escuro que parecia preto.

-Christophe. - Chamei, angustiado com a frieza dele. E, não por coincidência, ele passou a golpear a madeira com um pouco mais de ódio depois de ouvir minha voz. Obter algum tipo de reação, mesmo que negativa, causou-me certo alívio. Ainda que tenha me feito recuar um passo. - Será que dá pra gente conversar?

Depois de descer o machado com tanta força na lenha que as lascas voaram até o meu pé, ele finalmente parou. Virou-se para mim e pôs um pé sobre o tronco, apoiando o machado sobre o ombro, umedecendo os lábios. Ele suava pelo esforço, mesmo com o frio. Os primeiros três botões de sua camisa estavam abertos (alguns faltando), revelando o peito úmido de suor. Sua respiração também estava irregular. Ele me encarou, esperando, seu rosto limpo de qualquer expressão. Mas seus olhos eram ferozes.

E então eu me dei conta de que não sabia o que dizer.

E ele sabia que eu não sabia o que dizer.

Esperou tempo o suficiente para que eu ficasse constrangido, gaguejando, tentando escolher com cuidado o que sairia da minha boca, mas eu não estava preparado para isso. Foi uma escolha impulsiva. Depois de alguns segundos, ele me ofereceu um pequeno riso sarcástico e voltou sua atenção à madeira, grunhindo desta vez, tamanha era a raiva com que ele golpeava a lenha. Eu podia ver a tensão nos músculos dele. Aquilo começou a me angustiar; eu só pensava nos pontos na barriga dele, costurando o ferimento da bala. As imagens dele sangrando nos meus braços estavam sempre ali, todos os dias, voltando para mim.

-Tudo bem! Você está com raiva, eu sei! Então larga essa merda e grita comigo em vez disso.

Ele parou um segundo com o machado no ar, pronto para a próxima, mas antes deu um sorriso amargurado e balançou a cabeça negativamente. Estava com dificuldade de respirar e com dor, muito provavelmente. Depois de rachar o pedaço de lenha ao meio com um barulho horrivelmente estrondoso, ele voltou a olhar para mim. Dessa vez, havia expressão.

Eu sempre fui capaz de entender porque Christophe intimidava as pessoas. Não era apenas o fato de ele ser grande, de seus braços parecerem de aço. Tinha muito menos a ver com seu porte físico e muito mais a ver com algo que vinha de dentro. Não era apenas o fato de ele ser rabugento, rude, explosivo. Não era isso que assustava. O que realmente assustava as pessoas eram seus olhos. Eu podia me lembrar vividamente da noite que eu o vi matar um homem pela primeira vez, Roy. Pobre Roy. Foi abatido como um cachorro. Eu me lembrava especificamente dos sons do crânio de Roy sendo esmagado contra o asfalto. E, mais do que isso, do brilho nos olhos de Christophe quando ele terminou. Veja bem, não era um sadismo satisfatório; ele não gostava de machucar as pessoas, mas seus olhos relatavam uma selvageria que eu só podia reconhecer nos animais. Nunca vi coisa igual em um humano. Christophe tinha esse par de olhos que diziam que ele era capaz de qualquer coisa quando estava fora de si, que havia um lobo dentro dele pronto para sair e ele não tinha intenção alguma de controlá-lo.

Da última vez que ele olhou para mim dessa maneira, ele estava tão fragilizado que mal conseguia andar sozinho. Agora, ele estava forte o suficiente para cortar lenha e apertava o cabo de um machado entre os dedos. E, mesmo assim, eu tinha certeza absoluta de que ele não me faria mal.

-Você adoraria isso, não é? - Ele disse em um tom rouco e estranhamente contido, dando dois passos na minha direção, chutando a lenha do caminho. O sorriso em seu rosto era simplesmente sinistro. Ele se desfez aos poucos, dando lugar a uma expressão de desgosto, enquanto ele chegava mais perto de mim. - Tem tanta merda acontecendo, tanta gente morrendo, mas você ainda acha que isso aqui é sobre você. Como se eu não tivesse milhares de problemas muito piores do que um viadinho narcisista que não consegue largar o namorado. - Era quase difícil entender o que ele dizia quando seu sotaque ficava tão pesado. Ele ergueu um pouco o machado enquanto gesticulava com as mãos, aumentando a voz quando seu rosto chegou perto do meu. - Eis aqui uma novidade pra você, Broflovski: eu não estou com raiva de você. Eu não dou a mínima pro que você faz com a sua vida miserável ou o que você enfia no seu cu. Eu. Não. Me importo.

E com isso, ele voltou ao tronco, pegou mais um pedaço grande de lenha e voltou ao que estava fazendo como se nada tivesse acontecido; exceto que agora, havia um tremor muito discreto em suas mãos. Ele desceu o machado com tanta força que cortou através da madeira e a lâmina ficou presa no tronco. Ele gritou um palavrão alto em francês que não tinha nada a ver com a lenha ou o machado, puxando o cabo com força.

-Christophe, por favor, você vai estourar os pontos. Para com isso. - Eu pedi com uma voz quase de súplica, tentando me aproximar dele, esquecendo-me completamente de ficar ofendido com as coisas que ele havia dito.

-E o que te interessa se eu estourar os pontos?! Que merda você tem a ver com isso?!

-Porque eu te amo! - Foi a primeira coisa que saiu da minha boca, um grito esganiçado de uma coisa que eu não tinha admitido nem para mim mesmo. Instintivamente, toquei o braço dele, mas ele puxou de volta e estreitou as sobrancelhas como se eu o tivesse machucado. Respirei fundo. - Porque… Porque quando eu achei que você fosse morrer…

-Sai de perto de mim, Kyle. - Ele disse, visivelmente perturbado.

-Me escuta. Eu não quero piorar as coisas, mas eu preciso que você saiba disso: nada do que eu disse era mentira. Eu não falei nada daquilo só porque eu achei que você ia morrer.

Ele fez uma careta como quem sente um gosto ruim na boca, balançou um pouco a cabeça e firmou o pé no tronco para puxar o machado pelo cabo, desprendendo-o da madeira. Então, olhou para mim com os olhos estreitos, a boca entreaberta. Parecia decepcionado, mais do que qualquer outra coisa.

-Eu sinto muito, Kyle, mas eu não vou te ajudar a se sentir melhor consigo mesmo. É só isso que você quer aqui. Se você estivesse preocupado comigo, você me deixaria em paz.

Por algum tempo, fiquei ali parado. Ele também não voltou a cortar a lenha, apenas segurou o machado pelo pescoço, apertando-o com força entre os dedos, o braço caído na lateral do tronco. Ele olhou para cima, fugindo de olhar para mim. E eu o segui, percebendo os pássaros que sobrevoavam nossas cabeças, tão altos que pareciam apenas silhuetas distantes. Eu não soube identificar que tipo de pássaro eram aqueles. Quando voltei minha atenção à terra, Christophe havia jogado o machado no chão com força e estava, agora, juntando o resto de lenha que havia cortado.

Eu o observei com atenção, como se tentasse memorizar seu rosto e seu corpo. Como se uma parte de mim tivesse medo de não vê-lo mais. Respirei fundo, esfregando a boca com a mão. Meus olhos ardiam.

-Você tem razão. - Sussurrei. Ele não pareceu me dar atenção. - Eu só achei que… - Fiz uma pausa longa, levando ambas mãos aos meus olhos. A lateral da minha cabeça doía, quase latejava. Eu me sentia idiota. - Desculpe. Não vai acontecer de novo.

E eu fui sincero quando disse isso. Realmente não estava buscando remendar alguma coisa, retomar aquela relação, nada disso. Eu nem sabia ao certo como havia ido parar lá. Era essa força gravitacional que me atraía para ele, mais forte do que eu. Mas a minha escolha estava feita.

Enquanto eu subia as escadas da varanda, senti seus olhos nas minhas costas. Lutei com todas as minhas forças para não virar a cabeça, mas eu podia enxergá-lo perfeitamente em minha mente… Ele de pé, as costas erguidas, a lenha nos braços, as mangas dobradas até os cotovelos e aquele olhar de animal ferido. Eu não conseguiria entrar na casa se tivesse virado a cabeça para vê-lo mais uma vez.

Meus sentidos estavam bastante alterados quando empurrei a porta e adentrei a sala, fungando, abaixando a cabeça para secar um início de lágrimas se acumulando nas minhas pálpebras. Não era por causa de Christophe, não exatamente. Chega num ponto que você está exausto de perder pessoas. Especialmente aquelas que ainda estão vivas.

Levei alguns segundos para me dar conta de que não estava sozinho. Gregory estava próximo à janela, de braços cruzados e expressão severa, agora sem a caneca de alumínio em mãos. Ele ergueu o queixo, seus olhos amaciando um pouco ao perceber que eu estava chorando. Eu considerei apenas subir para o quarto, mas Stan estava cochilando e eu não queria acordá-lo. Era tão raro que ele conseguisse dormir ultimamente.

Esperei que Gregory dissesse alguma coisa, mas ele apenas voltou a olhar pela janela.

-Ele te contou? - Perguntei. Se tivesse pensado bem a respeito, não teria perguntado. Aquilo apenas pulou da minha boca, quase em um tom de agressão.

Gregory virou a cabeça de forma sinistramente lenta para mim, seu rosto tão calmo quanto sempre.

-Sobre o quê? - Ele retribuiu, embora soubesse exatamente do que eu estava falando. Eu podia ver em seus olhos, aquilo era uma retórica. Quando pensei que ele me obrigaria a falar, o que eu não faria, dei a conversa por encerrada. Sacudi a cabeça e caminhei em direção à escada, mas a voz de Gregory me deixou imóvel. - Que ele está apaixonado por você?

Eu hesitei. Passei a língua pelo lábio inferior e suspirei impacientemente, virando apenas a cabeça para enxergá-lo. Gregory parecia uma estátua, sempre impecável, mesmo em um lugar tão sujo, numa situação tão desumana. Ele deitou o rosto um pouco de lado, estudando-me com curiosidade, o que me deixou muito desconfortável de repente.

-Não, ele não me contou. - Ele disse, encolhendo os ombros.

-Eu só queria saber se ele estava bem.

Com isso, Gregory sorriu. Eu tinha muita dificuldade em saber se ele estava sendo malicioso ou não. Se ele estava irritado ou magoado ou apenas preocupado. Nunca conheci uma pessoa tão boa em esconder seus sentimentos.

-Quem é que está bem, não é mesmo? - Foi o que ele me respondeu. Pela sua postura e a forma com que ele se desencostou da parede para andar até a cozinha, eu percebi que a conversa havia terminado.



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