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História Liberté - A Noite


Escrita por: caulaty

Capítulo 25 - A Noite


Noite dos dias 24 para 25 de dezembro de 3644

 

-Muito bem, eu sei que vocês estão ansiosos pra dar início às festividades, mas vamos terminar isso primeiro. - Gregory disse, desamassando as pontas do mapa desenrolado no chão. O mapa tinha longas marcas traçadas em cores diferentes, mostrando as rotas possíveis que levariam até o pequeno aeroporto clandestino de Denver e à estação de trem. - Alguém tem alguma pergunta?

-Tá, deixa eu entender. - Clyde disse com o seu costumeiro tom nasalado e confuso, tirando cera do ouvido com o dedo indicador. Cartman deu uma risada de deboche, fazendo algum insulto à inteligência de Clyde ao qual não prestei atenção. - Nós não vamos todos juntos?

-Não. Vamos nos dividir em quatro grupos em horários diferentes do dia primeiro. Uma parte de vocês vai comigo, outra parte com o Toupeira, outra com Trent e a última com Nicole. - Ele usava a ponta da caneta para pressionar o papel com postura de professor, mesmo que não estivesse escrevendo nada. - Todo mundo entende isso? Mas é preciso que todos vocês saibam pelo menos como chegar até às estações, nós não sabemos o que pode acontecer no caminho. A coisa mais importante é que a maioria de nós esteja no aeroporto até cinco da tarde do dia primeiro. O cara não vai poder esperar mais do que isso.

O plano era simples e eficiente: nós deixaríamos South Park para unir forças aos Monarcas de Nova York. Gregory introduziu Trent e Nicole com todas as formalidades exigidas naquela noite e disse que, a partir do ano que vem, nós seríamos parte de uma coisa maior. Eu não entendi exatamente o que ele quis dizer com isso na época. É claro que mover pelo menos quarenta pessoas para o outro lado do país não parecia uma coisa simples, especialmente rostos marcados como traidores, mas Gregory estava contando com um pouco de sorte e os amigos certos. Ele conhecia um piloto de avião que dirigia um pequeno aeroporto perfeitamente legalizado que prestava serviços particulares com aviões de pequeno porte que não comportariam mais de dez pessoas por vez, mas que estava disposto a realizar trabalhos clandestinos pela quantia certa e conhecia outros pilotos dispostos a fazer o trabalho. Nem sempre a ajuda vinha através do Espírito de libertação. Faríamos a viagem no dia primeiro, quando as ruas estavam completamente desertas e nenhum comércio funcionava. A fiscalização dos sapadores de ferro também caia consideravelmente e não havia sapadores humanos trabalhando, a principio.

Parecia um plano decente. Eu mal podia esperar para deixar South Park, embora meu coração latejasse ao lembrar do meu irmão.

A estação de trem seria um último recurso, pois levaria muito mais tempo e seria muito mais perigoso, mas Gregory gostava de pensar em todas as coisas que poderiam dar errado. Mal podia eu imaginar o quanto isso era importante.

Uma garota começou a chorar alto, não parecendo prestar muita atenção em nada. Outra menina a abraçava, deitando a cabeça dela em seu ombro.

-Beth, o que foi? - Gregory perguntou com uma certa impaciência, mas daquele seu jeito professoral. Sempre parecia que ele estava falando com crianças nesse tipo de reunião.

A menina que acalentava Beth – uma asiática tão bonita cujo nome eu nunca consigo me lembrar – sorriu um tanto triste e respondeu por ela:

-Tá tudo bem, Gregory. Ela só sente muita falta da família.

Esse sentimento melancólico parece ser geral e podia ser percebido desde que acordamos naquela manhã; o que já era de se esperar, visto que era véspera de natal. Isso, somado ao fato de que a maioria de nós não ia para casa há um mês e meio e, acima de tudo, deixaríamos nossa cidade natal em uma semana sem ideia de quando ou se veremos nossas famílias novamente. É compreensível que nenhum de nós estivesse particularmente feliz naquele natal.

-Pobre Beth. - Bebe disse, parada de pé ao meu lado. - Eu a entendo tão bem. Morro de saudades da minha mãe.

-Olha só, pessoal. - Gregory disse. - Eu entendo que queiram voltar à cidade para fazer suas despedidas durante essa semana. E tudo bem. Mas peço que sejam cautelosos, saibam em quem podem confiar, não cometam nenhuma idiotice. Cada um de vocês tem uma responsabilidade com esse grupo.

Mas eu ouvia suas palavras muito distantes, pois minha atenção continuava sendo de Bebe, seus imensos olhos tristes me provocando um efeito quase hipnótico. Seus cachos loiros estavam opacos e sem vida, caindo pelos seus ombros.

-Você não pensa em voltar para casa? - Perguntei. - Não é obrigada a ir com a gente.

-Não, não. Eu jamais poderia me olhar no espelho de novo se fizesse isso. - Ela olhou para os próprios pés. Usava meias roxas. - Mas eu gostaria muito de saber se ela está bem.

A mãe de Bebe era uma mulher muito doente, não das doenças da carne, mas daquelas que consomem o cérebro até você não saber mais onde está ou quem é. Bebe se prostituía porque a mãe não tinha mais condições de trabalhar. Agora, sem a única filha, era impossível saber como aquela velha senhora continuaria a viver. Pai, nunca houve. Bebe era filha do vento, sua mãe falava. Anos mais tarde, Bebe viria a descobrir que sua pobre mãe ficou sob os cuidados de uma vizinha fofoqueira, mas que, por um motivo que permaneceria desconhecido para sempre, ela se levantou da cama no meio de uma noite de verão de 3647, tirou todas as roupas e entrou no lago. Assim, morreu afogada. Mas por ora, Bebe apenas espera pelo melhor. Nós não sabíamos de nada disso ainda.

-Eu vou fazer gemada para essa noite. - Ela me disse com um sorriso, espantando esse fantasma da culpa que parecia se escorar nela há poucos segundos. - Amo o natal. É uma pena que não haja muita decoração, não é mesmo?

Ela tirou a mão de dentro do seu poncho marrom de lã para acariciar meu braço antes de ir para a cozinha. A reunião estava encerrada.

Nossa pequena comemoração envolvia luzes de natal antigas encontradas no sótão da casa (que, surpreendentemente, ainda funcionavam), um peru selvagem que Craig matou com uma espingarda, salada de batatas e muito álcool. Kenny também encontrou um banjo no sótão, desafinado e com duas cordas faltando, mas mesmo assim ele estava especialmente empolgado para cantar cantigas natalinas. Era fácil ignorar todas as merdas com disfarces festivos. Engraçado como essas festas despertam uma coisa estranha na gente, mesmo que minha família não comemorasse nem o Hanukkah, que seria da nossa tradição. A coisa toda perdeu a conotação religiosa há muito tempo, se é que já teve alguma, mas as festas de fim de ano continuavam sendo simbólicas sobre união e família. E aquelas pessoas com quem eu passei o natal de 44 se tornaram a minha família.

O que se tornava impossível de ignorar era o frio.

Token e Clyde passaram vinte minutos tentando acender a lareira. O sistema de calefação da casa não funcionava e a quantidade de casacos para essa época do ano era bastante limitada. Todos andavam pela casa enroscados em manta, especialmente na hora de sentar perto do fogo, tão aconchegante. Stan estava envolto em uma manta bege que ele abriu para que eu me escondesse ali debaixo, junto dele, dizendo:

-Vem cá.

O calor dele era muito confortável. Ele tinha o sangue quente, sua pele era como uma fornalha. Era muito bom dormir pertinho dele naqueles dias terríveis de temperatura negativa, nós estávamos recuperando pouco a pouco aquela proximidade de uma vida inteira que nos levava a dormir de conchinha na adolescência mesmo quando éramos só amigos. Não sei se já fomos “só amigos” em algum momento. As coisas estavam melhores entre nós dois. Transávamos quase todas as tardes na intimidade do nosso quarto, quando Kenny e Cartman estavam ocupando outros lugares da casa. A porta não tinha tranca, e Kenny nos pegou algumas vezes embaixo do cobertor, com a minha cara socada no travesseiro e o pau duro de Stan inteiro dentro de mim enquanto ele me abraçava por trás ou de lado. Felizmente, com Kenny, a coisa não se tornava tão constrangedora. Ele saía quase que imediatamente, e Stan e eu voltamos a rir juntos. Fazia tempo que essa intimidade já não era mais tão natural. Durante todo o mês de dezembro, foi como se a luta não existisse, como se nós estivéssemos desconectados do resto do mundo e só existissem nós dois. Eu o amava e isso era suficiente. Parecia suficiente.

Me ajeitei na coberta junto com ele. Stan virou o rosto para mim e sorriu seu sorriso tímido, deixando a mão passear pelos meus cabelos. Foi instintivo me inclinar para beijá-lo, porque ele já estava tão perto e esse era meu movimento natural. Ele trouxe a mão ao meu rosto e separou um pouco os lábios para encaixá-los aos meus. Não é um beijo de língua, embora a minha roce de leve pelos dentes dele.

Não durou muito tempo. Assim que o beijo terminou, ele sorriu pra mim. Eu podia ver uma preocupação melancólica crescendo no azul escuro dos olhos dele.

-Você tá bem? - Ele perguntou, como eu senti que faria. Muitas vezes eu podia adivinhar o que ele estava pensando antes mesmo de ele abrir a boca.

-Acho que sim. É um pouco assustador, só. Eu não faço ideia de como vai ser lá.

-Nem eu. - Então, desviando o olhar para Nicole, que estava tão bonita com um suéter branco conversando com Token. - Eles não falam muito. Mas vai ficar tudo bem. - Garantiu, mesmo sabendo que isso provavelmente não era verdade. Essa era uma habilidade sublime de Stan. Ele não gastava muita preocupação com as coisas que não podia prever ou mudar. Essa não era uma característica comum em muitos revolucionários; tendíamos a ser megalomaníacos.

Então, nós começamos a beber. A gemada da Bebe era uma das coisas mais deliciosas que eu já provei em toda a minha vida, mas o que me prendeu mesmo durante aquela noite foi a garrafa de vinho rose barato que mais tinha gosto de suco aguado de morango. Até a cor era suspeita, de um rosa claro transparente, mas não me importava porque era a primeira vez em tanto tempo que nós sentíamos que tínhamos razão para brindar. Na verdade, nem tínhamos. Mas inventamos naquela noite. Não foi uma comemoração natalina com clima de festa, mas sim de celebração à tristeza e às merdas da vida, porque estávamos cansados de lamentações. Apenas as luzes de natal estavam acesas, gerando essa penumbra que nos transportava para outro mundo, uma outra dimensão afastada da realidade de South Park, da opressão, das pessoas famintas. Naquela noite, não passávamos de jovens imbecis e bêbados rindo da desgraça.

Passei a maior parte da noite deitado sobre as almofadas no chão com Stan debaixo da coberta, inalando o cheiro dele, roubando o seu calor, dividindo o mesmo copo com ele. Perto de nós, Kenny tocava muito mal o banjo, cantando Jingle Bells e Let it snow repetidas vezes porque não conseguia se lembrar de como tocar outras músicas de natal. Ele me fez rir tanto. Pip também se sentou conosco, vestindo uma calça curta que deixava suas canelas completamente expostas. Preocupado, ofereci uma roupa mais quente, mas ele sorriu e disse que estava muito bem assim. Meu peito doeu um pouco porque eu reconhecia aquele tom de voz, o mesmo que Bebe também tinha: “foi assim a minha vida inteira, eu estou habituado com o frio”.

Perto da janela, eu vi Wendy e Bebe de frente uma para a outra, a silhueta das duas formando um bonito desenho em contraste com o cenário escuro da floresta que se via através do vidro. Wendy tirou os cabelos que caíam pelo rosto de Bebe usando as duas mãos, então se inclinou para frente e a beijou. Senti uma coisa quente dentro de mim que me obrigou a sorrir. Bebe levou as mãos leves aos braços de Wendy para segurá-la sem enroscar muito o seu corpo ao dela, os cantos de sua boca sorrindo em meio ao beijo tímido. Cutuquei Stan para que ele também visse.

-Ah, meu Deus. - Ele falou baixo ao meu ouvido, sorrindo ainda mais largo do que eu. - Que coisa mais linda.

Token também chegou junto para tirar o banjo de Kenny, caçoando dele, parecendo muito mais leve do que de costume. Eu raramente o vi fazendo piada de qualquer coisa, mesmo o conhecendo desde criança.

-Me dá isso aqui, garoto branco, deixa eu mostrar como é que se faz.

Kenny ficou tão empolgado com a participação dele na cantoria que se esqueceu de ficar ofendido. Provavelmente não ficaria de qualquer forma. Token tocava com muito mais habilidade, mas não havia jeito de tirar um som bonito de um instrumento tão judiado quanto aquele. Em compensação, Token tinha uma voz linda e puxou canções muito mais lentas, a maioria desconhecidas por mim. Aquilo nos colocou em um clima muito mais melancólico, o que pareceu completar a noite no que ela deveria ser. Nós precisávamos disso. Wendy e Bebe se juntaram a nós, assim como Trent com uma garrafa de vodka e mais três pessoas cujos rostos já me eram familiares, com as quais eu nunca troquei uma palavra.

Em algum momento, deixei o calor do ninho para ir ao banheiro. O do andar debaixo estava ocupado, então fui no de cima. Passando pelo corredor escuro, escutei um barulho estranho. Parecia um choro espremido. Havia apenas um quarto com a luz acesa, a porta entreaberta. Eu diminuí o passo ao me aproximar da porta. Não foi intencional, apenas uma resposta do corpo.

-Por que você tá sendo tão cuzão sobre isso?! - Ouvi. Parecia a voz do Clyde.

Através do vão da porta, eu podia ver a figura de Craig de pé com uma camisa de flanela azul escura, parecendo agitado, os pés inquietos. Ele corria as duas mãos pelos cabelos pretos, olhando para o que eu presumi que fosse Clyde, mas não podia ver daquele ângulo. Ele estava visivelmente transtornado.

-Porque você é trouxa! Você não enxerga a merda que tá ali na sua frente!

Ouvir a voz de Craig assim tão fora de controle me provocou um frio na espinha. Eu me lembrava, muito vagamente, de ouvir Craig enlouquecendo naquela noite em que… Em que eu mesmo estava enlouquecendo enquanto ouvia Christophe gritar no outro quarto. Toda aquela noite era um borrão na minha memória, mas o grito de Craig ainda era muito vívido na minha lembrança, assim como o choro de Clyde. Aquilo ainda estava escrito na minha carne, a sensação ainda pulsava no meu estômago. Por um momento, eu voltei àquele lugar. Meu estômago começou a doer. O que rompeu essa imersão foi o som de alguma coisa quebrando dentro do quarto. Essa foi a minha deixa para continuar andando. O que quer que estivesse acontecendo ali não era da minha conta, por mais que despertasse a minha profunda curiosidade.

Qualquer bom observador poderia perceber que a discussão tinha algo a ver com o fato de que Clyde olhava Bebe com olhos imensos de um menininho de colégio sob o feitiço de uma intocável professora e Craig se mordia inteiro de ciúmes, mas não era capaz de dizer. Porque Clyde não sabia, não podia nem sonhar que o melhor amigo o desejava em silêncio.

Mas como eu disse, não era da minha conta.

Depois de mijar e descer novamente, me deparei com uma das cenas mais bonitas que já vi em toda a minha vida: Kenny, com sua voz rasgada, e Token, com sua voz profunda, e Wendy, com sua voz doce, cantando Silent Night juntos. Token estava abraçado no banjo, sem mais tocá-lo, olhando para os dois com olhos úmidos. Ele não cantava todas as partes, mas sussurrava de vez em quando, fechando os olhos por alguns segundos longos demais, e uma lágrima ou outra marcava a sua bochecha. Ele não se dava ao trabalho de limpar.

 

Silent night, holy night
All is calm, all is bright
Round yon Virgin Mother and Child
Holy Infant so tender and mild
Sleep in heavenly peace

 

O rosto sorridente de Butters invadiu a minha mente.

Ninguém mais dizia coisa alguma, só assistiam aos dois cantando. E o círculo de pessoas parecia ter crescido. O grupo parecia estar sob um véu delicado de nostalgia, de uma tristezinha pequena que jamais deixaria o lado de cada um deles. Até as cores pareciam mais fracas sob aquela luz natalina que banhava todos nós. Ainda assim, ali morava um bocado de esperança. Bebe chorava em silêncio, então secava as lágrimas do rosto vermelho, mas parecia tranquila. A tristeza daquela sala era tranquila. Então eu me dei conta de que nós não éramos mais crianças.

Eu fiquei um tempo parado no pé da escada, apenas assistindo, ainda segurando o corrimão. Meu olhar cruzou com o de Stan e ele sorriu, preguiçoso, piscando devagar. Eu retribuí.

Eu guardaria comigo esse momento para tudo o que aconteceria depois. Era a calmaria antes da tempestade, eu já podia sentir dentro do meu peito. Não tinha noção do quão destruidora e violenta essa tempestade seria, e é bom que não tivesse, porque assim nós tivemos mais alguns dias de tranquilidade.

Como todos os momentos mágicos, aquele acabou depressa demais. Depois, veio a ceia, que fizemos no chão e não houve muita comida para todo mundo, mas foi significativo pelo gesto.

Christophe havia passado aquela noite inteira escondido, como também passara o último mês. Então, descobri que ele estava na varanda. Gregory esteve lá com ele boa parte do tempo, mas entrou sozinho na hora de comer. Eu o vi quando Gregory abriu a porta para entrar; ele estava sentado de costas nos degraus da varanda com uma garrafa de rum ao seu lado, o rosto levemente virado de perfil, encarando o chão com um olhar vago, distante, como se não visse aquilo que estava à sua frente. E não foi até vê-lo pela primeira vez em mais de uma semana que eu me dei conta do quanto a saudade dele me corroía por dentro. Durante aqueles segundos em que a porta ficou aberta, eu desejei mais que tudo que ele virasse para trás, apenas para que eu pudesse pelo menos dar uma boa olhada naquele rosto mais uma vez.

Quis perguntar ao Gregory se ele não ia comer nada, mas não consegui. Porque desde a nossa conversa lá fora, com o machado e a lenha. Eu entendi que deixá-lo em paz também significava parar de tentar cuidar dele. Naquele ponto da história, eu ainda acreditava que era possível cortá-lo da minha vida. Que idiotice.

Fazia um mês que eu não ouvia a voz dele, que eu desviava o olhar para não fazer contato visual, que eu não falava quando ele estava no mesmo cômodo, que eu tentava não existir perto dele. E por Deus, como aquilo queimava. Eu pus a mão sobre meu abdômen e fechei os olhos por um segundo. Era a frieza dele que me arregaçava mais do que tudo. E eu tentava me convencer todos os dias de que isso era o melhor, que era a única opção, que o que quer que nós tivéssemos havia saído totalmente do controle. Que nós nos machucávamos. Que eu o machucava. E na maior parte do tempo, eu estava bem. Eu ficava bem à luz do dia, eu ficava bem estando ao lado de Stan, que era genuinamente onde eu queria estar. Eu estava bem.

Exceto quando eu me lembrava dele. Quando aquelas mãos cheias de calo apareciam na minha cabeça. Quando aqueles olhos cor de mel apareciam nos meus sonhos. Então, por um segundo ou um pouco mais, eu não estava bem. Mas passava. Sempre passava.

-Ei. - Kenny chamou, colocando a mão no meu joelho. - Tudo bem aí?

Eu sorri, mas ele sabia que eu não tinha vontade de sorrir. Kenny sempre sabia.

-Tudo bem. - Respondi. Então, erguendo meu copo, disse – Feliz natal, Kenny.

Ele me deu um beijo no topo da cabeça e meu sorriso se tornou genuíno.


* * *

 

Eram duas e meia da manhã e a casa inteira dormia. Bem, talvez não inteira. Havia luzes acesas no andar de cima e algumas pessoas ainda se preparavam para dormir, mas no andar debaixo, não parecia ter sobrado uma alma viva sequer. Pouco a pouco, a casa se tornava silenciosa. Stan havia cochilado no meu ombro perto da uma da manhã, como era usual dele ao beber demais, então eu o levei para o andar de cima e o coloquei na cama como se fosse um garotinho. Ele demorou um tempo para me soltar, sorrindo com os olhos fechados, e eu também sorria ao me lembrar disso enquanto arrumava a cozinha. Gregory e Wendy estiveram comigo até poucos minutos, mas estava praticamente tudo ajeitado e só faltava um pouco da louça. Eu os liberei para dormir, o que era apenas justo, visto que eles fizeram boa parte do trabalho do jantar. O trabalho comunitário funcionava bem naquela casa, e quando fôssemos embora, eu sentiria falta da sensação de lar que nós desenvolvemos ali.

Todas as luzes da sala e da varanda já estavam apagadas. A única luz acesa era uma pequena luminária que ficava sobre o balcão da cozinha. Eu gostava do silêncio; ou melhor, gostava do som da água da torneira correndo. Estava horrivelmente gelada, assim como as minhas mãos, mas eu já havia aceitado que não poderia me esquentar antes de subir para a cama quente que me esperava, pra roubar um pouco do calor do Stan que, àquela altura, já devia estar babando no travesseiro.

Então, houve um barulho. Era o som da porta da frente se abrindo, mas somado a alguma outra coisa, como algo pesado batendo contra a parede. Franzi a testa, virando para olhar por cima do ombro, segurando uma panela que começava a encher de água. Não houve nada durante alguns segundos. Desliguei a torneira para ouvir melhor. Meus ouvidos já estavam tão treinados ao alerta de qualquer barulho suspeito, e imediatamente, adrenalina começou a crescer dentro de mim. Mas eu não me movi. Por algum motivo, eu sentia que o som seria muito diferente se os militares tivessem nos encontrado. Não seria tão… Desajeitado. Quem faz um ataque noturno não quer ser descoberto.

Ouvi passos, mas passos muito desiguais, como se alguém tropeçasse em alguma coisa na sala. Virei o tronco em direção à porta, mantendo uma mão úmida segurando a panela e a outra no ar, desperta, pronta para o que quer que viesse. E esperei. O som cessou. Talvez alguém tivesse subido a escada bêbado ou apenas desmaiado nas almofadas da sala. Assim que liberei o ar dos pulmões, relaxando a musculatura, uma silhueta apareceu na porta da cozinha quando eu estava prestes a me virar. E apesar da luz fraca, foi muito fácil reconhecer aquele corpo.

Talvez eu honestamente preferisse ter visto um militar naquele momento do que a figura embriagada de Christophe se escorando no batente da porta, erguendo um braço para se apoiar, a cabeça pendendo um pouco para frente, a boca entreaberta, os olhos tão vivos que quase queimavam. A sombra densa daquele canto da cozinha fazia com que ele parecesse muito mais intimidador do que à luz do dia. E, diferente de todas as outras interações que tivemos no último mês, ele olhava diretamente para mim. Como se não existisse mais nada naquela cozinha.

Por instinto, desviei o olhar e voltei minha atenção para a panela da pia, embora nem a enxergasse mais, pois minha visão estava turva. Eu ainda não estava completamente sóbrio. Agarrei a beirada da panela com força porque precisava me segurar em alguma coisa e fechei meus olhos. Respirei fundo. Abri a torneira novamente. Respirei novamente. Abri meus olhos. Estiquei o braço para a esponja molhada, já besuntada de detergente, e a apertei com minha outra mão, sentindo o líquido e a espuma escorrendo pelos meus dedos. Tudo se movia devagar.

Eu ainda podia senti-lo atrás de mim, ainda podia sentir o seu olhar queimando nas minhas costas, podia sentir a sua respiração mesmo que ele estivesse a alguns metros de distância. Meu coração batia com tanta força entre minhas costelas que eu pensei que pudesse fazer um buraco no meu peito. Eu estremeci, trazendo a mão da panela para o meu próprio tórax, apertando o tecido do moletom sem medir a força dos meus dedos, deixando-o com marcas escuras de umidade. E tudo pulsava. Tudo pulsava ainda mais forte a cada passo que eu ouvia daqueles passos bêbados que ele dava no piso gelado da cozinha, o som daquelas botas que eu conhecia tão bem. Eu não podia abrir os olhos, simplesmente não podia, e talvez a perda da visão tenha feito com que os meus outros sentidos ficassem impossivelmente mais sensíveis.

Mesmo que eu já pudesse prever tudo antes que acontecesse, nada nesse mundo poderia ter me preparado para a respiração dele tocando a minha nuca, arrepiando todos os pelos do meu corpo e os meus mamilos com aquele bafo de álcool, ao mesmo tempo em que o seu peito tão largo e tão duro tocava as minhas costas sem qualquer limite, sem qualquer respeito pelas regras imbecis de conduta que nós criamos durante o dia, que não pareciam fazer sentido algum agora que éramos só nós dois naquela cozinha escura. E eu fiquei duro imediatamente, apenas disso, apenas do calor da pele dele que eu podia sentir mesmo com aqueles tecidos grossos nos separando, e aquela respiração de animal me invadindo justamente pela nuca, essa abertura sensível do corpo. Eu gemi baixo quando a mão dele, aquela mão tão rude e tão talentosa e tão delicada, fez espaço por baixo da bainha do meu moletom e encontrou diretamente a pele da minha barriga. E fervia. Fervia tanto.

-O que você…? - Sussurrei, abrindo os olhos, tentando quebrar o transe. Mas não conseguia. - O que você tá fazendo?

Eu virei o rosto um pouco de lado, uma mão ainda dentro da panela, a outra apertando a esponja com uma força descomunal. Eu quase rangia os dentes para conter essa coisa gigantesca que crescia dentro de mim, e não importava mais a temperatura baixa lá de fora, não importava mais a água gelada, eu suava. Era tão difícil respirar, como se eu estivesse dentro de uma sauna, num lugar muito fechado, encurralado por esse corpo tão maior e tão mais quente e tão…

A mão dele subiu, deslizando pela minha pele, ao mesmo tempo em que o rosto dele se aproximava do meu e seu nariz e lábios roçavam pela minha bochecha enquanto ele me abraçava por trás, como se estivesse tocando algo que não podia, que era proibido.

-Christophe. - Sussurrei novamente, minhas pálpebras pesando, minhas mãos tremendo, meu controle se esvaindo. - Por favor…

-Eu não vou fazer nada. - Ele murmurou pertinho da minha bochecha, o calor da fala fazendo carinho na minha pele, e então ele umedeceu os lábios. Eu não o olhava, mas eu podia vê-lo mesmo assim. Com cada poro do meu corpo. Eu podia sentir aquele olhar tão primitivo com que ele me devorava, e ao mesmo tempo tanta dor e tanto afeto enrolados no mesmo bolo que pulsava dentro dele exatamente como dentro de mim, como se os nossos corações batessem exatamente no mesmo ritmo por obra divina. - Eu não vou fazer nada… - Ele repetiu, fechando os olhos, o que foi um alívio. Assustado pela proximidade, eu voltei a olhar para frente, a cabeça caída, meus olhos fixos na panela que agora transbordava de água sem que eu tivesse me dado conta, porque nunca desliguei a torneira. - Eu só preciso disso um pouco… Só te sentir um pouco. Só por um minuto.

E por mais que eu soubesse que ele jamais diria essas coisas se estivesse sóbrio, havia algo tão são em seu tom baixo, tão honesto, como se ele me contasse no ouvido um segredo que não poderia dizer nem a si mesmo. De repente, todos os meus músculos relaxaram e o meu coração não batia mais aflito, mas sim confortável, como se esse abraço fosse a minha casa. E não podia ser. Eu tinha os lábios entreabertos, uma expressão de êxtase quase erótico, uma sensação tão intensa que eu jamais senti antes, nem mesmo transando de verdade. Eu podia sentir o pau dele pressionado contra mim, tão rígido quanto o meu, mas não havia invasão naquilo. Ele não me violava.

Ele abaixou a cabeça até que sua testa tocasse a minha nuca, e agora o seu rosto estava pressionado na parte de cima das minhas costas, o calor do ar quente entrando pela gola do moletom e a mão dele me apertando com uma força aflitiva, os braços dele me envolvendo com tanta força que era quase difícil respirar.

-Eu sinto tanto a sua falta. - Ele murmurou, e aquilo me fez soltar a esponja, pois toda a força deixou as minhas mãos. Meus olhos ardiam e lágrimas tinham vontade de nascer, e eu apenas deixei, porque também me faltava força para controlar o maldito turbilhão que acontecia dentro de mim.

Mas a presença de outra pessoa na cozinha nos arrancou dessa outra dimensão onde só nós dois existíamos. E antes que eu me desse conta, antes que eu tivesse tempo de me assustar, o calor dele me abandonou e a mão dele já não tocava mais a minha pele, mas de certa forma, era como se ainda estivesse ali. Eu tive que me apoiar na pia para não cair quando ele me soltou daquela forma, ao mesmo tempo em que Craig aparecia no meu campo de visão, aproximando-se da geladeira, sem permitir que a nossa presença interferisse no que ele veio fazer ali.

Sem dizer nada, Christophe esfregou um pouco o rosto como se a cabeça doesse e deu alguns passos para trás, deixando a cozinha como se nunca tivesse estado ali.

E eu fiquei parado. Atônito. Ainda buscando a sensação profunda daquela mão tocando a minha barriga. Comecei a tatear pelo mármore da pia para desligar a torneira quando me dei conta de que a água poderia transbordar. Engoli seco, tomando fôlego, esfregando meu próprio rosto quente com as duas mãos geladas enquanto Craig abria a geladeira para pegar uma pequena garrafa vidro contendo água.

Ao ouvir o som da geladeira fechando, virei para ele e me dei conta de que ele estava me encarando com seus olhos pretos.

-Não é… - Cocei a cabeça, confuso, voltando à realidade. - Não é o que parece, Craig.

-Não é da minha conta. - Ele disse com honestidade, encolhendo os ombros com genuíno desinteresse. Eu nem sabia dizer se aquilo me aliviava ou não. Por um segundo, a presença de outra pessoa naquele momento me deu um alívio indescritível dentro do peito, como se assim eu fosse forçado a reconhecer o que eu não podia. Mas quando eu acordasse no dia seguinte, certamente estaria aliviado que aqueles segundos na noite de natal não passaram de um momento embriagado que nenhum de nós iria querer falar sobre. Por fim, Craig disse – Eu não vou falar nada.

Quando ele se virou para caminhar em direção à porta, seus olhos vazios permaneceram fixos na minha mente. E a imagem dele no quarto algumas horas mais cedo, o tom fraco da sua voz, a falta de vitalidade em seu rosto me levou a perguntar, sem pensar sobre:

-Ei. Você está bem?

Ele parou um momento para me olhar por cima do ombro. Seus pés chegaram a parar. Sua expressão completamente em branco. Sem me responder, ele saiu da cozinha. E assim como Christophe, senti que ele deixou algo para trás.



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