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História Liberté - O Perdão II


Escrita por: caulaty

Capítulo 26 - O Perdão II


31 de dezembro de 3644

 

Coloquei o pé no último degrau da varanda, batendo-o no chão para limpar um pouco da sujeira nas solas das minhas botas. Abracei meu próprio tronco, olhando em volta, meus olhos estreitos pela claridade excessiva incomum dos dias nublados. A manhã do último dia do ano de 44 nasceu com uma fina camada de neve cobrindo o telhado da casa, os galhos das árvores e o solo seco dos arredores. Eram quase dez da manhã e não nevava mais, como nevou durante boa parte da madrugada. Lembrava-me de ter acordado em dado momento da noite, virando-me na cama barulhenta, enroscado no corpo quente do Stan junto ao meu. E vi a neve pela janela, contrastando com uma luz forte da lua cheia que iluminava um pedaço do quarto. Logo, voltei a dormir. A lembrança foi efêmera e confortável.

Caminhei até o Kenny, que usava um moletom cinza furado com um capuz escondendo o cabelo loiro ensebado dele. Havia muitas outras pessoas no quintal, próximas à van que as levaria para a cidade uma última vez. Ou, pelo menos, até um pedaço. Apesar de ser ano novo, ninguém tinha intenção de celebrar aquela noite como fizemos no natal. Muitos queriam retornar à cidade para encontrar entes queridos uma última vez em sabe-se lá quanto tempo, porque viajaríamos no dia seguinte. Não eram todos que tinham colhões para voltar à cidade com todos os riscos que isso envolvia. Eu não desejava nada mais do que fazer uma última visita à casa onde havia crescido para abraçar meu irmão e me despedir, mas assim que levantei a possibilidade, Gregory me lembrou que eu, mais do que todas as outras pessoas, deveria ficar escondido. Ninguém teve coragem de me lembrar que minha própria mãe provavelmente comunicaria os sapadores para me buscar pessoalmente se eu colocasse os pés naquela casa mais uma vez.

-Ei. - Eu disse ao Kenny, e vapor saiu da minha boca em contato com o ar gelado. Cobri uma das orelhas com a mão nua para esquentá-la. - Tudo pronto?

-Acho que sim. - Ele deixou que o olhar vago passeasse em volta, ajeitando a mochila no ombro. - Você tá legal?

Assenti com a cabeça. Ao tirar a mão da orelha, enfiei-a no bolso do casaco para tirar um papel dobrado até sua menor forma possível, e tomei a mão de Kenny nas minhas para entregar-lhe, fechando seu punho em volta do papel. Ele usava uma luva furada no polegar direito que na verdade era minha, mas eu sempre insistia que ele usasse em todas as suas viagens à cidade. Ele ia visitar a irmãzinha com tanta frequência que eu quase não me preocupava mais. Se alguém sabia como sobreviver, esse alguém era Kenny.

-Você acha que consegue ir até a minha casa? Eu queria muito que o Ike recebesse isso. - Sussurrei como quem conta um segredo. - Se você bater no escritório do meu pai pela janela, ele abre pra você, eu tenho certeza. Só não deixa a minha mãe te ver. Ela nem deve estar em casa mesmo.

Kenny apertou o pequeno papel amassado entre os dedos e fez uma cara de dor, mas só enquanto olhava para sua própria mão. Quando ergueu os olhos para mim e assentiu devagar com a cabeça, as linhas preocupadas da sua expressão amenizaram pouco a pouco. Não fazia muito tempo que eu havia contado ao Kenny sobre Ike continuar vivo, mas estranhamente, ele não ficou surpreso. Disse que nunca entendeu a maneira que eu havia lidado com o luto dele, e tudo fazia mais sentido ao descobrir que esse luto era falso. Ele colocou o papel no bolso da calça com cuidado, como se fosse um objeto precioso. Segurou meu pulso com certa força e se aproximou para dar um beijo na minha testa. Ele parecia tão triste.

-Eu só quero notícias deles. - Murmurei em um tom agradecido.

-Pode deixar.

E nos abraçamos. Levamos quase quinze segundos para nos soltar, o que parece ser uma eternidade no tempo dos abraços.

Toda vez que a van saía carregando alguns dos nossos companheiros, eu sentia um aperto no coração. Mas eles nunca entravam com o carro na cidade, justamente para que muitos não fossem pegos de uma vez se acontecesse alguma coisa. Kenny fazia a pé o caminho inteiro da cidade até o campo, onde estávamos vivendo nos últimos meses, inúmeras vezes. Era mais seguro andar por conta própria, poder se esconder se preciso fosse. Enquanto isso, eu me sentia completamente ilhado naquela casa. Não vi o caminho que nos levou até ali porque eu tinha o Toupeira ensanguentado nos meus braços quando isso aconteceu, e desde então, nunca mais saí de lá.

Além do Kenny, Clyde, Cartman, Craig e Bebe também se preparavam para ir. De relance, eu vi Craig com o pé no degrau da varanda amarrando os cadarços da bota marrom, puxando-os com raiva. Clyde estava conversando com Bebe perto da van, mas não parecia flertar ou gaguejar como um idiota como de costume.

Cartman se aproximou de nós dois e deu um tapão nas costas de Kenny.

-Parem de se esfregar, nós já passamos do horário. Vamos logo.

 

Aquele dia inteiro foi lento e preguiçoso. A casa estava mais vazia do que de costume, e para aqueles que ficaram, havia uma tristezinha pairando sobre os nossos ombros, o que levou todos nós ao recolhimento, à improdutividade. Ninguém fez o almoço, ninguém conversava na cozinha ou na sala, poucos saíram do quarto. Esse espírito de isolamento era natural em um dia que fechava um ciclo, que gerava expectativa e medo do que estava por vir. Durante boa parte da tarde, fiquei no quarto com Stan. Nós quase nunca tínhamos o quarto só para nós dois, então aproveitamos que Cartman e Kenny não voltariam aquele dia para ficar na cama beijando, conversando sobre intimidades, sobre Nova York, sobre a impossibilidade de dizer adeus e todas essas coisas que já eram velhas e sem sentido, porque era só sobre isso que nós conseguíamos conversar ultimamente; eu me sentia tão afastado do mundo lá fora com o confinamento que as coisas pareciam muito teóricas, como se nós estivéssemos discutindo sobre alguma história ficcional fantástica. E, justamente por ter todas essas coisas na cabeça, nenhum de nós dois teve vontade de transar.

Enfim. No fim da tarde, fui ler naquele colchão da sala e não havia mais ninguém por perto. Era um livro antiquíssimo, com várias páginas faltando, que se chamava “Assim falou Zaratustra”. Era o tipo de leitura que exigia um leitor bem acordado, e meus olhos começaram a arder em dez minutos. Minha consciência começou a escapar pouco a pouco e, antes que eu me desse conta, estava adormecendo com o livro aberto no peito.

 

Antes mesmo de abrir os olhos, eu já podia sentir um calor estranho perto de mim. Mas era confortável, quase gostoso, então eu apenas me virei de lado no colchão, esquecido de onde eu estava. Havia um peso macio sobre mim que não estava ali antes e que ajudava a preservar o calor. Eu senti um vago cheiro de fumaça e, sabe-se lá porquê, me remeteu a uma coisa boa. Eu usava meu braço como travesseiro e ele começou a formigar, mas o sono era tão forte que eu não me importei com a sensação. Separei minhas pálpebras devagar, mesmo que meu corpo lutasse contra; eu podia ver o livro fechado no chão, bem perto do rosto. Podia ver também, através da janela, que lá fora tudo era um breu. Na sala, uma das luminárias velhas no chão estava acesa e lançava uma cor alaranjada sobre tudo, tornando as coisas parcialmente visíveis.

Quando vi uma silhueta muito grande de um homem sentado no colchão, muito perto de mim, eu ergui meu tronco bruscamente, emitindo um som fraco de surpresa. A adrenalina acordou meu corpo de um segundo para o outro, e mesmo depois que Christophe se virou para mim e eu reconheci seu rosto, meu coração continuou martelando no peito.

-Caralho, que susto. - Falei, sentando-me devagar. Apoiei as costas na parede, puxando o cobertor ao sentir o ar gelado. Senti tontura. Coloquei a mão no peito, do lado direito, mas mesmo assim, podia sentir o tum-tum-tum violento do meu coração.

Comecei a absorver o cenário em volta. Ele não se afetou em nada pela minha reação. Estava sentado na beirada do colchão, com os joelhos dobrados e as pernas separadas, os pés bem firmes no chão. Ele fumava um cigarro quase no fim, uma indicação de há quanto tempo ele deveria estar ali. Usava um pires como cinzeiro. A fumaça azul dançava em volta do seu rosto bem devagar. Ele vestia um suéter marrom fino e largo em seu tronco, e por baixo, apenas uma camiseta branca e mais nada. Pelo menos era o que parecia. Eu cocei meu olho preguiçosamente, respirando fundo. Só podia ver o perfil de seu rosto, e ele fechou os olhos, segurando o cigarro perto da boca. Havia uma ruga em sua testa que indicava que ele devia estar pensando com força. Aquilo começou a me perturbar, mas eu não quis interromper o que quer que estivesse acontecendo dentro da cabeça dele,então apenas fiquei esperando que ele dissesse o que veio dizer.

Mas ele não disse. Quando abriu os olhos, ficou encarando o nada um tempo, correndo a mão pelo topo da cabeça, alisando para trás os cabelos que pareciam ter sido lavados há poucas horas, ainda não completamente secos nem molhados. Ele deu a última tragada no cigarro e o apagou, esmagando-o no pires. E ficou parado, a cabeça um tanto baixa, uma mão roçando na outra. Eu desencostei da parede para me inclinar um pouco para frente, ansioso.

-Você quer alguma coisa? - Perguntei.

Ele levou algum tempo para me responder.

-A gente pode conversar? - Finalmente disse, olhando pra mim.

-Eu não acho que a gente tenha o que conversar. - Eu disse, mesmo sem vontade de dizer, porque a verdade era que eu realmente consegui ficar com raiva.

Demorou. Eu levei semanas, mas depois do episódio na noite de natal, e o fato de que, no dia seguinte, ele continuou a fingir que eu não existia, eu me convenci a não ficar mais gastando energia com ele. Porque ele já tinha deixado muito claro que me considerava um filho da puta, e que não levava em conta tudo o que nós vivemos antes daquele ponto-limite em que ele quase morreu e eu transbordei o meu desejo de estar com ele. A única maneira de parar de procurá-lo com os olhos e de sentir tanta falta dele foi começar a odiá-lo. Não cheguei a tanto, mas consegui ao menos ficar um pouco puto com o radicalismo dele. Ele não me deu tempo. Não entendeu que, para estar com ele, eu teria que magoar a pessoa mais importante da minha vida, de quem eu precisava tanto, porque nós estávamos no meio de uma porra de uma guerra e eu não conseguia pensar direito. E ele não entendeu nada disso, preferiu agir como se eu fosse um canalha que o enganou. Eu me agarrei a esse rancor com todas as forças para fingir que eu não queria ouvi-lo, ignorando o meu peito em carne viva, meu estômago se revirando agoniado, porque eu estava tão exausto do poder que ele tinha sobre mim.

-Eu tenho sido um babaca contigo, Kyle. - Ele disse de re pente, arruinando qualquer chance que eu teria de me manter forte e fechado para essa relação. Ele me fazia sentir como se estivesse me mordendo e me acariciando ao mesmo tempo. Eu era incapaz de entendê-lo.

-O quê? - Eu perguntei, ainda atordoado, arrastando a bunda no colchão para me sentar na beirada ao lado dele, ainda enrolado no cobertor; a ponta caiu sobre o pires cheio de cinzas, e eu a puxei enquanto me ajeitava.

-Eu tô sentado aqui há quase uma hora pensando em como te pedir desculpa.

Eu não soube o que responder. Minha reação imediata foi franzir a testa e separar um pouco os lábios. Ele ainda segurava os dedos da mão direita e não olhava mais para mim, apenas encarava o chão empoeirado como se pensasse sobre milhares de coisas e não conseguisse explicar nenhuma. Parecia tão aflito e isso me doía. Agora, olhando os seus olhos mais de perto, eu podia ver que estavam um pouco úmidos e revelavam uma fragilidade gigantesca.

-Tô ouvindo. - Eu sussurrei, abraçando meus joelhos.

Porque por mais que eu tivesse convencido a sentir raiva, isso não se sustentava, porque eu não tinha razão. Então eu apenas queria ouvir, entender porque caralhos ele teria motivos para se desculpar. Aquela era a última coisa que eu esperava ouvir dele.

Mas Christophe ainda não parecia preparado para falar. Aos poucos, meu coração se acalmou. Nós estávamos bastante próximos, era até estranho estar assim junto dele novamente. Eu me lembrava das primeiras noites que passamos naqueles apartamentos abandonados trabalhando, quando eu comecei a conhecê-lo; ele era tão atraente e tão assustador ao mesmo tempo. Agora, podia sentir o cheiro gostoso do cabelo e da pele dele, um cheiro quente que pesou minhas pálpebras por um segundo; fechei os olhos para inalar aquele aroma estranho e familiar. Ele era uma contradição. Fiquei esperando que ele dissesse algo sobre a noite de natal, e isso me causou um frio na barriga tão forte que até os pelos da minha nuca se arrepiaram.

De repente, ele separou os lábios, estreitou os olhos e virou o rosto para mim. Parecia decidido agora.

-Você já ouviu o Gregory dizendo que eu nunca erro um tiro?

-O quê? - Perguntei confuso.

-Ele sempre diz isso. Ele e o Trent, eles dizem que eu nunca erro um tiro. É uma brincadeira, mas não é. É como a coisa acontece, sabe, se eu miro na cabeça, é ali que eu vou acertar. Se eu miro no pé, eu acerto no pé. Eu não me lembro a última vez que eu errei um tiro. Isso não é motivo de orgulho, é só… É só o que acontece quando você atira em muita gente durante a vida, você fica bom nisso. - Ele fez uma pausa longa, abaixando a cabeça. Eu podia ver em seus olhos a dificuldade de me encarar enquanto ele me explicava, e por mais que fizesse sentido, não fazia. Ele parecia querer chegar em algum lugar com isso. - Eu vi o filho da puta que me deu um tiro, eu vi bem antes de ele atirar. Uns dois segundos antes. Parece pouco, mas é uma vantagem gigantesca no campo de batalha. Foi mais do que suficiente pra ter o desgraçado na mira do meu revólver, e eu tinha, mas… A única coisa na minha cabeça era o seu rosto. Eu só conseguia pensar: “Onde é que ele tá? Será que ele tá machucado? Ele ainda não aprendeu a se defender, se pegarem ele…”

O meu coração afundou dentro do peito. Eu fui tomado por um alívio tão forte, mas que não trazia alegria nenhuma. Talvez eu precisasse saber que ele se importava comigo, depois de ser tratado durante um mês e meio com tanta indiferença. Mesmo antes disso, entender Christophe era uma tarefa complexa demais para qualquer leigo. Eu nunca antes o tinha visto em tal estado de honestidade.

-Foi aí que eu atirei. - Ele continuou. - Todo grito que eu ouvia me fazia pensar se aquela era a sua voz. Eu podia jurar que era você, e tudo o que eu queria era olhar em volta e te encontrar vivo. Então eu errei. O tiro não pegou nem no ombro do cara, passou raspando, porque a minha cabeça não tava no lugar certo.

Ele parou de falar. Esfregou o nariz e apoiou os dois braços atrás para sustentar o corpo, encarando o chão, pensativo. Eu franzi o cenho e também pensei por um segundo.

-Você tá dizendo o quê, que levou o tiro por minha causa?

Eu perguntei com um sarcasmo sutil, quase sorrindo, porque a ideia parecia tão absurda. Ele assentiu devagar, pensando sobre o que perguntei como se fosse sério.

-Eu levei o tiro por sua causa. - Ele afirmou, assentindo.

-Você… Isso era pra ser um pedido de desculpas? Eu não entendi.

-Eu não tô tentando te fazer sentir culpado. Pelo contrário, aí é que tá: quando eu me lembrei disso, eu entendi uma coisa tão simples. Tão idiota. - Seus olhos pareciam tão focados e tão vazios ao mesmo tempo, como se ele revivesse uma lembrança vividamente. - Eu… Eu não me importo muito com as pessoas, sabe? E aí… Quando eu te conheci… Quando eu te conheci de verdade, você começou a me fazer sentir umas coisas que eu não sabia que eu podia sentir. - Ele pigarreou e respirou fundo como se estivesse prendendo a respiração esse tempo todo, pendendo a cabeça de leve para trás, fazendo uma sutil expressão de dor que me fez querer tocá-lo, mas eu me segurei. - Que eu não deveria sentir. Porque isso daqui é a minha vida, é o meu único motivo de viver, entende? É isso aqui. É o que a gente tá fazendo, é a luta, a minha vida não tem espaço pra mais nada. Não tem espaço pra… - Ele gaguejou um pouco, levando a mão ao peito e apertando o suéter, estreitando os olhos. Em momento nenhum ele olhou pra mim. - Mas ardia tanto. Eu comecei a sentir uma coisa por você que ardia tanto, que me fez esquecer todo o resto, que me fez errar aquela merda daquele tiro. Era uma ideia tão bonita. Eu já tinha feito as pazes com a morte, eu já tava pronto pra dar tchau pra essa merda toda, não tinha nada me prendendo aqui, até que você disse… Você disse que a gente deveria ter vivido isso aqui juntos quando a gente tinha tempo. Você me deu alguma coisa que me fez… Não querer morrer. Eu não sei como explicar. Você me fez acreditar nessa ideia bonita e esquecer que era só isso, só uma ideia.

-Christophe… - Eu murmurei, sacudindo a cabeça, sentindo uma ardência horrível por dentro do nariz que logo resultaria em lágrimas se formando nos meus olhos, um aperto medonho na garganta, uma tontura.

-Por favor, me deixa terminar. - Ele pediu, colocando a mão no meu joelho por um momento, finalmente olhando pra mim. - Quando você decidiu continuar com o Stan, eu fiquei tão puto. Puto demais pra pensar. E eu precisava culpar alguém, porque eu fiquei sozinho com esse negócio aqui dentro, mas porra… Se você tivesse largado ele por causa disso, talvez fosse maravilhoso no começo, mas teria durado tão pouco. Eu teria te machucado tanto. Porque eu não posso, Kyle, eu não posso ter assim tão perto alguém que é mais importante do que a luta. Eu agi como se tivesse sido culpa tua, como se você tivesse tirado algo de mim, mas a verdade é que eu nunca poderia ter isso de qualquer forma. E eu acho que, no fundo, você já sabia disso. Que nunca teria dado certo. Que eu nunca vou poder te dar o que você precisa.

Eu não fazia ideia de porque aquilo era tão doloroso de ouvir, mas era. Agora era eu quem tinha dificuldade de olhar diretamente para ele. Quando pisquei, as lágrimas começaram a escorrer sem que eu me desse conta; rapidamente, eu as sequei com as costas do dedo indicador e médio, olhando para frente, não para ele. Senti sua mão quente tocando minha bochecha, e meu instinto foi de virar o rosto para o outro lado, mas não consegui. Ele secou minha pele com o polegar enquanto me acariciava.

-Me desculpa por ter te feito sentir que era culpa sua. Eu não podia ter te tratado mal por não querer abrir mão de uma coisa real por causa de uma ideia.

Balancei a cabeça negativamente, pressionando os lábios para conter um gemido baixo de dor que queria escapar. Não era isso que doía. Também não havia alívio naquele choro. Era inexplicavelmente doloroso ouvi-lo dizer aquelas coisas, mesmo que ele tivesse razão, mesmo que parte de mim sempre soubesse que eu e ele não daríamos certo, independente do Stan. Os motivos nem deveriam importar mais, mas o carinho dele era a parte mais dolorosa. Ouvir que ele também queria, que ele sempre quis tanto quanto eu, e que sempre seria impossível pelas circunstâncias filhas da puta em que nós vivíamos. Eu queria que ele não estivesse mais ali.

-Christophe… - Sussurrei, voltando meu olhar para ele, pensando no que dizer. Mas de repente, ele não olhava mais para mim, e sua mão já não se movia mais; parecia esquecia ali no meu rosto enquanto a atenção dele se voltava para outra coisa. Para a janela. Franzi as sobrancelhas. - Christophe? O quê…?

-Cala a boca. - Ele disse baixo, levantando-se bruscamente para se aproximar da janela, a mão já no cano do revólver que estava sempre no cinto dele. Ele deu uma boa olhada através da janela e eu comecei a ficar nervoso com o silêncio. Me levantei também. Ele se virou para mim de relance. - Era pra alguém voltar hoje?

Fiz que não com a cabeça, olhando confuso para ele.

-Não que eu saiba.

Ele abriu a porta com um estrondo e pisou na varanda, já sacando a arma para apontá-la para o breu daquela noite – literalmente, não se via nada. Eu o segui e parei pouco atrás dele; se eu tivesse pensado melhor sobre o risco disso, provavelmente não teria ido desarmado, mas por algum motivo, eu me senti seguro o bastante para fazer isso. Parei na porta, segurando o batente, e o corpo de Christophe cobria boa parte da minha visão.

-Quem é você? - Ele gritou para uma sombra que eu mal podia ver, lá longe, no meio das árvores. Me perguntei como caralhos ele conseguiu ouvir alguém que ainda estava tão longe. - Eu tô te vendo, filho da puta. Aparece ou eu estouro o teu crânio.

Então, aconteceu a coisa mais peculiar. Eu tinha um dos pés pra dentro da porta, pronto pra correr e avisar quem estivesse lá em cima, mas meus olhos não deixavam de procurar na escuridão a silhueta que ele enxergava. Eu podia ouvir alguém caminhando no escuro, e pouco a pouco, uma figura começou a se formar. Tinha as mãos para cima. Parecia alguém muito pequeno; por um segundo, pensei que fosse uma garota. Talvez uma das que havia desaparecido.

Mas quando a pessoa se aproximou o bastante para que a luz de dentro da casa iluminasse pelo menos um pouco do seu rosto, minha reação instintiva foi empurrar Christophe da minha frente e correr.

-Ike! - Eu gritei sem pensar, pulando o último degrau da escadinha da varanda, minhas pernas me carregando na maior velocidade possível para encontrá-lo. Ele tinha o rosto tão assustado, mas quando me viu, abaixou os braços e quase deu um sorriso.

Eu quase o derrubei quando nossos corpos se chocaram no abraço mais apertado da minha vida até aquele momento. Ele chegou a pender para trás, mas colocou o pé a tempo de se segurar, e então se agarrou ao meu pescoço com força e começou a rir enquanto eu o tirava do chão. A pele dele estava gelada, mas havia uma fina camada de suor. Ele cheirava a terra, e depois eu veria o quanto ele estava imundo. E nada disso importava. Eu mal conseguia respirar, apertando os olhos, balançando a cabeça como se não pudesse acreditar que ele estava realmente ali. Poucos segundos depois, quando ele já estava com os dois pés firmes no chão, ainda abraçado ao meu tronco, eu segurei seu rosto para olhá-lo de perto, meu rosto tomado por uma expressão estranha entre choro e riso e desespero.

-O que você… Como você chegou aqui?! Você não pode estar aqui. - Eu disse, acariciando o rosto dele com um pouco de agressividade, como se eu não tivesse controle sobre as minhas mãos.

-O Kenny me trouxe. - Ele disse sorrindo, apertando meu braço com a mão.

Respondi com uma expressão confusa, mas logo meus olhos seguiram os sons de alguém correndo sobre as folhas, vindo da mesma direção da qual Ike havia surgido.

-Desculpa. - Kenny disse, correndo quase sem fôlego, diminuindo o passo a poucos metros de nós. - Ele ficou tão empolgado quando viu a casa que saiu correndo na minha frente.

-Você…? Kenny, você enlouqueceu?!

-Ele disse que vocês vão embora amanhã. - Ike me respondeu, puxando o meu casaco ansiosamente. - Eu queria te ver.

Havia muita coisa passando pela minha cabeça de uma vez só. A adrenalina baixava pouco a pouco e eu comecei a me dar conta da exposição de onde nós estávamos, do risco que ele correu no caminho até aqui, e quis ficar com raiva do Kenny, mas havia um olhar tão bem intencionado e culpado em seu rosto que eu não consegui. Ele se aproximou de mim e eu toquei seu ombro para acalmá-lo, porque agora não havia mais nada a ser feito. E eu não podia negar o alívio gigantesco que era poder abraçar meu irmão novamente. Olhei para trás e Christophe falava com alguém da porta aberta da casa, acalmando uma pequena comoção que houve com os gritos dele. Ele mandava as pessoas subirem porque não havia nada a ser visto.

-Vem, vamos subir. - Falei, passando o braço nos ombros de Ike. - Você tá congelando. - Lancei um olhar ao Kenny, pensando rapidamente enquanto andávamos até a varanda. Ali, parei e pedi a ele – Leva o Ike pro quarto, por favor, eu já vou subir.

-Tá bom.

Quando eles entraram na casa, segurei o pulso de Christophe, puxando-o um pouco para sair de frente da porta, pois ainda havia gente na fala comentando baixo coisas que não lhes diziam respeito. Ele não parecia confuso, tampouco demonstrava qualquer intenção de me perguntar o que havia acabado de acontecer. Ele raramente se metia no que não era da sua conta.

-Ei. - Sussurrei. - Olha só… Esse é o meu irmão.

Ele ergueu uma sobrancelha em questionamento, mas não disse nada. Eu engoli seco, coçando a cabeça, pensando no que dizer.

-Não era pra ele estar aqui. Eu preciso pensar no que fazer com ele, mas enquanto isso… As pessoas não sabem que ele… Ninguém sabe que ele existe. Seria muito bom se você pudesse não comentar com ninguém que ele tá aqui.

-Não se preocupe.

Assenti com a cabeça, suspirando um pouco aliviado. Esfreguei os olhos, hesitante sobre o que fazer em seguida. Ele me encarou durante esse tempo.

-Você tá bem? - Perguntou.

-Acho que sim. Só é meio surreal. - Respondi com uma honestidade inesperada; não sabia direito porque me sentia tão confortável com ele. Nos encaramos durante alguns segundos, então eu umedeci os lábios e continuei. - Obrigado. Por falar comigo. Eu fico muito feliz que a gente possa conversar de novo. Se a gente puder terminar uma outra hora…

Ele fez que sim com a cabeça, como se a conversa já tivesse terminado e ele só esperava que eu entrasse na casa. Era muito difícil ficar ali fora com a temperatura tão baixa. Abracei meu próprio tronco e ofereci um sorriso fraco, que ele não correspondeu, mas seus olhos me encaravam com gentileza. Então, segui para o andar de cima.


 

Ike estava muito sujo. Dei uma boa olhada nele; seus cabelos negros estavam bastante curtos, mais do que eu me lembrava, como se ele tivesse passado uma navalha neles recentemente. Estava curto o suficiente para expôr suas orelhas. Ele usava um casaco preto grosso em estado deplorável, tinha um arranhão grande no rosto. Meu coração doía ao pensar no que ele passou para chegar até aquela casa, se eles vieram andando da cidade. Mas de qualquer forma, ele tinha um frescor de inocência que muito fazia falta naquela casa. Estava sentado na nossa cama, a que eu dividia com Stan. Eu me sentei na cama que Cartman usava para poder ficar de frente para ele, com as pernas dobradas sobre o colchão, segurando meus próprios pés.

Kenny havia saído do quarto e fechado a porta para nos dar privacidade. Eu não sabia onde Stan estava, fiquei surpreso por ele não estar no quarto.

-A gente tem que limpar esse arranhão. - Eu disse, mas não me mexi. - Você está bem?

-Não é nada. - Ele respondeu distraído, olhando em volta do quarto com curiosidade, os olhos gigantes. - Aquele cara lá embaixo é o Toupeira? O que quase me deu um tiro na cara.

-Ahn? Ah. É, é ele sim.

-Ele é diferente do que eu tinha imaginado. Eu fiquei com mais medo de ele me dar uma mordida e eu pegar raiva. -Ele disse, rindo, e eu precisei sorrir também só por ser ele falando. - O cara parece a muralha da China. Mas que bom que ele pula na sua frente desse jeito pra te proteger. É bom saber.

-Como é que tão as coisas em casa, hein? - Perguntei com receio. Não sabia se queria ouvir a resposta.

A expressão dele mudou de repente, e isso só me deixou mais apreensivo. Ele fechou só um dos olhos, torcendo os lábios numa expressão pensativa que revelava a criança que ele realmente era. Às vezes eu me esquecia que ele só tinha quinze anos, porque ele sempre teve a boca grande.

-Muito estranhas, cara. Pra falar a verdade, a gente não sabia se você tava vivo ou morto. - Ele apoiou as duas mãos para trás e inclinou as costas. - Tudo ficou muito esquisito depois que você sumiu. O papai chora o tempo inteiro, a mamãe quase não aparece mais em casa. Ela diz que tá ocupada mudando o mundo. Eu não acho que eles estejam se falando mais. Eles brigavam muito no começo, eu conseguia ouvir lá debaixo. Eles achavam que não, mas eu ouvia. Aí agora, às vezes o papai me deixa subir e tomar café com ele, essas coisas. Acho que ele se sente muito sozinho. - Então, ele me olhou com uma expressão dolorosa. - Eu não posso contar pra ele que eu te vi, posso? Que você tá bem.

Apenas balancei a cabeça negativamente.

-Quanto menos ele souber, melhor.

Ele suspirou.

-Que merda. - Disse.

-Como é que você conseguiu sair? Eles não sabem que você tá aqui?

-Claro que não. Não tinha ninguém em casa quando o Kenny apareceu. Eu ouvi a voz dele chamando o papai pela janela. Ele me deu a carta que você me escreveu. - Ele sorriu, erguendo o quadril para alcançar o papel amassado no bolso traseiro da calça, desamassando um pouco com os dedos enquanto desdobrava o papel. - É bem coisa de bicha mesmo.

Soltei algo parecido com uma risada, não muito mais do que soltar o ar pelas narinas. Então suguei um pouco de ar com a boca e mordi o lábio inferior. Ele me olhava curioso, estudando a minha expressão com saudade.

-Você tá diferente. - Ele me disse. - Parece que você envelheceu uns cinco anos.

-É exatamente como eu me sinto.

Depois de algum silêncio, ele se levantou da cama para sentar ao meu lado, deixando a carta sobre o colchão. Ele segurou minha mão e sorriu para mim, o rosto perto do meu, apertando meus dedos com força.

-Deixa eu ir com você. - Ele me pediu, piscando os olhos devagar.

-O quê? Claro que não, Ike. Você não devia nem estar aqui.

-Eu não aguento mais ficar naquela casa, Kyle. Você não tem noção de como é morar naquela merda daquele porão, com aquela mulher me tratando como se eu fosse um bebê. Ela perdeu um parafuso depois que você sumiu, cara. Sempre foi foda, mas agora… - Ele parecia muito honesto no que dizia, balançando a cabeça um pouco perturbado enquanto pensava. - Eu ouvi pelo rádio o discurso que ela deu sobre você. Ela fica falando como se você estivesse morto. É horrível, o papai quebrou a televisão aquele dia e ficou berrando que era tudo culpa dela. Eles se odeiam agora, eu vou ficar louco se eu voltar pra lá.

-Eu sinto muito, Ike. - Murmurei, acariciando a parte de trás da cabeça dele para trazê-la ao meu ombro, afundando o nariz no cabelo dele. Fechei meus olhos avermelhados, sentindo vontade de chorar de novo, mas não na frente dele. - Eu juro…. Eu juro que eu vou voltar pra te buscar quando for a hora certa. Agora, é perigoso demais pra você. A nossa mãe pode ser louca, mas se tem uma coisa que eu posso confiar é que ela vai te manter seguro.

-Vocês vão voltar? -Ele me perguntou com uma voz profundamente triste.

E eu não sabia como responder isso. Gaguejei um pouco, encolhendo os ombros, tentando encontrar as palavras certas sem precisar mentir pra ele.

-Claro que vamos. Eu não sei quando, mas… As coisas vão mudar alguma hora. E aí todos nós vamos poder voltar pra casa.

Ele levantou a cabeça para me olhar.

-Promete?

Eu sorri para ele. Antes que pudesse dizer que sim, a porta se abriu violentamente. Eu me levantei instintivamente, mas quem apareceu foi Stan, parecendo aflito com alguma coisa. Com a porta aberta, era possível ouvir o som de passos correndo de um lado para o outro e vozes falando ao mesmo tempo, gente correndo pela escada. Kenny apareceu logo atrás. Ike não pareceu perceber que havia algo de errado, apenas se levantou e correu para abraçar Stan, gritando o nome dele. E Stan tentou forçar um sorriso enquanto o abraçava, mas olhou para mim com os olhos pesados. Kenny tinha uma mochila nas costas e invadiu o quarto pegando vários objetos que estavam espalhados, socando-os dentro da mochila. Meu coração batia tão rápido que poderia sair pela minha boca a qualquer minuto.

-O que foi? - Perguntei.

-Agarra tudo que você precisar, nós temos que ir. - Stan disse rapidamente, ainda com Ike em seus braços, uma mão no topo da cabeça dele. Ike olhou preocupado pra mim.

-Eles tão aqui. - Kenny disse, quase gritando. - Anda, corre!

-Quem? - Ike perguntou.

Eu pensei que fosse vomitar ali mesmo.



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