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História Liberté - A Fuga


Escrita por: caulaty

Capítulo 27 - A Fuga


31 de dezembro de 3644

 

Em teoria, sempre nos preparamos para o pior. Sempre. Você aprende a dormir como um gato, sempre atento, a nunca relaxar de verdade, a ficar em alerta o tempo todo e a reagir rápido. Eu gostava de acreditar que nós estávamos prontos para tudo e que nós saberíamos o que fazer na hora. Gregory sempre disse: a primeira coisa que você precisa fazer é manter a calma. Mas não é assim que acontece na prática. Você não tem um segundo para respirar. Você quer acreditar que vai ser nobre, fiel e corajoso quando a merda acontecer; todo guerrilheiro quer acreditar nisso, mas a verdade é que existe uma coisa muito maior que está acima da ética, da guerra, da ideologia: o instinto de sobrevivência é a única coisa que fica.

-Caralho, Kyle! - Kenny gritou na minha cara, arrancando-me de um transe. Ele me empurrou para a porta. Eu não tinha nada de valor, nada para carregar. Talvez eu me arrependesse disso depois, mas a única coisa que agarrei foi o canivete na cabeceira.

A única coisa de valor ali era meu irmão. Não era pra ele estar ali. Era só isso que eu conseguia pensar, não era para ele estar ali, porra, não assim, não agora. Eu jamais me esqueceria do olhar de pavor no rosto de Ike. Diante de todas as coisas, ele sempre lidava com tudo vestindo um sorriso sem vergonha agindo como se não existisse problema, porque ele viveu os últimos anos em uma bolha, e antes disso, ele era novo demais pra entender o que se passava com o mundo. Nem nós entendíamos muito bem. Ele agarrou minha camisa quando nós passamos pela porta e chamou meu nome com medo, mas eu mal podia escutar, porque o caos era gigante.

Eu não sabia se eles já estavam dentro da casa ou não. Nós descemos a escada junto com mais um monte de gente que se empurrava; como eu disse, todo mundo quer acreditar que será nobre e corajoso quando chegar a hora, mas a prática é muito diferente. Na correria da escada, alguém me empurrou para frente e eu caí em cima de Pip, que me segurou sem jeito e ainda conseguiu me perguntar se eu estava bem. Eu não tive tempo de responder. Não enxergava mais Ike ou Stan, mas já podia ver o cabelo loiro de Kenny no fim da escada e ele gritou meu nome. Quando cheguei ao último degrau, vi que Stan estava ao lado dele.

-Cadê o Ike?! - Eu gritei, mas Stan me puxou pelo braço com tanta força em direção à cozinha que eu não conseguiria impedi-lo nem se quisesse. Eles não me escutavam, nenhum dos dois. Olhando em volta, meu coração quase parou ao ver a cena violenta que se passava naquele espaço estreito: os militares carregavam armas pesadas, pelo menos dois ou três. Eu vi de relance algum filho da puta dando com a coronha da arma na nuca de Wendy e a jogando com força contra a parede; mas alguém deu um tiro bem no peito do desgraçado antes que ele tivesse tempo de fazer qualquer coisa. O barulho ecoava naquelas paredes e era ensurdecedor. Tinha gente sangrando no chão, com o cabelo no rosto ou deitado de bruços. Eu tive não mais de dois segundos para absorver essa cena enquanto buscava desesperadamente pelo rosto do meu irmão. Logo, nós atravessamos a porta da cozinha e estávamos na escuridão da floresta. Stan tropeçou num corpo, podia ser um militar, podia ser um dos nossos, não tinha como saber. Eu ouvia tiros, ouvia cachorros latindo, ouvia gente gritando. Meus pulmões já doíam por respirar irregularmente o ar gelado. Eu comecei a gritar o nome do meu irmão, mas uma mão cobriu minha boca. Eu via stan correndo à minha frente; ele soltou meu pulso, deixando uma marca roxa que eu perceberia horas mais tarde. Kenny corria me arrastando junto, sem dizer nada, e talvez ali eu tenha começado a chorar, porque senti uma ardência horrível no nariz e nos olhos. Logo, Kenny me soltou. Nós estávamos cada vez mais adentrando a floresta; eu não enxergava porra nenhuma, os dois não passavam de duas silhuetas borradas se movendo no escuro. E nós corríamos. Nós apenas corríamos.

Os flashes de lanternas brancas se movendo entre as árvores nos fez mudar de direção, escorregando na camada fina de neve no solo.

-Merda. - Kenny resmungou, apoiando-se numa árvore para retomar o equilíbrio, correndo para o outro lado e nós apenas o seguimos.

Eu estava usando apenas meias de lã que tornavam ainda mais difícil correr; eu pisava em pedras e galhos que rasgavam meus pés, mas não sentia dor alguma. Uma camada fina de suor se formava no meu rosto e por dentro da minha roupa, mesmo que minha pele estivesse congelando.

Ouvi um tiro tão alto que parecia ter sido bem do nosso lado; vi um corpo caindo a pelo menos cinquenta metros de nós, quando lançaram a luz da lanterna sobre a pessoa, que continuava viva e agonizando no chão quando começamos a correr para o outro lado. Era um menino tímido chamado Kip, que estava sempre sozinho e nunca falava nada. Eu não sabia nada sobre ele, mas naquele momento, desejei que tivesse perguntando qualquer coisa sobre sua vida nas vezes que nos encontramos na cozinha. Ele fazia um café excelente. Meu peito ardeu tanto ao pensar que ele, no melhor dos casos, sangraria sozinho ali no solo gelado e morreria sozinho como viveu, isso se um animal selvagem não o pegasse primeiro. Tudo fazia tão pouco sentido naquele momento. Se nós não podíamos nem prestar respeito à morte de um companheiro… Se no fim das contas, todos nós seríamos deixados para trás, um a um, qual era o sentido de sobreviver? Nós não podíamos fazer porra nenhuma por ele. A mesma coisa poderia estar acontecendo com meu irmão em algum outro lugar daquela mesma floresta. E eu não podia pensar nisso. Não podia pensar no Ike morrendo sozinho, em como ninguém pararia por ele como nós não paramos pelo Kip, porque se eu o fizesse, cairia de joelhos ali mesmo. Kenny e Stan não permitiriam isso, eu não poderia ser um peso morto para eles. Então eu não pensei em nada. Eu só corri.

-Aqui. - Kenny disse, correndo um pouco na frente, descendo com cuidado por umas pedras escorregadias.

Stan foi antes de mim e virou para se certificar de que eu estava bem. “Bem” seria forçar um pouco a barra, mas eu estava andando e respirando ainda. Não havia tempo de falar nada, nós ainda ouvíamos os cachorros e sentíamos as luzes se aproximando, mas eles não sabiam exatamente onde procurar. A escuridão era uma vantagem e um empecilho. Estavam muito perto. Nós estávamos em uma parte mais densa da floresta, com variações no nível do solo, pequenos barrancos e árvores mais fechadas, regiões cobertas por lama e resquícios de neve. Corríamos entre galhos que arranhavam nossos rostos e cortavam nossa pele, rasgando partes das nossas roupas. O casaco de Stan fisgou em um galho e ele levou não mais de três segundos para se soltar, mas pareceu uma eternidade. Eu respirava ofegante pela boca, era meu único recurso para não desmaiar. A respiração acelerada começou a me deixar tonto, eu sentia dor no peito e nas pernas; o ar gelado feria as narinas e os pulmões. Meus olhos já estavam acostumados com a escuridão àquela altura. Comecei a ouvir um barulho intenso de água corrente. Nós nos aproximamos de um rio.

A paisagem seria deslumbrante em outras circunstâncias, para dizer a verdade. A pouca neve acumulada sobre os galhos das árvores secas, o rio relativamente raso e largo correndo em uma água cristalina impossível de se ver à noite, mas a luz esverdeada da lua brilhava na água, pois era um espaço mais aberto e as árvores não tinham folhas que bloqueassem o luar. Kenny parou na água e olhou para trás.

-Gente… - Ele disse.

-Não. - Respondi imediatamente, apoiando as mãos nas minhas coxas para tomar fôlego, meu corpo inteiro agradecendo pela breve pausa. Eu não aguentava mais correr. - Eu não vou entrar aí.

-Cara, os cães tão vindo! - Kenny gritou, mas ele também não tinha muita certeza na voz. - Eles vão achar a gente!

-Então para de gritar. A gente vai morrer de hipotermia!

Enquanto nós discutíamos, os sons dos latidos selvagens ficavam mais altos, Stan apenas pulou na água, tomando algum cuidado com as pedras. A correnteza não estava muito forte, mas o suficiente para ele precisar se segurar. Escolhendo entre o congelamento e os cães treinados para nos destroçar, ou pior, o que os militares provavelmente fariam conosco, não havia muita escolha. Kenny entrou na água e soltou um palavrão, virando para me olhar. Com alguma hesitação, eu me abaixei na beirada do rio, mergulhando primeiro as duas pernas. Apertei os olhos pela dor que a temperatura me causava, roubando o pouquíssimo calor que eu ainda tinha no corpo. Respirei fundo e mergulhei de uma vez. Nas pernas, o frio não era tão cortante quando no tronco, onde ficavam os órgãos vitais. Eu tive vontade verdadeira de chorar. Era uma resposta totalmente física às milhares de agulhas que pareciam perfurar a minha pele. Talvez a roupa colando ao corpo tornasse a coisa toda ainda pior. Eu me soltei da pedra à qual me segurava, tentando colocar os pés no fundo do rio. Eu mal ficava com o rosto para fora. A correnteza nos levava; eu comecei a engolir água, agoniado com a sensação de coisas duras e moles roçando pelas minhas pernas. Eu tremia. Mergulhei quando ouvi os cães perto o suficiente; eu não enxergava Stan ou Kenny e isso me desesperava. Tentei abrir os olhos debaixo da água, mas eu estava imerso na escuridão total e a temperatura da água me fez pensar que eu estivesse ficado cego. Cada parte do meu corpo estava congelando, eu já não sentia mais minhas mãos ou meu rosto. Eu queria nadar até a outra margem, mas não podia ouvir quase nada do que se passava acima da superfície da água, apenas o som ensurdecedor do rio correndo. Eu me mantive submerso, apavorado demais para botar a cabeça pra fora. Sem conseguir enxergar nada, meu corpo era levado à mercê de uma força maior. Durante aqueles segundos, eu pensei que fosse morrer. Meu ar estava acabando.

Passou pela minha cabeça o vão pensamento de apenas deixar o rio me engolir. De não lutar contra, de não voltar à superfície nunca mais, apenas soltar meu corpo e deixar que a água me tomasse por completo e eu desaparecesse. Não poderia doer mais do que já estava doendo.

De repente, alguém agarrou meu braço, alguém também imerso na água. Eu ergui o rosto para sugar o ar bruscamente, como se despertasse de um transe, quase hiperventilando. Era Stan que me segurava. Ele trouxe a mão à minha nuca, e por mais gelada que estivesse, estava mais quente do que a minha pele.

-Você está bem? - Ele me perguntou, respirando desesperadamente, quase sem voz. Eu o encarei sem expressão durante algum tempo, parte do meu rosto submerso, agarrando seu braço com toda a força que eu tinha, e assenti com a cabeça.

-Acho que eles foram pro outro lado. - Kenny disse. Sua voz parecia tão distante com o barulho do rio cobrindo minhas orelhas de vez em quando, mas eu consegui vê-lo chegando à outra margem. - Anda logo, a gente tem que sair daqui.

Conforme nos aproximávamos do outro lado da margem, o rio ficava um pouco mais raso e quase se tornava possível caminhar, ainda que a densidade da água impossibilitasse qualquer movimento brusco. A brisa gelada batendo contra meu corpo molhado me provocou uma sensação ainda pior do que estar submerso. Stan saiu da água primeiro com alguma dificuldade, ofegante e exausto, então se virou para me puxar pelo braço, ajudando-me a sair. Só então eu pude enxergá-lo o suficiente para ver seu rosto melado de sangue na bochecha; a água afinou o sangue e fez com que ele se espalhasse ainda mais, descendo pelo pescoço. Estava escuro para ver de onde vinha todo aquele sangue, mas eu não pude deixar de ficar alarmado.

-Stan. - Murmurei, colocando minha mão trêmula na bochecha dele. Ele afastou o rosto como se doesse, mas esfregou a própria mão pela bochecha com cuidado, depois a inspecionou, franzindo a testa. Ele também tremia de frio.

-Não foi nada, eu me cortei. - Disse.

-Vamos. - Kenny falou com impaciência, ajeitando a mochila encharcada nas costas, passando a mão pelo topo da cabeça.

Mas eu não consegui me mover. Depois de andar um ou dois metros, ele se virou para nós dois. Stan continuava de pé ao meu lado. Eu não sabia exatamente o que estava acontecendo com o meu corpo, ele não me obedecia. Racionalmente, eu dizia a mim mesmo que precisava colocar um pé em frente ao outro e que era uma tarefa muito simples, mas também era impossível. Cobri a boca com a mão, me inclinando pela dor terrível no meu estômago, no meu peito, nos meus olhos, no meu coração.

-Ele tá morto. - Murmurei, porque era verdade. Eu não precisei explicar nada para que os dois soubessem exatamente do que eu estava falando. Eu queria vomitar, mas não tinha nada no meu estômago. O braço forte de Stan me segurou quando meus joelhos falharam; me segurei com força no tecido molhado do suéter dele e apertei os olhos, sacudindo a cabeça. - Ele nunca vai sobreviver aqui fora sozinho, ele não sai daquele porão há três anos… Ele tá morto, eu tenho certeza.

Eu não conseguia respirar. A mão de Stan cobriu o topo da minha cabeça. Eu podia sentir a sua respiração quente perto de mim e isso me oferecia um alívio inexplicável.

-Você não sabe disso. - Ele me disse. - Ele é só um garoto, alguém com certeza tá com ele, ninguém ia deixar ele assim.

-O Kip também era só um garoto, que merda a gente fez por ele?! - Perguntei num tom agressivo sem saber porquê, secando as lágrimas com as costas da mão, estremecendo.

-Ei. - Stan sussurrou num tom gentil, segurando meu rosto com as duas mãos para que eu olhasse pra ele. - Para de pensar nessas coisas. Eu tenho certeza de que ele tá bem, o Ike é pior do que um rato pra se esconder. Ele é um garoto esperto. Vai ficar tudo bem, ok?

-Stan… - Kenny disse com uma expressão estranha, uma mistura de dor e hesitação. - Você não devia ficar prometendo essas coisas.

-Cala a boca, Kenny. - Ele respondeu, visivelmente nervoso. Correu o polegar pela minha bochecha e umedeceu os lábios. - A gente precisa ir agora, você consegue andar?

Eu assenti.

Fazia silêncio agora. Os militares pareciam ter ido para o outro lado, talvez pelos cães farejarem alguma outra pessoa, ou talvez eles tenham perdido o nosso faro quando entramos no rio. De qualquer forma, nenhum de nós conseguiu relaxar. Continuamos correndo, ainda que em um passo mais desacelerado, o corpo já mostrando sinais de exaustão. O frio era imensamente pior agora que estávamos pingando da cabeça aos pés, mas meu corpo parecia esquentar de dentro pra fora conforme nós andávamos. Em dado momento, escutamos um tiro que parecia estar muito longe; mas mesmo assim paramos para olhar em volta, na expectativa de que alguém aparecesse com uma arma apontada na nossa cara a qualquer segundo.

Depois de mais de meia hora, correr começou a parecer um desperdício de energia. Não havia sinal de ninguém por perto, nem militares, nem conhecidos. Meu cérebro começava a funcionar pouco a pouco, desligando aquele modo de sobrevivência desesperador, dando lugar a um medo muito mais silencioso.

Em determinado ponto, chegamos a uma estrada de barro cercada pelas árvores. Continuamos andando entre as árvores simplesmente porque parecia mais seguro, menos exposto, mas seguimos ao longo da estrada em silêncio. Kenny caminhava na nossa frente, de cabeça baixa, parecendo saber mais ou menos aonde ir. Talvez ele só estivesse vagando sem propósito; tive vontade de perguntar para onde estávamos indo, mas nenhum de nós disse nada durante um longo tempo.

Até que Kenny se apoiou em uma árvore como se estivesse passando mal, cobrindo o rosto com o braço, inclinando-se para frente.

-Ei, o que foi? - Stan perguntou, estendendo o braço para tocar o ombro dele, mas Kenny não reagiu. Deixou a mochila escorregar pelo braço e cair no chão, sem se importar, agora cobrindo o rosto com as duas mãos e grunhindo baixo.

Ele começou a chutar a árvore com força. Uma, duas, três vezes.

-Kenny… - Murmurei, lançando um olhar preocupado ao Stan, que ergueu a mão quando eu fiz menção de me aproximar, como se dissesse “deixa ele”.

Aquele acesso de raiva explodiu com um grito frustrado, um ou dois palavrões, e então ele pressionou as costas contra a árvore e deslizou para baixo até se sentar no chão, as duas mãos na cabeça, os antebraços cobrindo o rosto. Eu não tive certeza de se ele estava chorando ou não. Me ajoelhei ao lado dele, mas não disse nada. Passamos quase um minuto assim, Stan de pé do outro lado dele.

-Eu fui tão imbecil. - Kenny finalmente murmurou, abaixando as mãos, revelando seu rosto molhado. Olhava o chão, apertando o maxilar, as narinas um pouco dilatadas, sua expressão séria como eu jamais tinha visto. - Eles deviam estar vigiando a tua casa. Esperando que você aparecesse. - Ele levou uma mão à testa, fechando os olhos. - É culpa minha.

Eu levei alguns segundos pra entender o que ele estava querendo dizer. Que os filhos da puta provavelmente o seguiram. Pensar sobre isso apertou ainda mais o meu coração por pensar que eles sabiam quem o Ike era, ou pelo menos que tinha mais uma pessoa naquela casa. Não, eu não queria pensar sobre isso. Não agora. Alguma coisa dentro de mim começou a borbulhar; durante alguns segundos, eu me esqueci como se respirava. Mas Kenny estava em um estado de tamanha fragilidade que eu não me permiti ceder a esse tipo de pensamento obscuro. Felizmente, Stan estava lá para dizer todas as coisas certas.

-Cara, você nem sabe se foi isso mesmo que aconteceu. Pode ser que eles estivessem sondando a casa há dias. Tinha gente indo e vindo o tempo inteiro. A gente não tem controle nenhum sobre o que aconteceu, não adianta ficar se torturando agora.

-Eles apareceram logo depois da gente, Stan. Eu acho que chamar isso de coincidência é forçar um pouco.

Stan gaguejou um pouco, torcendo a barra do suéter para escorrer o excesso de água. A sensação do tecido molhado colando à pele era terrível.

-Mesmo que eles tenham te seguido, e aí? Poderia ter sido qualquer outra coisa, a gente sabia que o risco de nos encontrarem era muito grande, a gente tá saindo do Colorado por isso. Você não matou ninguém. O Kyle não teve culpa de querer notícias da família dele, como você não tem culpa de querer ajudar um amigo. É o que é, cara. Essa situação toda já é cagada o suficiente pra gente ainda ficar procurando culpado, o culpado de verdade tá muito longe daqui.

Kenny voltou seu rosto para mim e me encarou em silêncio durante alguns segundos; eu podia ver seus olhos azuis na escuridão, carregados de pesar, como se ele tentasse transmitir o quanto sentia muito. Instintivamente, segurei a mão fria dele. Eu não consegui sorrir ou oferecer nenhum outro gesto que o tranquilizasse, por mais que quisesse.

-Me desculpa. - Ele murmurou baixinho.

Sacudi a cabeça negativamente, apertando sua mão na minha.

-Para com isso. O Stan tem razão. - Foi tudo o que consegui responder. Minha cabeça doía, bem como todo o resto, e o que eu mais queria era poder encontrar algum lugar protegido do frio. Alternei o olhar entre os dois durante algum tempo, então soltei a mão de Kenny e me levantei. - O que a gente faz agora?

-A gente tá perto das fazendas. É melhor encontrar um lugar pra gente se esconder pelo resto da noite, antes que eles resolvam sondar desse lado do rio. - Kenny disse, esfregando uma sujeira na calça antes de se levantar, parecendo um pouco mais resignado. Ele continuava visualmente perturbado, com dificuldade de andar e falar, mas todos nós estávamos no mesmo estado de choque e não havia opção que não fosse seguir em frente. Ele pegou a mochila e passou as costas da mão por baixo do nariz para secá-lo, retomando o caminho como se nada tivesse acontecido.

O que Kenny disse, somado aos próximos quarenta minutos de caminhada, me fizeram pensar em todas as pessoas que eu não fazia ideia de onde estavam. Wendy, Deus, como eu esperava que ela tivesse escapado. E Gregory, embora com ele eu nunca conseguisse me preocupar demais, porque se nós estávamos bem, ele, com certeza, estaria melhor. De certa forma, fiquei grato pelo fato de que Cartman, Clyde, Craig e Bebe não estavam na casa durante aquela noite. Então, um pensamento muito pior me ocorreu: talvez um deles tivesse sido capturado e torturado até contar sobre a nossa localização. Havia tantas coisas que eu não podia entender. Tentei manter a mente limpa e esperar pelo que quer que viesse.

Era difícil tirar o rosto de Christophe da minha cabeça.


 

Stan limpava a ferida na bochecha usando a manga, mas um pouco de sangue sempre insistia em continuar escorrendo. Eu me lembrei de quanto éramos crianças e brincávamos nas árvores próximas do lago Stark; Stan caiu de um galho uma vez e ralou a cara inteira, aquilo também não queria parar de sangrar. Eram circunstâncias muito diferentes, mas que se relacionavam de alguma forma. Eu pensava sobre isso e mais tantas outras coisas enquanto atravessávamos o campo gigantesco, aproximando-nos das plantações. Tivemos que pular uma cerca baixa que não oferecia muita proteção; estávamos em propriedade privada, e enquanto isso poderia ser bastante perigoso por si só, era tarde o suficiente para acreditarmos que ninguém mais sairia de casa para verificar quaisquer barulhos estranhos. Os terrenos eram muito grandes e as casas, muito afastadas.

De qualquer forma, nenhum cidadão de bem saía de casa à noite.

Estávamos em uma área rural de South Park, onde o céu era mais amplo e bonito, como se a camada de poluição fosse muito mais fina naquela região e você quase poderia ver algo semelhante a estrelas. Havia um moinho de vento gigantesco ao longe e alguns animais de pasto, embora a maioria estivesse recolhida por conta do frio. Nós andávamos perto da plantação seca de milho; não dava quaisquer frutos naquela época do ano, mas as plantas ainda continuavam altas o suficiente para fazer algum volume e tinham uma cor alaranjada que deveria ser vista muito melhor durante o dia, certamente. Eu não podia ter noção do quão vastas aquelas plantações eram.

-Ei. - Kenny disse, parando de andar de repente. Ele franziu a testa e ergueu o braço para me parar também. - Vocês ouviram isso?

Havia um movimento vindo de dentro do milharal. Assim como eles, eu fiquei a postos para correr de novo, porque poderia muito bem ser um coiote ou um corvo, mas também poderia muito bem ser um cão de caça ou um militar com a bazuca apontada para as nossas fuças, procurando fugitivos pelas plantações. Não havia sinal de lanternas ou latidos. Alguma coisa parecia estranha.

O som começou a ficar mais forte, e agora pareciam definitivamente passos humanos. Pareciam passos de alguém embriagado ou ferido, não soavam ameaçadores de forma alguma. Então, nenhum de nós se moveu. Mas eu senti que Kenny tinha a mão na coronha do revólver o tempo inteiro. Eu tinha o canivete guardado no bolso; toquei meu bolso traseiro para me certificar de que ele não havia se perdido quando mergulhamos no rio. Eu já estava quase acostumado à sensação das roupas molhadas; meu cabelo ainda pingava um pouco, gelado contra a minha nuca. Saía vapor toda vez que nós respirávamos mais profundamente.

-Kyle? - Ouvi alguém chamar.

Aquilo me colocou em estado de alerta.

-Ike? - Chamei no escuro, antes da figura sair de dentro do milharal e se formar a alguns metros de mim, empurrando as folhas secas. - Ike! - Gritei, correndo ao encontro dele pela segunda vez no mesmo dia. E dessa vez, quando nossos corpos se encontraram e ele estava tão quentinho comparado a mim, tive a sensação de que não o soltaria nunca mais. Por um segundo, cogitei que estivesse completamente louco, abraçando uma sombra que não existia mais; mas ele estava ali, ele era quente e real. Eu cobri a parte de trás da sua cabeça com as costas da mão e fechei os olhos, secos demais para chorar depois de tudo. Parecia inacreditável.

Aqueles segundos pareceram durar uma vida inteira. Ninguém mais ao nosso redor existia, éramos apenas eu e meu irmão naquele campo aberto, próximos ao milharal que dormia no inverno, o céu imenso sobre nossas cabeças, o moinho de vento lá longe. Não existia frio, nem dor, nem medo. Quando o abraço acabou, as coisas voltaram a se mover normalmente. Eu segurei o rosto de Ike com as duas mãos e ele franziu a testa pela sensação gelada em suas bochechas, mas não me afastei.

-Como é que você…? - Tentei perguntar, mas outra figura surgiu do milharal de repente, então eu me calei.

Christophe. Foi só ao colocar meus olhos nele que me dei conta de um buraco que havia em meu peito, uma aflição tão profunda que passou despercebida em meio ao caos, mas agora ele estava ali e eu podia respirar novamente. Não me movi, nem tirei as mãos do Ike, apenas dei uma boa olhada nos dois. Sob a luz da lua, eu podia enxergá-los muito bem. Ambos estavam cobertos de suor. Ike estava tão sujo quanto antes, talvez até mais, com os cabelos bagunçados e as roupas manchadas de terra, mas eu não vi nenhum sangramento aparente. Christophe, por outro lado, além de imundo de terra ou lama ou neve, sangrava na lateral do rosto de tal forma que seu cabelo havia engrossado na proximidade da orelha e endurecido pelo sangue. Eu nunca o tinha visto com uma expressão tão alterada; ele não conseguia respirar direito, apertava os olhos de dor e segurava o braço direito com a mão esquerda. Suas roupas estavam rasgadas, especialmente no joelho, que também estava ralado. Deformava o rosto em uma careta que expunha um pouco dos dentes, quase rosnando como um bicho, grunhindo baixo. Ele parecia machucado e apavorado ao mesmo tempo.

-Tem mais alguém com vocês? - Kenny perguntou, aproximando-se a passos lentos.

Stan também chegou perto e fez um carinho na cabeça de Ike, sorrindo fraco. Eu ainda não tinha coragem de desenroscar meus braços dele.

Christophe fez que não com a cabeça, inclinando o tronco para frente, como se não conseguisse usar palavras no momento.

-O que aconteceu?! - Perguntei, agoniado com o estado dele. Apalpei os braços e o tronco de Ike, procurando por algum machucado. - Você tá bem?

-Tô sim. Foi tão louco, Kyle. - Ike respondeu com agitação, mal conseguindo ficar parado. - Eu não consegui alcançar vocês, eu até vi vocês saindo da casa mas a gente se perdeu lá fora, daí o Toupeira me agarrou e eu nem entendi nada do que tava acontecendo. - Ele falou muito rápido, sem fazer pausas para respirar. - A gente teve que pular de um barranco muito alto e ele me segurou assim. - Ike envolveu os braços no meu tronco para me mostrar. - Daí eu não me machuquei, mas ele se fodeu todo. Nossa, os cachorros quase pegaram a gente, eles tavam vindo atacar, tinha um bem em cima da gente. Daí o Toupeira enfiou o braço na boca dele e botou o revólver bem na cabeça e POU, estourou o crânio dele. Foi tão nojento! - Ele havia me soltado pra mostrar com os braços exatamente o que ele me contava, e apesar de usar a palavra “nojento” para descrever, havia um sorriso sutil em seu rosto que indicava que ele achava muito mais maneiro do que nojento de verdade.

Pisquei devagar algumas vezes, sem conseguir absorver o que ele me contava. Muitas coisas sobre essa cena me perturbavam; a primeira delas era que Ike parecia falar da coisa toda com muito mais empolgação do que medo, o que fazia perfeito sentido para alguém que nunca via o mundo exterior. Ele não tinha noção real do perigo das coisas, e isso me preocupava de tal forma que eu nem poderia explicar se tentasse. Aquilo me doía o estômago. Lancei um olhar preocupado ao Christophe, que apoiava as mãos nas coxas em uma posição que indicava que ele fosse vomitar. Ele ainda segurava a arma e tinha os olhos fechados.

-Você… Você tá bem? - Kenny perguntou, olhando para nós três de relance com uma expressão de quem não sabe o que fazer ou dizer, porque mesmo depois de levar um tiro e quase morrer, Christophe nunca expressava dor e fragilidade de forma tão escancarada.

-Eu odeio cães de caça. - Christophe murmurou ofegante.

Kenny quase soltou um riso baixo, provavelmente pensando a mesma coisa que eu. “Foram os cães que te deixaram assim?”. Eu já vi Christophe ser atacado por homens armados mais de uma vez e não ficar tão alterado.

-Cara, você tem medo de cachorro? - Kenny perguntou com um sorriso que tentava esconder e falhava miseravelmente.

-Eu odeio cães de caça. - Ele repetiu num tom irritado, o que me deixou mais tranquilo. Ele soava mais normal agora; o seu normal, pelo menos. Ajeitou a arma no cinto, respirando fundo enquanto voltava a erguer o tronco, mas ao se mexer, soltou um grito de dor tão inesperado que me assustou. Ele levou a mão esquerda ao ombro direito. - Caralho.

Só então eu percebi o rasgo gigantesco que ele tinha no antebraço, embora não parecesse ser esse o seu problema naquele momento. Mesmo assim, era uma ferida grotesca, muito extensa, que aparecia através da manga rasgada dele. Sangrava muito. O cachorro que mordeu aquilo tirou um bom pedaço da carne dele. Eu franzi o rosto de dor só de imaginar o que ele deveria estar sentindo.

-Kenny. - Christophe disse em um tom contido, prendendo a respiração durante alguns segundos, contorcendo o rosto pela dor. - Você já colocou um ombro no lugar antes?

-O quê? - Kenny perguntou, parando de sorrir. Encarou Christophe assustado, os lábios entreabertos. - Ahn. Não, nunca.

-Agora você vai. Vem aqui. - Christophe disse em um tom firme, parecendo mais calmo agora. Ele suava muito, provavelmente tanto pela dor no ombro deslocado quanto pela corrida. Cuidadosamente, ele tirou o suéter marrom sem precisar mover demais o braço; havia uma camiseta branca por baixo – ou havia sido branca antes daquela fuga – mas fina o suficiente para ele não precisar removê-la. Ele jogou o suéter no chão sem cerimônia e se virou de costas, alcançando a mão esquerda por trás para indicar onde Kenny deveria tocar. Kenny mordeu o lábio, demonstrando nervosismo, mas não hesitou em se posicionar atrás dele e colocar a mão na escápula de Christophe como indicado. - Tá sentindo? Tá, segura o meu pulso. - Christophe disse, respirando fundo como se preparasse para uma coisa ainda pior. Kenny obedeceu sem hesitação, embora fosse muito claro que, por dentro, ele estivesse se cagando todo. - Você só tem que puxar com força. Devagar, mas com força. Nesse ângulo, ó. É só enfiar de volta, entendeu?

-Cara, eu vou te arrebentar mais ainda. - Kenny disse, segurando o pulso e o antebraço de Christophe como ele havia indicado.

-Até o Ike consegue fazer isso, deixa de ser frouxo. Vocês têm que aprender essas coisas. - Christophe respondeu com impaciência. - Você tem que puxar de uma vez pra voltar pro lugar. Eu juro por Deus, McCormick, se você amarelar na metade, eu ainda tenho um braço bom e eu vou arrebentar a tua cara com ele. Tem que ir de uma vez só.

-Tá. - Kenny disse com uma voz insegura, assentindo com a cabeça e se preparando. - Um… Dois…

-Não conta, porra, só vai.

E ele foi. Eu desviei o olhar, mas ouvi o som medonho do osso entrando na cavidade e Christophe segurou o grito durante um segundo, mas acabou soltando logo em seguida junto com um “filho da…” que ele não terminou de falar. Nesse momento, eu abaixei os olhos para observar o rosto aflito de Ike, que parecia ter algo muito parecido com culpa em seus olhos. Passei a mão pelo rosto dele e sorri, e ele franziu um pouco a testa, me empurrando como quem diz “não me olha assim, não tem problema nenhum”.

-Deu certo? - Kenny perguntou, nervoso.

Christophe alisou o braço um pouco e respirou profundamente, a expressão mais vazia agora, voltando ao seu estado natural. Ele respondeu assentindo com a cabeça, abaixando-se para pegar o suéter com o braço bom. Mas não o vestiu imediatamente. Com seus braços à mostra, o rasgo em seu antebraço parecia muito mais evidente. Kenny também notou.

-A gente tem que limpar isso, cara, essa merda vai infeccionar.

-Não é nada. - Christophe respondeu baixo. Ele virou o rosto para mim, depois lançou um olhar breve ao Stan, mas sua expressão não dizia muita coisa. - Eu estava levando ele pro celeiro. Não acho que eles vão procurar lá.

-Parece uma boa ideia. - Kenny assentiu, ajeitando a mochila nos ombros.

Stan começou a andar na frente com Ike, bagunçando o cabelo dele e fazendo alguma piada para tentar fazê-lo rir, ou só para provocá-lo. Eu levei alguns segundos antes de começar a andar, seguindo um pouco atrás de Christophe enquanto atravessávamos o campo em direção à construção vermelha ao lado do moinho de vento. Kenny andava ao meu lado. Quando pareceu o momento certo, eu rocei os dedos pelo braço frágil de Christophe para que ele olhasse para mim.

-Obrigado. - Sussurrei.

Ele não disse nada. Me olhou durante dois segundos, assentiu muito sutilmente com a cabeça e continuou andando, abrindo alguma distância entre nós.



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